Título
Fundação Gramaxo: Álvaro Siza/
Claustro do Rachadouro, Mosteiro de Alcobaça: Eduardo Souto de Moura com Luís Peixoto
Autor
Vv. Aa.
Editora
NMB (Novembro de 2023)
Cotação
19/20
Recensão
A recensão terá de ser dupla, porque nada melhor do que escolher não escolher, ter tudo, sorver de uma vez e juntar bolas de gelado de sabores distintos.
Os dois livros que vos trago agora para a minha tímida apreciação vieram à luz para exibir duas artes: a arquitectura e a fotografia…
Esperem, deixem-me expressar melhor, porque estão ali dentro, de ambos, também as palavras. As vozes. E brilhos e opacidades. Porque em cada um dos livros subsistem as escolhas, as diferentes pessoas, os diferentes caminhos: o “do” Siza tem as folhas a brilhar como mármore polido, a colarem ligeiramente nas falangetas; porém, o “do” Souto, tem a calmia de papel baço, macio a deslizar com outro tipo de som mais pesado.
Como na vida, um projecto editorial (um projecto, uma arquitectura), mais ainda na era da polarização, colhe significado nas suas finas diferenças. Tal, não tem de comer à consistência, mas se o fizer – e caberá ao leitor decidir se o fez – que mal tem? Só tem consistência aquilo que, porque perene, se aparenta a certa altura artificial ao ponto de nos ser indiferente. Queremos isso de uma obra? Uma obra nunca acaba, se acabasse, que horror seria. (E, no entanto, lá está, logo na página do título, a data de “nascimento” e “morte” da dita cuja!)
Agora não esperemos, claro, escolhas sem consequências. E que mal tem? Nada melhor que observar muros e ver o traço da caneta ali, visivelmente invísivel, consequente.
Mas vamos a factos, para que não se aborreçam comigo quando divirjo:
O livro da Fundação Gramaxo começa pelos esquissos do autor das obra. O Siza, claro está. “Esquissos” – para o leitor menos acostumado com o maravilhoso léxico dos entes que arquitectam – nada mais são do que esboços, pensamentos desenhados que, algures no tempo, decidimos nomear assim para dar uma sonoridade do étimo francês (talvez porque a cultura ainda era deles). Diria que é o momento “Era uma vez” do arranque da narrativa.
Já o livro do Claustro do Rachadouro, contém também os esquissos, mas só nos mostra essas provas em dois momentos, já bem no meio da ponte, primeiro pela caneta do Souto Moura e ocasionais lápis nervosos, depois, já dactilografada a obra a acontecer com muitas mãos, pelo elegante traço do Luís Peixoto. O momento “Era uma vez” deste livro bate-nos antes em cheio no nariz, com Francisco Pato de Macedo no timbre próprio dos historiadores, não fossemos nós esquecer que aqui falamos do Mosteiro de Alcobaça, e o respeitinho é muito lindo (e bem entendido fique que o desajeitado gracejo de minha parte presta a devida homenagem à aula prestada sobre esta história, de um autêntico luxo).
Depois começam então as histórias, onde a fotografia irá brilhar em todo o seu esplendor de captura do tempo, sempre acompanhada por palavras várias, dos outros, dos autores, dos críticos, das testemunhas criteriosamente escolhidas para estes actos particulares. No livro da Fundação Gramaxo temos o privilégio do ensaio fotográfico de António Júlio Duarte, desde o ferro armado às cadeiras, com direito a espreitar pela fechadura do atelier do arquitecto (certamente num domingo de manhã, vazio, mas com vestígios do café e dos cigarros do Arquitecto); no livro do Claustro do Rachadouro o prazer da aturada reportagem de André Príncipe, ainda mais focado da viagem desde o embrião in utero ao bebé nascido, em perspectivas puras, descarnadas e verdadeiras. Essenciais. Para relatar a verdade de uma pré-existência e de um processo de reabilitação cuidadoso.
E, por fim, o capítulo que, normalmente, o meu querido público julga ser o busílis desta arte: os desenhos técnicos. Tudo ali, limpo e lindo, bem mastigadinho e depuradinho, como se não estivessem centenas de milhares de escolhas em cada inflexão da espessura da linha, já brilhantemente editados por Macedo Cannatà num dos casos, e requintadamente afinados por Luís Peixoto e Carvalho Bernau no outro.
Acrescento que as palavras de Jorge Figueira, no primeiro livro que vos comento, são uma delícia poética a convocar as artes todas do mundo para o Siza, assim, inteiras e gordas. Pergunto-me sempre, se as palavras conferem significados novos ou os lêem de facto lá. Suponho – ou aliás, noto – que falar sobre o alheio é bem mais fácil, basta escolher que música tocar. Gostei particularmente desta música neste livro. Voltarei a ler dentro de vinte anos para confirmar como envelheceu. Do texto do Frampton? Nada a dizer, repetições do termo “miraculoso”, que julgo adequadas quando a crítica se pronuncia sobre o que é português, mas que a tradução portuguesa prontamente corrigiu. Ironias que talvez se permitam numa língua, mas não noutra.
Ah! E já agora, os livros também são bilingues. Assim, como quem não quer a coisa, para falar de escolhas. Resta-me apontar apenas, ao Nuno Miguel Borges, um pedido para edições futuras, se a tal me atrevo, arranca todos os livros na página 3 com poetas, daqueles mesmo a sério, com calo tingido de tinta no dedo da mão dominante e tudo.