Monte-Leste

Da capital de Portugal às cores da Bandeira: nos 500 anos do nascimento de Camões

Icra Iflas Piled Book

por José Melo Alexandrino // Julho 8, 2024


Categoria: Opinião

minuto/s restantes


“[Estavas, linda Inês]

Pera o céu cristalino alevantando,

Com lágrimas, os olhos piedosos

Camões, Os Lusíadas, Canto III


Como já uma vez aqui referi, através de Fernando Pessoa, os portugueses, como Povo, apesar de darem a impressão inversa, no final do dia[1], são extraordinariamente lentos. Com efeito: levaram três séculos a libertar-se da Santa Inquisição[2]; levaram mais de dois séculos a aclimatar-se à ideia de introduzir um módico de liberalismo nos seus velhos costumes (diante da falta de espírito capitalista[3] e da arreigada dependência do Estado)[4]; levaram idêntico tempo a escrever porventura “a mesma” Constituição[5] – numa obra que de resto ainda não completaram[6]; levaram mais de século e meio a perceber que não garantiam os direitos dos cidadãos nem a lisura do sufrágio; levaram 60 anos para se libertar de diversas ditaduras durante o século XX; não fora a irritação dos Capitães, e ainda andariam com as colónias às costas mais uns tempos, quando as demais potências, melhor ou pior, já se tinham livrado de tais encargos nas décadas precedentes; levam 50 anos sem conseguir garantir verdadeira autonomia e autoridade à escola pública; e ainda não tomaram consciência de que contam com três décadas de estagnação e de crise do regime político em que vivem, de que também dá prova o problema aqui versado.

Vem isto a propósito dos anos que os portugueses ainda precisam para se aperceberem[7] de que são “representados” pelas cores de uma bandeira que não os representa, nem como Povo, nem, antes disso, como lugar único no Planeta – num momento onde, tal como sucede em diversos outros países da Europa, ela é agora vestida, calçada e hasteada por milhões de mãos, por força de um inocente e poderoso fenómeno social em que, para felicidade geral[8], nos tornámos especialistas.

E quem assim escreve jurou e serviu a Bandeira Nacional, mas infelizmente não teve oportunidade de tratar, ao contrário do que pensara ainda vir a fazer, o problema da bandeira, como questão de fundo a analisar durante todo um semestre de Direito Constitucional, num dos anos em que leccionou essa disciplina. Ainda assim, sempre teve o cuidado de explicar, na primeira aula, aos seus alunos a razão pela qual a capa do livro de apontamentos (que para eles especialmente preparara) era branca e azul[9], e não vermelha[10] ou verde[11] – tal como, num plano distinto, sempre contestou a previsão do crime de ultraje aos símbolos nacionais, por entender que não há justificação com peso[12] suficiente nem circunstâncias, seja de que natureza forem, que possam afastar o primado da liberdade de expressão nesse domínio[13].

Eis, muito resumidamente, as razões para este texto, que agora naturalmente transcenderá as apertadas fronteiras do Direito Constitucional.


1. PONTO DE PARTIDA

Logo no início deste Verão, com temperaturas a provocarem aluviões e inundações na Suíça ou apagões de energia nos Balcãs, Miguel Esteves Cardoso, glosando o tema “por contraste”, deleitava-nos com os seguintes panoramas:

«Às vezes imagino que o rectângulo português está ao contrário – projectando-se horizontalmente para dentro da Espanha – e acordo todo suado.

Mas que boa ideia situar Portugal onde Portugal foi situado. Que boa ideia estar de pé e não deitado. Que boa ideia estar de pé para um oceano enorme, cheio de água fria e de bom peixe»[14].

Na verdade, que boa ideia – já nem pergunto de quem terá partido, mas atrevo-me a pensar que, segundo Camões, terá muito provavelmente sido de Luso.

Certo é que não terá sido Miguel Esteves Cardoso o primeiro a dar por ela: Sintra não existiria há tantos séculos – na verdade, há milénios[15] – sem que alguém tivesse primeiro dado por ela. E quem diz Sintra, diz o resto do país.

Carta do Atlântico Norte (ca. 1550), mapa náutico em pergaminho, Biblioteca Nacional

Abreviemos.


2. A CAPITAL DE PORTUGAL

Como escreve José Mattoso, no âmbito da história nacional, o espaço não pode ser tomado como «um mero quadro vazio ou abstracto, mas como um lugar concreto, dotado de características físicas, climáticas e pedológicas»[16].

Cacela Velha

Ora, foi nesse idêntico sentido que Mariana Santos Martins, recorrendo também aí ao romeno Mircea Eliade, lembrou, não há muitos anos[17], a relevância da fixação prolongada do Homem junto à água, factor que levou o famoso antropólogo Jorge Dias a explicar «como o Atlântico é a verdadeira capital de Portugal, pela sua força simbólica. E, se nas populações do interior resiste o sentimento “serrano”, ainda assim todo o povo deste país [se] agarra ao mar, resistindo séculos à força de Espanha»[18]. Além disso, como o mesmo autor também explicara noutra obra, é também ao mar que se devem a unificação e a permanência da Nação portuguesa[19]. Como se explicaria de outro modo a anual corrida dos portugueses para o mar ou a mítica amizade com um peixe?[20]

Mas, para lá da sua força simbólica e atractiva (como verdadeira “alma da Nação”)[21], se a grande capital deste pequeno recanto reside no mar (agregador, benfeitor, desafiador e temeroso, ao mesmo tempo)[22], não é só o Oceano a indicar-nos como as nossas cores nunca poderiam ser semelhantes às da Espanha[23].

Basta sair à rua ou abrir a janela! Basta ver como mesmo as nossas trovoadas nada tenham a ver com as tempestades americanas, africanas e asiáticas ou com as trovoadas dos Alpes, da Europa central ou da Riviera italiana[24]: além de menos frequentes, violentas e sonoras, há quase sempre no meio delas aqueles farrapos de azul e branco que nos retratam – como, de resto, também à pátria de Sófocles (e dos mitos que ele para sempre consolidou).

Pártenon (século V a.C.)

3. RELANCE HISTÓRICO

Deixando deliberadamente de lado a perspectiva da Heráldica[25], enquanto tal – ainda que no momento próprio, quando o Povo português venha a ser chamado a decidir sobre o assunto, esses conhecimentos não possam deixar de ser devidamente ponderados[26] –, impõe-se um breve percurso histórico.

A heráldica afonsina original, que se cingia a uma cruz azul sobre campo branco[27], «à maneira dos cruzados»[28], sofreu uma dupla mudança com a aclamação de D. Afonso Henriques como Rei dos portugueses (Rex Portugalorum), no seguimento da Batalha de Ourique: (i) pela incorporação nas suas Armas dos cinco escudos ou quinas azuis (com os respectivos besantes); e (ii) pela transformação do escudo em bandeira do novo corpo político autónomo (de que D. Afonso I passou a ser o Rei).

Escudo de D. Afonso Henriques (1139)

O momento foi assim cantado por Camões, no Canto III d’Os Lusíadas[29]:

Aqui pinta no branco escudo ufano,

Que agora esta vitória certifica,

Cinco escudos azuis esclarecidos,

Em sinal destes cinco Reis vencidos

Basílica Real de Castro Verde – Painel de azulejos relativo ao termo da Batalha de Ourique.

Começando pois pela (lenda da) Batalha de Ourique (sobre a qual quase tudo ainda se discute)[30], se a mesma teve o significado militar e político agora referido, no entender de alguns especialistas, é sobretudo no campo da heráldica que se situa a relevância do episódio[31]: «Um escudo deveras rico do ponto de vista do armorial nacional europeu, e ainda em uso na bandeira nacional da República Portuguesa, num caso sem precedentes do ponto de vista simbólico, ainda para mais associado à esfera armilar manuelina, resultando daqui, na opinião do heraldista e historiador Michel Pastoureau, a mais rica bandeira em simbolismo, de entre todas as adoptadas modernamente»[32].

Armas de Portugal em 1185 (D. Sancho I)

Mas se os escudos (e o seu azul) se mantiveram até hoje, a bandeira foi-se modificando ao longo dos séculos, aliás logo com o segundo Rei de Portugal (D. Sancho I), através de diferentes arranjos dos escudos e besantes, através do acrescento (ou retirada) de elementos (como sucedeu com a já referida esfera armilar) ou através do acrescento, em 1646, da coroa e de uma orla azul (quando D. João IV declarou Nossa Senhora da Conceição Padroeira do Reino de Portugal).

Bandeira do Reino de Portugal adoptada por D. João IV.

Ora, não obstante a ruptura radical inerente à Revolução de 1820[33], por decreto das Cortes Geraes, Extraordinárias, e Constituintes da Nação Portugueza, de 22 de Agosto de 1821, o branco e o azul continuaram a ser acolhidas como as cores nacionais, por serem aquelas que formaram a divisa da Nação Portugueza desde o princípio da monarquia em mui gloriosas épocas da sua História, decreto que foi mandado executar por D. João VI no dia imediato.

Última bandeira do Reino de Portugal (1830-1910)

4. IDEM: A VIRAGEM REPUBLICANA

Chegada a Revolução de 5 de Outubro, o Governo Provisório (chefiado no papel pelo politicamente inepto Teófilo Braga[34], mas na realidade comandado pelo todo-poderoso Ministro da Justiça, Afonso Costa[35]), embora estando inicialmente inclinado para o azul e branco, foi forçado, pela Carbonária[36], a nomear uma comissão encarregada de projectar uma nova bandeira (comissão de que faziam parte, entre outros, Columbano Bordalo Pinheiro e João Chagas), tendo a mesma enviado o seu projecto ao Conselho de Ministros logo a 6 de Novembro de 1910, projecto esse que, por pressão dos radicais[37], viria a ser aprovado pelo Governo (pela maioria de um voto) a 29 de Novembro, o qual se aprestou a fixar o dia 1 de Dezembro como o dia da Festa da Bandeira.

Ainda que pudesse haver algumas razões históricas a considerar na adopção do padrão rubro-verde[38], o projecto foi nessa parte um fruto relativamente maduro do “período da propaganda” (1891-1910), dado que na revolta de 31 de Janeiro de 1891 fora pela primeira vez desfraldada uma bandeira verde e encarnada[39] (tal como o fora também no dia 5 de Outubro, na rotunda e no Castelo de São Jorge)[40]; ou seja, numa opção modernista[41], as cores da bandeira que vieram a ser acolhidas, não obstante o contexto de grande polémica (política, intelectual e social) então gerada – com os partidários do azul e branco a reclamar no final um plebiscito e muitos militares a recusarem-se a reconhecer o novo símbolo –, são na verdade as cores identificadoras do Partido Republicano Português (dos seus centros), tendo o relatório da comissão justificado a novidade da seguinte forma: (i) o vermelho, por ser uma cor combativa e quente, é a cor da conquista e do riso. Uma cor cantante, alegre. Lembra o sangue e incita à vitória; (ii) o verde, por ser uma cor de esperança e do relâmpago, significa uma mudança representativa na vida do país.

Embora tal seja relativamente claro aos olhos de um comum mortal, deste simples resumo decorrem dois sérios problemas tanto na opção, quanto na justificação apresentada, um tópico a reter para depois.

Quanto ao mais, a bandeira mantém o escudo das Armas Nacionais, assente sobre a esfera armilar, em amarelo e avivado de negro (segundo o artigo 1.º do respectivo decreto).

Ora, como tudo o que era efectivamente relevante, a começar pela famosa e “intangível” Lei da Separação, foi decidido pelo Governo Provisório[42], com algumas dessas decisões a serem mais tarde levadas a “ratificação” (expressa ou ardilosa) da Assembleia Nacional Constituinte, foi este o modo como, por decreto de 19 de Junho de 1911 (publicado no Diário do Governo em 8 de Julho seguinte) foram aprovados os dois símbolos nacionais (a bandeira e o hino) que ainda hoje formalmente nos “representam” (artigo 11.º da Constituição de 1976).


5. IDEM: APRECIAÇÃO CRÍTICA

Até pelo facto de outros já terem procedido a tais exercícios, não é este o lugar para enumerar as muitas vozes que, ao longo destes 113 anos, se pronunciaram criticamente sobre a viragem republicana a respeito das cores da bandeira, bastando para o efeito citar, logo no início (além do duro juízo, já evocado noutro momento, de Fernando Pessoa), o nome de Guerra Junqueiro: por um lado, por ter apresentado um projecto próprio de bandeira que, mantendo o azul e branco, colocava cinco estrelas sobre a esfera armilar e esta sobre o Escudo[43]; por outro, por ter apresentado à opinião pública da época as críticas que achou devidas à opção autoritariamente decretada pelos radicais, referindo-se às cores tradicionais (presentes no seu projecto) nestes termos: “O campo azul e branco permanece indelével. E’ o firmamento, o mar, o luar, o sonho dos nossos olhos, o extase eterno das nossas almas[44].

Por sua vez, no final, bastemo-nos com as derradeiras palavras de Vasco Pulido Valente: «Já reparou na bandeira portuguesa? Aonde fomos buscar o encarnado e o verde, cores que não estão na tradição portuguesa? O encarnado era a cor dos miguelistas, o verde nunca foi a cor de ninguém».[45]

Todavia, para nós, mais importante do que recensear opiniões será: (i) regressar por um instante ao contexto e aos processos utilizados em 1910; (ii) apreciar a relevância das razões então invocadas; e (iii) proceder ao confronto do resultado final com o peso das razões acumuladas ao longo de sete séculos (desde logo, pela voz dos nossos dois maiores poetas)[46] e, como tal, formalmente resumida pelo decreto de 22 de Agosto de 1821 das Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, à entrada da “era constitucional”[47].

four hardbound books

a) Assim, quanto ao contexto e aos processos, regressemos às palavras aqui deixadas, no dia em que se celebrava o cinquentenário do 25 de Abril de 1974:

  • [Na fase do Governo Provisório, a I República foi] um regime com partido único (e o único período da nossa História em que o poder político esteve concentrado nas mãos de um único órgão do Estado), sem que se tenha realizado sufrágio efectivo em mais de 40% dos círculos nas eleições para a Assembleia Constituinte e com esta a desdobrar-se abusivamente, no final, em Câmara dos Deputados e Senado;
  • Um regime sem legitimidade nem legitimação popular, com as primeiras eleições gerais (com sufrágio mais restrito do que na Monarquia) realizadas apenas em 1914;
  • Um regime que hostilizou desde a primeira hora, como nunca, a liberdade religiosa (com medidas que seriam tidas por intoleráveis no século XIX);
  • Um regime que recorreu tanto à mentira (desde logo, relativamente às promessas em matéria de sufrágio universal e de direito à greve) como à violência organizada, e onde, por tudo isso, se regressou às intervenções militares, a rupturas constitucionais (como a de Sidónio), aos assassinatos políticos, mas sobretudo à desinstitucionalização de um sistema desequilibrado desde o início[48] e que, poucos anos volvidos, quase todos os Portugueses aspiravam por derrubar.

b) Passando então agora à apreciação crítica das razões invocadas pela comissão encarregada de apresentar o projecto de bandeira, começando pelo vermelho, as razões então apresentadas oscilam entre o subterfúgio e o delírio: subterfúgio, porque o significado profundo que se pretendia representar com essa cor, como reconhece Severiano Teixeira, não era aquele, mas sim o das revoluções populares de 1848 (dita “Primavera dos Povos”) e da Comuna de Paris, em 1870; o delírio, por querer associar, sem critério algum que se perceba:conquista, riso, sangue e incitamento à vitória (quando bem se poderiam ter encontrado fundamentos relevantes, como até Guerra Junqueiro concedeu).

Relativamente ao verde, que também segundo Severiano Teixeira remete para Augusto Comte e para o Positivismo (por oposição à teologia e à metafísica), apesar de tudo, tem alguma correspondência na lógica do momento, por se pretender associar a nova cor à importante mudança política (aliás, com um único precedente na Europa: a III República francesa), bem como à correspondente legitimação da forma republicana de governo, como signo de esperança a ela inerente; sucede, no entanto, que o Anjo da História (Walter Benjamin) depressa viu essa esperança a converter-se em violência, caos e basto sangue derramado – tal foi o que veio realmente depois da “clara e meiga melodia do azul e branco” (Guerra Junqueiro)[49].

a large wave crashes against a rocky cliff

c) Chegados assim ao exercício final de confrontação dos dois planos antecedentes, é possível traçar a partir de tudo o que foi dito as seguintes ilações:

  • Numa das Nações mais antigas da Europa, tudo parece depor no sentido de que a ligação simbólica e identitária das cores azul e branca da respectiva bandeira tem fundadas ligações físicas, fundacionais, espirituais e psicológicas: a fixação milenar dos habitantes deste espaço junto ao mar começou por fazer do Atlântico a força atractiva e agregadora (primordial e permanente) da Nação, a que o céu se veio juntar; por sua vez, além da sua impressão na paisagem, o branco era a cor eleita pelo Fundador (tal como fora a do seu pai); no instante da fundação, a cruz azul (sobre o fundo branco) vem a ser substituída pelos cinco castelos, também azuis, cuja permanência até hoje dá eloquente testemunho da respectiva força simbólica e carga espiritual; por fim, resulta serem essas as cores as que melhor se ajustam à feição cordial e sonhadora dos portugueses;
  • Os sete séculos de permanência dessas duas cores, não obstante as muitas mudanças sofridas pela Bandeira do Reino ao longo do tempo, são, como se reconheceu em 1821, uma prova para lá de qualquer dúvida de que há nelas uma “constante nacional” digna de consideração;
  • Mesmo quando chegados à I República, a permanência do azul nos cinco escudos aí está a demonstrar a sua vitória quase milenar, mesmo contra a violência da Carbonária e as maquinações de Afonso Costa;
  • Por fim, além do (severo) juízo que a História finalmente se encarregou de fazer sobre o que foi realmente a I República, fracassam por completo as razões apresentadas na altura para a ruptura com as cores tradicionais da bandeira de Portugal;
  • A tal acresce uma razão póstuma: uma vez que a bandeira foi aprovada em ditadura, por um governo sem legitimação popular e que, por isso mesmo, se manteve no poder nessa fase como partido único, com recurso à violência e ao arbítrio, não é aceitável que, num regime democrático e em Estado constitucional, se possa legitimar, ratificar ou reconhecer a manutenção da produção de efeitos a um acto tão ostensivamente ofensivo da “alma da Nação” (acto que Salazar, em ditadura e na sua profunda hipocrisia, nunca teve coragem de rever).

6. EPÍLOGO

Depois de ter dedicado quinze anos à análise comparada dos sistemas de língua portuguesa, a respeito do tema em análise, talvez o exemplo mais ilustrativo, para a nossa estranha “situação”, seja o que resulta do confronto entre a observação de dois países que nos são especialmente próximos: Cabo Verde e Angola.

Ambos se tornaram Estados independentes em 1975, então com regimes de partido único e com bandeira nacional imposta por cada um desses partidos (PAIGC e MPLA), à “imagem e semelhança” de cada um deles. Porém, Cabo Verde resolveu o problema da bandeira em 1992, uma vez chegado à democracia, ou seja, em 17 anos; já Angola ainda não resolveu nenhum dos dois problemas, mas tem sobre Portugal a vantagem de levar apenas ainda 49 anos, tanto num processo como no outro.

Para quem teve o privilégio de visitar várias vezes essas ilhas (aparentemente) perdidas no meio do “Atlântico tesouro” (Camões), o privilégio de ser convidado a celebrar aí, em 2010, a chegada à maioridade da sua jovem Constituição democrática[50], bem como a repetida ocasião de poder sentir, a cada noite, o calor das estrelas e o rumor do mar, que objecções poderia levantar às opções feitas pelo sábio Povo cabo-verdiano?

Pelo contrário!

Bandeira Nacional de Cabo Verde.

É ao Povo português que continuo a ter contas a pedir.

É ao Povo Português que cabe reflectir maduramente sobre diversas coisas (como a funcionalidade do sistema de justiça ou o excesso de Poder Executivo) na sua Constituição, lei fundamental sobre a qual nunca foi chamado a pronunciar-se, designadamente a respeito da matéria dos símbolos nacionais, que lhe foram autoritariamente impostos.

Quanto à forma de o fazer, há muito foi proposta e reproposta.

Cumprindo-se em 2026 cinquenta anos da aprovação da Constituição de 1976, não seria a ocasião propícia para iniciar um tal processo?

José Melo Alexandrino é professor universitário


[1] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais da cultura portuguesa (1950), Lisboa, reimp., 1995, p. 44.

[2] Para consulta do decreto de extinção do Santo Ofício, em 31 de Março de 1821, ver aqui.

[3] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais…, cit., p. 31.

[4] Escusando de insistir no facto de sermos o único país da Europa onde o Governo é o principal órgão legislativo (com uma competência legislativa normal, concorrente com a do Parlamento, desde 1945).

[5] José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema de direitos, liberdades e garantias na Constituição portuguesa, 2 volumes, Coimbra, 2006; Id., Lições de Direito Constitucional, vol. II, 4.ª ed., Lisboa, 2024, pp. 59-60.

[6] José Melo Alexandrino, Nos quarenta anos da Assembleia Constituinte, Lisboa, 2015, pp. 9-10 (texto disponível aqui).

[7] Com efeito, na recente discussão sobre o logótipo do Governo da República, não se discutiu o essencial (se a Bandeira, desde logo nas suas cores, é aquela em que o Povo e Portugal se revêem), mas apenas o acessório: o design, a inclusividade, a comodidade digital.

[8] Com raras excepções – de vozes que pouco entendem do pulsar da cultura, dos homens e das Nações (valorizando, pelo contrário, a função de representação do jogador português no estrangeiro, Miguel Esteves Cardoso, «A selecção natural», in Público, de 24 de Junho de 2024, p. 5, disponível aqui, para assinantes).

[9] Com o título Lições de Direito Constitucional, em 2 volumes.

[10] Como sempre fora até aí, mas não depois disso, a tradição do Professor Jorge Miranda, nos sete tomos do seu Manual de Direito Constitucional, ou de Paulo Otero, nos dois volumes do seu manual de Direito Constitucional Português.

[11] Como foi e continua a ser a opção nos dois volumes do curso de Jorge Bacelar Gouveia.

[12] Ou leveza (entendida justamente como subtracção de peso), se empregarmos o critério de Italo Calvino [cfr. Seis propostas para o próximo milénio (lições americanas),trad. de João Colaço Barreiros, 5.ª ed., Lisboa, 2006, p. 17], valor em homenagem do qual chegou mesmo a pensar dedicar a primeira dessas famosas conferências à Lua (ibidem, p. 39).

[13] Por último, no texto de 2014, ainda inédito, «Deus é bem e Justiça» (incluído em obra no prelo).

[14] Miguel Esteves Cardoso, «Bendita banheira», in Público, de 23 de Junho de 2024, p. 5 (disponível aqui, para assinantes).

[15] Com as indicações necessárias, sem ignorar Varrão, que se referiu à Serra de Sintra como Monte Sagrado (Mons Sacer), cfr. Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal – Montes Sagrados, Altos lugares e Santuários, Lisboa, 2010, pp. 127 ss.

[16] José Mattoso, «Apresentação», in Id. (dir.), História de Portugal , vol. 1 – Antes de Portugal, Lisboa, 1992, p. 13.

[17] Na sua distinta dissertação Arquitectura do Silêncio: a (in)temporalidade do objecto [inédita], Universidade Lusíada, Porto, 2012 (em texto disponível aqui).

[18] Mariana Santos Martins, Arquitectura do Silêncio…, cit., p. 121.

[19] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais…, cit., p. 9.

[20] José Manuel Sobral/Patrícia Rodrigues, «O “fiel amigo”: o bacalhau e a identidade portuguesa», in Etnográfica, vol. 17, n.º 3 (2013), pp. 619-649; Álvaro Garrido, «O bacalhau. Nexos globais de um mito nacional», in Carlos Fiolhais/José Eduardo Franco/José Pedro Paiva (dir.), História Global de Portugal, Lisboa, 2020, pp. 585-591; por último, neste jornal, Paulo Moreiras, O fiel amigo lascado em1001 curiosidades [Recensão], texto inserido a 28 de Junho de 2024 (disponível aqui).

[21] Jorge Dias, O essencial sobre os elementos fundamentais…, cit., p. 16.

[22] O “Atlântico tesouro” – como, no Canto X d’Os Lusíadas, lhe chamou Luís de Camões.

[23] Cuja Bandeira Nacional, faça-se justiça, “reflecte” bem os imponentes e sobreaquecidos espaços calcorreados pelo Quixote.

[24] Isto, para citar apenas espaços que frequentei ou conheci directamente.

[25] Para uma introdução à matéria, executada há um século, Olímpio de Melo, A Bandeira Nacional – Sua evolução histórica desde a fundação da monarquia portuguesa até à actualidade, Lisboa, 1924 (disponível on-line a partir daqui); para uma súmula, Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», in A Lucta, n.º 1772, de 21 de Novembro de 1910, p. 1 (disponível aqui); para uma revisitação da história política da passagem do azul e branco ao verde e rubro, Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar – História dos Símbolos Nacionais, Lisboa, 2015, pp. 19 ss.

[26] Sobre a relevância neste aspecto, por exemplo, do projecto apresentado há 114 anos pelo poeta Delfim Guimarães e pelo pintor Roque Gameiro, merecem leitura as considerações de Nuno Severiano Teixeira, na obra já citada.

[27] Cfr. Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», cit., p. 1.

[28] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal: Paraísos Perdidos e Terras Prometidas, Lisboa, 2009, p. 22.

[29]Por sua vez, A Crónica Geral de Espanha, adaptada por D. Pedro, conde de Barcelos, em 1344 (para cuja revisitação crítica, cfr. Maria do Rosário Ferreira/Maria Joana Gomes/Filipe Alves Moreira, «A Crónica de 1344 e a historiografia pós-alfonsina», in e-Spania [on-line], n.º 25, Outubro de 2016, disponível aqui), narra assim o episódio: «E depois da lide, mudou os sinais das suas bandeiras. Porque antes da lide, trazia as armas brancas como seu padre e, depois da lide, pôs no seu pendão cinco escudos azuis por memória dos cinco reis que vencera, e pô-los em cruz, por lembrança da cruz em que Nosso Senhor Jesus Cristo teve as espáduas».

[30] E parte de cujo sentido fundamental é desmentido pelas alianças que os Reis portugueses por vezes fizeram com os principados muçulmanos (José Mattoso), como sucedeu em 1151 com o tratado estabelecido entre D. Afonso Henriques e Ibn Qasî (então governador de Silves) e em razão do qual este veio a ser morto no mesmo ano, às mãos dos iminentes novos conquistadores do Al-Andaluz (os Almóadas), injuriado então como “o mahdi dos Cristãos”.

[31] Paulo Pereira, Lugares Mágicos de Portugal Paraísos Perdidos…, cit., p. 24.

[32] Ibidem, p. 24.

[33] José de Melo Alexandrino, A estruturação do sistema…, cit., vol. I, pp. 299-300.

[34] Apesar dos longos e penosos discursos que fez na Assembleia Constituinte (para as demonstrações correspondentes, José Relvas, Memórias Políticas, vol. I, Lisboa, 1977, pp. 64-65;José Melo Alexandrino, «A presença de Afonso Costa na Assembleia Nacional Constituinte»,agora em José Melo Alexandrino, Elementos de Direito Público Lusófono, vol. II, Lisboa, 2024, pp. 18-20, 26, 40 [no prelo]).

[35] José Melo Alexandrino, «A presença de Afonso Costa…», cit., pp. 19 ss., com amplas indicações.

[36] Como dá nota Raúl Brandão (cfr. Memórias – Obras Completas, vol. I, tomo II, Lisboa, 2000, p. 89), diante da enorme polémica então surgida (cfr. J. Plácido Jr., «Quando a nossa bandeira deu uma polémica incendiária», in Visão, de 30 de Abril de 2023, texto disponível aqui).

[37] Jaime Nogueira Pinto, Nobre Povo: Os Anos da República, Lisboa, 2010, pp. 118-119.

[38] Especialmente a efémera bandeira da dinastia de Avis (cfr. Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 22).

[39] Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 26.

[40] Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 11.

[41] No sentido de traduzirem uma opção oposta à das correntes perenalistas (cfr. Nuno Severiano Teixeira, Heróis do Mar…, cit., p. 12).

[42] Em acelerada “motorização normativa”, com mais de dois mil actos normativos aprovados.

[43] Para uma reprodução do projecto do poeta, ver aqui.

[44] Cfr. Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», cit., p. 1 (artigo republicado dias depois, no n.º 285 da revista Brasil – Portugal, de 1 de dezembro de 1910, pp. 331-334).

[45] Cfr. João Céu e Silva, Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente, Lisboa, 2021, p. 99.

[46] Para um novo olhar a respeito do primeiro deles, por último, Frederico Lourenço, Camões – Uma Antologia, Lisboa, 2024.

[47] Sobre este conceito, José Melo Alexandrino, Lições de Direito Constitucional, vol. II, cit., pp. 22 ss.

[48] Na fórmula de Rolão Preto (que nunca desconsiderou o 5 de Outubro e que acabou a colaborar activamente com os republicanos, a partir de meados do século XX), a I República foi um regime que teimou em marchar «só com uma perna» [cfr. «Carta a um Republicano» (1972), in José Melo Alexandrino (org.), Rolão Preto, Obras Completas, vol. II, 2.ª ed., Lisboa, 2023, p. 410].

[49] Cfr. Guerra Junqueiro, «A nossa bandeira», cit., p. 1.

[50] Para o texto da intervenção então proferida, na Cidade da Praia, ver aqui.


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