RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Portugal: um dia com a brigada de homicídios

por Rui Araújo // Julho 11, 2024


Categoria: Exame

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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem publicada originalmente na revista GRANDE REPORTAGEM, em Abril de 2000. Um relato de Rui Araújo, que acompanhou a brigada de homicídios da Polícia Judiciária durante um dia.


Um dia com a Brigada de Homicídios

Os homens maus fazem aquilo que os homens bons gostavam de fazer…

09:15

É um rapaz inquieto e impaciente que entra na sala 1:14 da Secção de Homicídios da Polícia Judiciária, em Lisboa.

Jorge tem 26 anos, um físico de atleta e o respectivo fato de treino. 

— Nem sei quantos tiros lhe dei. Só sei que disparei uma série de vezes… – refere de imediato. 

— Mas também não tenho remorsos nenhuns. Se fosse preciso voltava a fazer o mesmo.

Em causa estão os cento e tal contos que pagou a um vigarista por uma carta de condução (francesa) falsa e a honra ferida.

Foi detido mal o comboio em que viajava parou em Santa Apolónia. É acusado de homicídio consumado.

Mas os problemas do jovem emigrante (praticante de boxe) só começaram quando relatou alto e bom som num restaurante da capital aquilo que tinha feito. Um informador mais atento contactou a PJ. A escuta dos dois telemóveis da mãe do rapaz fez o resto.

Jorge, agora aguarda. Já confessou tudo. Os seus próximos combates serão contra o tempo.

O agente Paulo Riscado explica-lhe que antes de irem ao Tribunal de Sintra é preciso tratar da papelada.

— Aquilo que está a acontecer, aqui, é exemplar. Chegamos a ter simpatia pelos arguidos porque quem mata é quase sempre o mais frágil. Jorge é uma dessas pessoas. Está aqui por causa de um desabafo, porque foi um desabafo. Desta vez, tivemos sorte. O problema na PJ é que continuamos a trabalhar com modelos arcaicos… — conta o sub-inspector António Teixeira.

10:05

O investigador Carlos Fonseca pára de ‘bater’ metodicamente (com dois dedos) mais um auto de inquirição e pega no telefone. É uma chamada da PSP de Santarém. 

A máquina de escrever de estimação da Secção de Homicídios.
(Foto: Rui Araújo)

A comunicação dos “monos” refere uma mulher assassinada pelos homens que estavam a assaltar o seu apartamento. Parto com a equipa que está de prevenção. Como o lofoscopista (técnico das impressões digitais) e o fotógrafo já vão a caminho, só nos resta mesmo o velho Golf de serviço. 

— Parece que desta vez é mesmo a sério… — comenta o agente Paulo Riscado.

— Espero que tenhas razão, porque da última vez que nos chamaram era uma grande tanga. — adianta Carlos Fonseca antes de suspirar profundamente.

— Era a história do feto, não era? — pergunto.

— Sim, era a história do feto… — confirma o agente Carlos Fonseca.

— Os “geninhos” descobriram o crime do século. E, como não tinham mais nada para fazer, venderam-vos uma história de feto por lebre… — ironizo.

Carlos Fonseca, sem sorrir, acena que sim e o colega que conduz suspira, comovido ou indignado com tanto alheamento.

A pedido da Guarda Nacional Republicana foram uma tarde a Vila Franca de Xira desvendar o caso do feto humano atirado para um poço, mas apenas acabaram por descobrir o esqueleto de uma pobre lebre que tinha tido a infelicidade de lá cair dentro.

O local fica num prédio recente, perto da esquadra. Três pessoas aguardam no patamar da escada. Dois homens e uma mulher. Eles estão calados, a olhar para o chão de mármore branco. A mulher, que deve ser a filha da vítima, está a chorar. É um pranto surdo. O guarda da PSP saúda-nos antes de meter a chave na fechadura.

A mulher morta que está deitada na alcatifa verde da sala-de-estar tem um corpo interessante. O pior é o resto. Os pés já estão ser devorados pelas larvas (ainda) brancas. E a testa está esfacelada. Tem algumas escoriações provocadas, aparentemente, por um objecto contundente. A posição do corpo também parece curiosa, mas, como a a PSP e os médicos do INEM estiveram aqui antes de nós para prestar algum socorro à vítima, tudo é possível.

(Foto: D.R.)

No resto do apartamento, predomina a ordem da banalidade. Só o magma de sangue que escorreu dos lábios da mulher contrasta um pouco com as paredes esverdeadas.

O “Dedinhos” (lofoscopista) tenta encontrar impressões digitais úteis para a investigação.

— Bate só uma foto daqui do corredor, o resto é chapa três, pá. — indica Paulo Riscado ao fotógrafo.

O técnico prepara o enquadramento e começa a disparar.

Os dois agentes iniciam então a inspecção judiciária ou, por outras palavras, começam a procurar toda a espécie de vestígios no local do crime, mas a primeira etapa, neste como em qualquer outro crime, é sempre o exame ao cadáver. Cada morto tem “respostas” que é importante reter desde logo. Só que, aqui, alguém mudou a mulher de sítio. É o que indicam os livores — as feridas post mortem que nunca sangram. Os agentes colocam a senhora na posição inicial. Depois, acabam por chegar à conclusão de que as lesões encontradas não podem ser a causa da morte. Aquilo que aconteceu não foi mais do que um simples acidente. A mulher teve um ataque cardíaco e quando caiu bateu com a cabeça no armário. A ferida na frontal direita vem daí.

O processo do acidente, agora, vai para o tribunal da comarca. Mais um. E é tempo de comer qualquer coisa. A prevenção ainda não acabou.

12.15

Entramos no primeiro restaurante que encontramos. Bem dispostos — porque ri-se muito nos homicídios. Deve ser por causa do confronto permanente com a morte mesmo se esta secção investiga tudo e mais alguma coisa: propagação (in)voluntária de doenças, maus tratos, rixas, corrupção de substâncias alimentares ou medicinais, agressões, suicídios, acidentes de trabalho, negligência médica, abortos e até homicídios. Porque também os há e aumentaram mesmo de ano para ano apesar de o sangue ainda continuar a correr mais em Portugal por conta da estrada.

Cada vez é menor a relação entre o autor e a vítima de um homicídio. 

Conclusão: a investigação é tanto mais difícil quanto hoje, pelo menos nas grandes cidades, se mata sobretudo “por dá cá aquela palha”… à excepção dos ajustes de contas e são alguns — essencialmente relacionados com o tráfico de estupefacientes e as dívidas.

A vingança, a honra e acessoriamente a paixão continuam a ser as principais causas de homicídios nas zonas rurais. Os problemas associados à água têm, agora, uma dimensão cada vez mais reduzida no interior do país.

— A sociedade evoluiu e a criminalidades acompanhou essa evolução. Os criminosos mudaram. Tipos como o Zé da Tarada, o Muleta Negra, o Dédé, o Delfim pertencem irremediavelmente ao passado. — diz Paulo Riscado.

No fundo, é tudo uma questão de valores e de assinatura. O leque é, agora, mais vasto.  A investigação é mais complicada. A prova está também mais fragilizada. A confissão deixou de contar, felizmente, aquilo que conta é a prova em tribunal.

(Foto: D.R.)

Há um excesso de “garantismo” para alguns arguidos, pelo menos para os que têm maior poder económico porque para os outros a Justiça à portuguesa resume-se a uma corda esticada no meio da rua. Os grandes saltam por cima. Os pequenos passam por baixo. E alguns — poucos — tropeçam…

O provérbio faz sorrir os homens da Gomes Freire, mas o autor é russo. A tendência por cá ainda é, hoje, haver mais homicídios por causa da droga, das “banhadas”, do tráfico de mulheres e do controlo da segurança nocturna. O resto são dramas anónimos. E alguns crimes sem solução…

Estripador (das prostitutas) de Lisboa e o Estrangulador de Cascais são apenas dois exemplos públicos e notórios. O primeiro assassino não foi apanhado porque a recolha de vestígios foi deficiente. O segundo…

Factos: Maria Antónia foi estrangulada, violada e assassinada numa noite de temporal entre um muro e um canavial, a 50 metros de uma estrada sem nome. Tinha 21 anos. Foi a primeira vítima do Estrangulador de Cascais. Ia ter com uma irmã à estação. Nunca lá chegou. O corpo da jovem foi descoberto na manhã seguinte por um miúdo das barracas que ia comprar vinho para o pai… Ninguém deu por nada. E, se deu, optou pelo silêncio.

Carmel Josephine, irlandesa, foi a segunda. Mesmo local e circunstâncias e modus operandi idêntico.

O inspector João de Sousa e os homens da Secção de Homicídios da Polícia Judiciária não excluíram, então, a hipótese de se tratar do mesmo assassino só que testemunhas e pistas concretas, não as havia, mais uma vez.

Para os investigadores a única certeza é que a ausência de suspeitos resultava, curiosamente, do facto de não ter sido definido (através dos espermatozoides) o grupo sanguíneo e sobretudo o ADN do agressor da portuguesa.

A divulgação dos retratos robot de agressores sexuais — e eram alguns — a actuar em Cascais também não deu qualquer resultado.

Meses depois, foi assassinada outra mulher. Victoria Owen, cidadã inglesa, foi encontrada morta dentro de um automóvel perto da praia do Guincho. Na cena do crime a Polícia Judiciária pouco ou nada descobriu. Mas o terceiro homicídio, pelo menos, permitiu traçar um perfil psicológico do assassino. Era um serial killer ou, por outras palavras, uma forma de delimitar a investigação.

— Os serial killers representam uma ameaça tanto mais séria quanto são pessoas difíceis de apreender: na maioria dos casos, não têm qualquer relação com as vítimas. Têm um perfil muito diferente dos outros criminosos. São sádicos sexuais que só têm a sensação de existir através da morte e da dominação. Matam por prazer. — conta o agente António Cruz.

Os escassos indícios existentes levaram a Judiciária a deter um pedreiro, Carlos Alberto, que foi rapidamente libertado por falta de provas. A imprensa “especializada” (e não só), entretanto, acabou por divulgar o caso — e do mesmo modo propagandear a paranoia do serial killer.

A solução dos crimes acabou por depender do resultado de uma informação solicitada pelos investigadores ao Instituto de Medicina Legal (NOTA: denominado, hoje, Instituto Nacional de Medicina Legal). 

Cadáver do sexo feminino, com marcas de mordedura no membro inferior esquerdo, na face anterior, e avançado estado de putrefacção.

1. As duas mordeduras são humanas e realizadas pelo mesmo indivíduo.

2. As equimoses nas áreas mordidas revelam que houve sucção (mordidas eróticas).

3. A profundidade de algumas das lesões revelam-se compatíveis com sadismo.

4. As lesões foram em vida da vítima.

5. A comparação dos modelos do suspeito Carlos Alberto com as lesões de mordedura da vítima são concordantes, havendo uma relação estreita entre a área mordida e a forma da arcada e as dimensões dos bordos incisais dos dentes anteriores do suspeito. Há um intervalo entre a mordedura de 25 e 23 que coincide com o espaço de ausência de 24 no suspeito.

O homem das obras foi novamente detido, mas não chegou a haver mandado de soltura. Foi julgado e condenado. Se um segundo Estrangulador continua a andar por aí, é outra história…

15:28

— Eu quero é ser preso! O senhor, prenda-me!

A cara estanhada, os dentes amarelados e a fala arrastada do homem que acabou de entrar não estão decididamente a condizer com as calças de fantasia. 

O agente Carlos Fonseca que tem mais que fazer (obviamente) propõe uma cadeira ao homem.

— Eu quero ser preso! Eu quero ser preso! — repete o recém-chegado como uma contrição.

— Porquê? — indaga o sub-inspector António Teixeira.

— Porque matei ou devo ter matado seis pessoas. Eu quero é ser preso! — responde o outro, descomandado.

— Quem é que matou?

— Eu não consigo trabalhar. Eu ando desorientado. Matei, é um facto. O que eu posso dizer é que não sei quem é que matei, mas eu não suporto mais isto…

— Mas matou quem?

— Eu já não sei o que ando a fazer e preso estou melhor do que na rua. Eu ainda mato alguém no meu táxi. A minha cabeça não anda nada bem. Eu não ando nada bom, tá a ver?

— Mas o que é que aconteceu?

— Eles seguem-me. Eu não sei e capaz de serem os russos ou a CIA, não há provas. Isto tem a ver com o satélite, conforme  também escutam a casa dos vizinhos. Só queria que me deixassem em paz… — desabafa o motorista antes de começar a chorar de despeito.

— Podia consultar um médico… — sugere o polícia, sentado ao meu lado.

— Eu sei que estou apanhado e uma das coisas que lhes interessava era eu ir ao psiquiatra e passar por maluco. Já estou a ver o filme. Vocês estão mas é feitos com eles… — diz o homem, desesperado, ao constatar que as suas queixas tinham sido vãs. 

Depois, enxuga lentamente as lágrimas, mete o lenço no bolso e desanda sem se despedir.

Quando o Piquete está com muito serviço ou pouca paciência é assim: a Secção parece mais um anexo do Júlio de Matos. É que vem cá tudo parar.

— Temos uma série de malucos a denunciar crimes imaginários. Há quem pense ter em casa esparguetes voadores, raios invisíveis, ficheiros secretos, só visto… E há ainda o tipo que tem a mania que é o Ramalho Eanes e que liga para cá com alguma frequência para confirmar que sabemos que ele é o verdadeiro e que o verdadeiro é falso. Muitas vezes somos mais assistentes sociais do que investigadores. É preciso é ter paciência e gostar muito disto porque senão… — comenta o sub-inspector Mário Bordaleiro, que já tem alguns anos de Homicídios.

Senão, passavam-se. Entretanto, vão apaziguando a solidão de uns e a loucura dos outros.

white painted wall
(Foto: D.R.)

16:03

A sala das autópsias está decorada com quatro corpos e um tronco humano. É mais um dia movimentado para o Serviço de Tanatologia forense do Instituto de Medicina Legal. É ainda um dia como os outros porque os três médicos disponíveis só muito dificilmente conseguem dar conta do recado. E entende-se. Só no ano passado, tiveram de realizar mais de duas mil e tal autópsias — que eram tanto mais desnecessárias quanto a maioria era referente a doentes e a suicidas. Os da comarca de Lisboa são sistematicamente autopsiados. Para quê? Ninguém tem resposta porque, se calhar, já não há nenhuma justificação plausível para que isso suceda.

Os corpos estão prontos para a autópsia: caixa torácica esventrada, pela descolada (por causa dos órgãos vitais) e cabeça encostada a uma placa metálica.

— E o meu tronco? — pergunta o agente que está comigo.

— O teu tronco… — responde o outro.

O tronco humano foi encontrado na área da Fonte Luminosa dentro de uma mala de viagem em chamas. É preciso identificar o proprietário. E, em seguida, o assassino. É para isso que o agente dos Homicídios está aqui.

Com o calor que está, o fedor é ainda mais insuportável. A sala tresanda a hidrogénio sulfurado ou coisa que valha.

— Uma autópsia é a única operação feita sem anestesia, pá, mas ninguém se queixa… — comenta o médico em forma de introdução.

O cortador pega num facalhão, efectua uma incisão torácico-abdominal e… desvio os olhos da mulher. O único refúgio que encontro, neste momento, são os néons esverdeados do tecto.

— Eu trato do teu cliente daqui a um instante, mas primeiro tenho que dar assistência aqui aos meus bichinhos de estimação…

— Ó F…, ataque aí com a serra vibratória! — ordena, entretanto, o médico.

O cortador pega na ferramenta. A incisão mento-púbica é efectuada num ápice.

Os “bichinhos de estimação” dele são as larvas. É o único médico legista que conheço que adora as larvas e tem uma explicação racional para tão curiosa paixão.

— É fácil e tem dado excelentes resultados, pá: as moscas depositam nos olhos, nas narinas na boca e nas feridas dos cadáveres os ovos que se transformam em larvas logo ao fim de 24 horas… Depois, é tudo uma questão de tamanho e de côr para se poder determinar o momento — e eventualmente o local do óbito. É uma ajuda preciosa. — explica o doutor.

A mala de viagem em pergamóide preto em que foi encontrado o corpo contém ainda alguns restos carbonizados de um pano de feltro negro e de uma manta que já foi porventura castanha. O cheiro a gasolina é insuportável. Há ainda no interior da mala papel de embrulho com um fio e uma medalha de prata com a imagem do Sagrado Coração de Jesus.

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(Foto: D.R.)

As probabilidades de o tronco pertencer a um indivíduo branco que teria uns 50 ou 60 anos, uma forte compleição física e uma altura provável de 1,70m são elevadas.

A morte terá ocorrido na madrugada de ontem. Os esfregaços anais recolhidos no tronco permitem determinar, pelo menos, que o grupo sanguíneo é A negativo.

É muito pouco para tirar quaisquer outras conclusões.

— E queres saber o que é que é mais importante? — pergunta o médico.

— Dispara!

— As larvas só comem os tecidos necrosados e comem-nos, devoram-nos a uma velocidade incrível, pudera, é que têm poucos dias para multiplicar o seu peso por 1.000. Primeiro, são brancas. Depois, castanhas e por fim ficam pretas. E é sempre a mesma história: ao de fim de 21 dias, acaba-se. O ciclo termina: saem da crisálida e metem-se a voar.

— E o meu tronco? Podes adiantar mais alguma coisa? — questiona o investigador.

— Posso. Primeiro, foi esfaqueado. Cheira-me a crime de maricagem, porque as mulheres e os homens matam de outra forma. Certo?

É plausível. Só alguém relacionado com o morto teria, de facto, interesse em desfazer-se do corpo.

É preciso então apurar em que circunstâncias o homicídio teve lugar. Há uma participação de desaparecimento que descreve a medalha. A partir daí, a PJ descobre o assassino.

Perguntado se queria responder sobre os factos que lhe são imputados, respondeu: que deseja, de sua livre vontade, esclarecer os factos em causa nestes autos.

O arguido mantinha, a troco de 2.000$00 ou 2.500$00 relações anais com o M.

Este relacionamento veio a estreitar-se uns meses depois, passando o arguido a viver em casa da vítima. Deixou de cobrar, mas passou a ter casa e comida à borla, mantendo com a vítima a mesma relação homossexual.

Existiram episódios nos últimos tempos que o arguido levou a peito, ficando furioso com o facto de M. ter sido incorrecto com a sua mãe quando esta ligou a perguntar por ele para casa do M.

Começou também o M. a telefonar para a sua terra natal dizendo aos seus familiares que o arguido não gostava de trabalhar, etc., a fazer queixas aos familiares, situação esta que o preocupava de sobremaneira. Na verdade, temia que a vítima denunciasse a relação  homossexual que ele mantinha aos seus familiares.

Irritado, mesmo furioso, resolveu, nesta passada sexta-feira de manhã, marcar um encontro com o M. em sua casa para esse mesmo dia, às 19h00.

Depois, foi buscar uma catana antiga que tinha arrumada no armário do quarto. Quando eram umas sete da tarde, foi para a varanda para assistir à chegada do M.

Esperou que ele chegasse, o que só aconteceu por volta das 19h25. Depois de lhe abrir a porta, muniu-se da referida catana e, quando este entrava, desferiu-lhe de imediato uma forte pancada no pescoço, provocando-lhe um golpe bastante profundo.

M. estava nesse momento de costas para o arguido. M. caiu e ainda tentou gritar, mas o arguido continuou a golpear-lhe o pescoço até a vítima não dar mais qualquer sinal de vida.

Depois, embrulhou o corpo num cobertor usado e meteu-o dentro da banheira. Foi então buscar a bolsa de cabedal que o M. transportava e vasculhou a  encontrando uma nota de 5.000$00 e quatro notas de 2.000$00, num total de 13.000$00 (treze mil escudos).

Em seguida, foi para os copos com dois amigos e só regressou a casa no domingo à tarde. Nessa altura, lavou as paredes, despiu o cadáver, deixando-o apenas com as peúgas.

Cortou a cabeça de M.

Neste momento, por serem já 23h24, o Exmo.º Inspector ordenou a interrupção deste auto e a sua continuação no dia…

Para a maioria dos investigadores, qualquer assassino mete dó depois da confissão. Os mais frágeis é que matam. Só o facto de tentarem permanecer lúcidos impede os homens da Secção de sentirem simpatia por quem quer que seja. Na realidade, são caçadores. Que fazem suas as palavras de André Malraux: «Para julgar é preciso compreender e quando se compreende já não se pode julgar.»

woman holding sword statue during daytime
(Foto: D.R,)

17:50

O sub-inspector deixa o telefone tocar quatro vezes antes de atender. Os dois agentes que optaram pela comunicação via Tango (NOTA: inicial da letra T como Telefone) são peremptórios. É mais um processo para ser arquivado. O caso do velhote que se atirou para debaixo de um autocarro da carreira 43 na Rua da Junqueira está, irremediavelmente, solucionado. Quando o pessoal da Secção foi avisar a viúva, encontraram a mulher morta. E uma nota ao lado do corpo: “Matei-te sem querer. Amo-te. A única coisa que posso fazer é matar-me! Francisco.

A autópsia acabaria por revelar que foi um ataque do coração e não o par de estalos que provocou a morte da senhora.

01:27

Concentração na zona das Docas por causa de um rapaz que foi esfaqueado por um segurança de uma discoteca. 

— Há muita rapaziada dos ginásios a fazer cobranças difíceis, extorsões e a trabalhar como seguranças. O problema é quando tomam anabolizantes em excesso e se metem na ‘coca’… É aí que as conversas degeneram. — diz um dos agentes antes de sair do carro.

Ninguém sabe de nada. Nem sequer o nome do segurança — que não consta dos registos do estabelecimento. A noite promete ser longa e pobre em resultados, mas ninguém se queixa porque o homicídio é, no fim de contas, o crime mais interessante, apesar de inspirar mais repugnância, mais temor e mais fascínio. E de nem sempre haver respostas.


Reportagem originalmente publicada na Revista GRANDE REPORTAGEM n.º 109 – Abril 2000, Lisboa.


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