Actualmente, o dinheiro que utilizamos provém exclusivamente do Estado, através do seu Banco Central e do sistema bancário sob a sua supervisão. O Banco Central possui a capacidade de emitir notas e moedas, embora estas representem uma pequena parcela do total de dinheiro em circulação. Para ilustrar, recorramos ao último relatório do Banco Central Europeu (BCE): no final de 2023, o valor das notas e moedas em circulação na Zona Euro era de 1,57 biliões de euros (12 zeros).
Contudo, a maior parte do dinheiro origina-se dos computadores do BCE e do sistema bancário, que criam dinheiro digital mediante a emissão de dívida. Quando solicitamos um empréstimo para a compra de uma casa, o banco cria dinheiro digital do nada, que posteriormente deve ser pago com juros.
Por outras palavras, quanto mais dívida é criada, maior é a quantidade de dinheiro em circulação. Este facto contrasta significativamente com a situação do cidadão comum que, para aumentar o seu saldo em euros, necessita produzir bens e serviços para a sociedade, enquanto o sistema bancário pode criar dinheiro com um simples apertar de um botão num computador.
A quantidade de dinheiro que os bancos podem criar do nada é limitada apenas pelas reservas que possuem; ou seja, para cada 100 euros de dívida emitida e dinheiro criado, devem possuir, por exemplo, 10% em reservas.
O que são essas reservas? Nada mais do que notas e moedas emitidas pelo Banco Central, mantidas nos cofres do banco, e depósitos à ordem junto ao Banco Central. Para os bancos adquirirem mais reservas, necessitam vender dívida pública ao Banco Central, que a adquire criando reservas do nada e creditando o saldo do banco.
Para termos uma ideia clara, o dinheiro em circulação, considerando tanto o dinheiro digital – que existe apenas nos computadores dos bancos – quanto o dinheiro físico, pode ser medido pelos agregados monetários, como o M2. Este agregado inclui (i) notas e moedas em circulação; (ii) depósitos à ordem; (iii) depósitos a prazo; e (iv) fundos do mercado monetário. No final de 2023, na Zona Euro, este valor totalizava 15,2 biliões de euros. Ou seja, as reservas dos bancos junto do Banco Central são ridículas face a este valor, pelo que a conversão dos depósitos bancários em notas e moedas far-nos-ia verificar a fraude que constitui o actual sistema monetário.
O actual sistema fiduciário, onde o Estado e os bancos emitem moeda sem restrições ou controlo, mantendo um monopólio absoluto sem qualquer lastro em metais preciosos como o ouro, não desaparecerá tão cedo. Qualquer expectativa ou esperança contrária deve ser moderada. Embora o sistema fiduciário possa eventualmente colapsar, é bastante provável que persista mais tempo do que muitos prevêem, possivelmente à custa de uma intrusão estatal de carácter autoritário nas liberdades individuais e empresariais.
Muito se tem escrito sobre o iminente colapso do sistema internacional de dinheiro fiduciário. Este debate naturalmente ganha força em tempos de crise, como observado após a crise financeira de 2008/09 ou durante os confinamentos ilegais de 2020/21, decorrentes de uma putativa pandemia.
Qual é a essência do dinheiro fiduciário? Os Bancos Centrais detêm o monopólio sobre a emissão do dinheiro fiduciário, já explicado pelo conceito de reservas. Com essas reservas, os bancos comerciais podem criar a sua própria forma de dinheiro, inteiramente digital. Este dinheiro é criado através de empréstimos sem respaldo em poupanças reais, essencialmente criado do nada, existindo de forma desmaterializada.
Seja o Dólar norte-americano, o Dólar australiano, o Euro, o Iene japonês ou a Libra Esterlina, todas são formas de dinheiro fiduciário. Ao contrário do dinheiro que emerge do livre mercado, fruto de acordos voluntários – como aconteceu com o Ouro –, o dinheiro fiduciário foi introduzido através da intervenção estatal, envolvendo coerção e imposição. Esta imposição teve vários episódios ao longo da história, que os modernos “economistas” sistematicamente ignoram.
O dinheiro fiduciário é, por natureza, inflacionário, perdendo gradualmente o seu poder aquisitivo ao longo do tempo. Este fenómeno beneficia desproporcionalmente uma minoria privilegiada, próxima do poder estatal, em detrimento da população em geral. Além disso, causa instabilidade económica, perpetuando ciclos de expansão e recessão que perturbam os equilíbrios de mercado e criam desigualdades sociais. Promove o endividamento excessivo nas economias e alimenta a expansão desenfreada do Estado, frequentemente às custas das liberdades dos cidadãos e das empresas.
Por último, mas não menos importante, o dinheiro fiduciário é desonesto, e lidar com ele diariamente corrói os valores e a moral das pessoas envolvidas na sua circulação. No entanto, apesar desses consideráveis contratempos, uma vez que o dinheiro fiduciário tenha sido posto em circulação, veio para ficar; não desaparecerá simplesmente. Por quê? O dinheiro fiduciário fomenta a “corrupção colectiva”, onde muitas pessoas são capturadas pelas estruturas que este estabelece, promovendo a dependência e enraizando a sua influência. Actua como um catalisador para a expansão do Estado, tornando-o maior e mais poderoso. As empresas recebem novos pedidos do Estado, ajustando a produção e o emprego para atender a uma procura inteiramente artificial – como se viu com as inoculações experimentais Covid-19.
As pessoas mantêm as suas poupanças em dinheiro fiduciário. Investem, directa ou indirectamente, em certificados de aforro e mantêm as suas poupanças em depósitos a prazo num sistema bancário que pratica a contrafacção de moeda de forma legalizada. Gradualmente, as pessoas tornam-se profundamente dependentes da perpetuação do sistema de dinheiro fiduciário, consentindo com quase qualquer medida proposta pelo Estado (e pelos grupos de interesse especial que dele se beneficiam) para manter o sistema de dinheiro fiduciário em funcionamento.
O calcanhar de Aquiles do sistema de dinheiro fiduciário reside na procura por dinheiro. No entanto, o que significa a procura por dinheiro? Essencialmente, reflecte o desejo das pessoas de manterem saldos em dinheiro, influenciado por uma multitude de factores.
Por exemplo, as pessoas tendem a manter saldos de dinheiro relativos ao seu rendimento. À medida que o rendimento aumenta, também aumenta o desejo de manter o dinheiro. A procura por dinheiro geralmente diminui quando as taxas de juro aumentam, incentivando a sua aplicação. Isso ocorre porque manter dinheiro implica custos de oportunidade quando retornos mais altos poderiam ser obtidos por meio de, por exemplo, depósitos bancários, valores mobiliários, imobiliário e instrumentos de dívida.
A história demonstra que a procura por dinheiro permanece relativamente estável quando há um alto nível de confiança na moeda, isto é, as pessoas não estão preocupadas que o poder de compra do seu dinheiro diminuirá ou será destruído – como na Venezuela ou Zimbabué. Dada essa percepção, os Estados e os seus Bancos Centrais procuram manipular o sistema de dinheiro fiduciário a seu favor. A sua estratégia principal envolve a criação de ilusões e a manipulação da população para manter controlo e influência.
Por exemplo, suponhamos que uma dada economia produzia apenas 100 unidades do bem A e que existiam apenas 100 unidades monetárias. Se no ano seguinte, fruto da acumulação de capital, a economia produz 110 unidades do bem A, ou seja, ocorreu um aumento de 10% na produção de bens, algo normal numa economia capitalista, em lugar de 100 unidades monetárias para 100 unidades do bem A, temos agora 100 unidades monetárias e 110 unidades do bem A, o que significa uma relação de 1:0,91, resultando em deflação, pois o preço do bem A desceu.
Vamos agora supor que o Banco Central dessa economia imprimiu 10 novas unidades monetárias, mantendo a relação 1:1. Assim, afirmariam que a inflação foi 0%, não tendo ocorrido qualquer inflação monetária, quando na verdade o dinheiro em circulação subiu 10%! Este é um exemplo de como as autoridades podem manipular a percepção económica, criando ilusões sobre a estabilidade do dinheiro fiduciário.
Assim, as pessoas são frequentemente alimentadas com a narrativa de que uma inflação de 2% equivale a “dinheiro estável” — uma afirmação que é, obviamente, inerentemente falsa. Na realidade, uma taxa de inflação de 2% destrói o poder de compra do dinheiro em mais de 2% a cada ano, pois os benefícios de maior produção de bens e serviços deveriam estar reflectidos numa queda de preços – somos ratos a correr por dinheiro fiduciário! Além disso, os índices estatísticos de preços de bens são frequentemente manipulados para apresentar uma taxa de inflação mais baixa do que a realmente experimentada no mercado. Esta manipulação serve para minimizar a verdadeira extensão da desvalorização monetária.
A propaganda não se fica por aqui: os funcionários do Banco Central e os “economistas” chamados a opinar nos órgãos de propaganda estatais atribuem a inflação a vários factores externos, como a suposta ganância das empresas ou interrupções no fornecimento por nações produtoras, seja de petróleo ou cereais, ou à guerra na Ucrânia!, enquanto rejeitam veementemente a noção de que a inflação é um fenómeno monetário resultante da impressão de dinheiro fiduciário pelos Bancos Centrais e bancos sob a sua supervisão.
Na verdade, os Bancos Centrais estão determinados a evitar uma queda permanente na procura por dinheiro a todo custo, defendendo sempre o aumento de impostos sobre as populações, visto que estes apenas podem ser liquidados em moeda fiduciária. Quando a procura por dinheiro cai, as pessoas tendem a trocar o seu dinheiro por activos alternativos, como acções, imóveis, metais preciosos, criptomoedas, relógios suíços, entre outros.
Consequentemente, os preços desses bens disparam — exacerbando ainda mais a queda na procura por dinheiro. Em cenários extremos, isso pode desencadear uma fuga generalizada do dinheiro, prenunciando um colapso do sistema financeiro e económico. Para manter o sistema de dinheiro fiduciário, os Bancos Centrais ajustam o nível de inflação para, em primeiro lugar, garantir uma erosão gradual e contínua do valor do dinheiro, subtil o suficiente para passar despercebida ou ser relutantemente aceite pelo gado submisso.
Em segundo lugar, essa pressão inflacionária controlada actua como uma defesa contra episódios de deflação de preços de bens, que têm o potencial de fazer o sistema de dinheiro fiduciário desmoronar.
Por fim, os Bancos Centrais visam evitar situações em que a inflação saia do controlo, onde a hiperinflação destrua completamente a procura por dinheiro fiduciário. O objectivo é manter uma inflação suficientemente baixa para ser subtil, mas constante o bastante para evitar uma deflação desestabilizadora e a consequente perda de confiança na moeda fiduciária.
Esse acto de equilíbrio delicado é sustentável? As últimas décadas parecem sugerir que sim. Apesar de inúmeras crises e da erosão crónica do poder de compra, a procura por dinheiro em muitas economias desenvolvidas tem permanecido relativamente estável – o gado confia muito no Estado, fruto do controlo estatal da educação. No entanto, o acto de equilíbrio pode ter sucesso a longo prazo? Provavelmente não. A principal preocupação é a enorme acumulação de dívida pública dentro do sistema de dinheiro fiduciário, eventualmente atingindo um ponto de inflexão de insustentabilidade.
Nesse ponto, as pessoas serão confrontadas com a questão: o sistema de dinheiro fiduciário deve colapsar sob o peso das pressões deflacionárias, ou a dívida pendente deve ser financiada criando novo dinheiro? Infelizmente, a história sugere que em tempos de “crises existenciais”, as pessoas consideram a expansão da oferta de dinheiro como o menor dos dois males. Uma vez iniciada, uma política deliberada de inflação torna-se incrivelmente desafiadora de conter, quanto mais reverter. Tem a propensão a sair do controlo, potencialmente culminando em alta inflação ou até mesmo hiperinflação, precipitando um colapso na procura por dinheiro e corroendo as próprias fundações do sistema de dinheiro fiduciário.
Num possível cenário tão terrível, deve-se contar com a determinação do Estado em evitar a morte do seu regime de dinheiro fiduciário a todo custo. O Estado, como hoje o conhecemos, é expectável que esgote todas as medidas disponíveis para salvaguardar a continuidade do seu sistema monetário fraudulento. Em resposta a uma crise, o Estado irá certamente recorrer a medidas drásticas, como impor controlos de preços e de capital e até mesmo nacionalizar bancos e empresas “estratégicas”, sovietizando a economia – algo que hoje vemos crescentemente a acontecer.
Sob tais circunstâncias, o Estado assume um controlo sem precedentes sobre a produção, ditando quais bens e serviços serão produzidos, quanto, quando e por quem, até mesmo regulando quem será permitido consumir quanto e quando – esse é o objectivo do Euro Digital. Por outras palavras, as economias terminam numa forma de fascismo. Cabe a nós evitá-lo!
Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário
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