Recensão: Jenipapo Western

Uma obra de denúncia e reflexão

por Ronaldo Cagiano // Julho 10, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Jenipapo Western global

Autor

TITO LEITE

Editora

Todavia (Maio de 2024)

Cotação

20/20

Recensão

Embora o título do novo livro de Tito Leite, Jenipapo Western, remeta à clássica ideia dos faroestes do velho oeste americano transplantado para a aridez do nordeste brasileiro, trata-se de uma obra que transcende esse estereótipo para realizar uma imersão nas razões histórico-sociológicas que forjam a natureza e a mitologia de uma cidade. Ali onde a força intransponível das circunstâncias opressivas prevalece e compõe a ordem de um lugar sem lei, tem no seu DNA as disputas políticas, os interesses econômicos e revanches familiares e os desencontros afetivos — caldo de uma cultura pernóstica que delimita o medievalismo das relações.

Os gêmeos Sandro e Ivanildo metaforizam esse tempo e esse lugar, numa Jenipapo conflagrada pelo acirramento de tensões que atravessam gerações, onde a lavoura de algodão é vocação comercial da região, cultura que se firmou com base na exploração da mão de obra por coronéis que se impuseram pela violência e que tem no poderoso Roberto, a mão-de-ferro que conduz os negócios, o destino dos trabalhadores e influencia a vida da cidade, acobertado por jagunços que espalham o terror contra quem ousa afrontar ou não se submeter a esse patronato espoliador e sem escrúpulos.

Tito Leite conduz o romance num viés narrativo que empresta frescor poético à linguagem que espelha a crueza e a dura realidade de Jenipapo e de seus habitantes afetados econômica, psicológica e emocionalmente por um sistema de dependência e cativeiro, nos moldes do velho cangaço. Quando poucos ousam peitar as injustiças e a brutalidade, à exceção de Ivanildo, alcunhado como "o sonhador", e que a duras penas, tenta rebelar-se solitariamente contra o domínio ditatorial de Roberto, este prepara tocaia para atentar contra a vida daquele desafeto, mas é o seu irmão Sandro, sempre passivo e acovardado diante da força totalitária que atormenta Jenipapo, quem vai ser atingido e perder a vida.

Numa sequência de vinganças e violências, a história de Jenipapo vai sendo escrita com sangue e lágrimas, um espectro que se repete em muitas regiões do país, onde os conflitos de classes, o latifúndio e as desigualdades constituem uma geografia de confrontos, aviltamento da vida e do açodamento da barbárie. E o autor soube dosar a pílula sem dourá-la, ao repercutir esse universo nebuloso, com suas diatribes e idiossincrasias, amalgamando essa escrita densa e intensa com a devida pulsão reflexiva e influxos filosóficos sobre esse ambiente de contradições e dilemas, sem cair na tentação da caricatura e do reducionismo — lembrando-nos o que já escreveram Machado de Assis em "Dom Casmurro" ("Só há um modo de escrever a própria essência, é contá-la, o bem e o mal") e Paul Auster ("Um escritor só pode ser bom se tiver a honestidade de ir ao fundo, ao céu, ao inferno, doa o doer").

Como já percebido em seus livros anteriores, a exemplo do romance "Dilúvio das almas" (Ed. Todavia, 2022), como também perpassa toda a sua produção poética, Tito Leite é um exímio e seguro auscultador dos abismos sociais e humanos, um ourives da palavra. Entre o lirismo e a escatologia, na contramão da corrente requentada do identitarismo, das pautas e militâncias que dominam a literatura brasileira contemporânea,  estamos diante de uma prosa  com requintes estilísticos, mas acutilante em sua proposta de denúncia e reflexão sobre um Brasil que ainda preserva anacrônicos valores e modos de convivência e dominação. O autor areja e traz vitalidade ao cenário ficcional, ao esboçar personagens marcantes e viscerais a partir de seu testemunho existencial, explorando os mais recônditos territórios que compõem o imaginário e o inconsciente pessoal e coletivo, na linha do que fizeram um Graciliano Ramos, um José Lins do Rego, uma Rachel de Queirós e um Ariano Suassuna, que captaram não só o cáustico, mas também a humanidade desses viventes e sertões castigados pelo destino e sempre à margem da civilização, o que empresta à sua arte o mais amplo e genuíno sentido de universalidade.

Escrito em português do Brasil.

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