Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas semanais. Hoje, o piparote de Brás Cubas vai para o dossier sobre Alterações Climáticas da revista Visão – Edição Verde.
Na edição nº 1365 da revista Visão, uma EDIÇÃO VERDE, apesar dos tons avermelhados e amarelados da capa, o tema foi as alterações climáticas. “Há motivos para estarmos alarmados?”, perguntava-nos a revista, como se o cenário artificialmente tórrido imbuído num Alentejo pré-saariano não fosse já uma óbvia resposta. E tanto o cenário é negro – ou vermelho – que se anunciava o diagnóstico climático e ambiental de 10 investigadores e especialistas – sendo que, pela apresentação, os primeiros não são os segundos, e os segundos não serão os primeiros –, e se expunha os temas do dossier: “a dificuldade de prever os fenómenos extremos”, “os riscos do degelo acelerado e a urgência de salvar os oceanos”, “o impacto nas vinhas e as estratégias para a agricultura” e “o crescimento verde e a transição energética”.
Sigamos para o interior, não da quente Terra, mas da fresca revista, embora saída na semana passada. Como prelúdio, um conteúdo patrocinado, para promover “o sonho de um belga tornado realidade em Tavira”, tudo uma lindeza cheia de água para mostrar que, quando um homem quer, “o turismo anda de mãos dadas com a natureza”. Não é, por certo, por causa do Altanure, que pagou uma página de publireportagem não assinada, que a Terra vai desaparecer.
Finalmente, na página seguinte, a 32, a primeira investigadora ou a primeira especialista a botar faladura sobre alterações climáticas. Calma: ainda não entrámos no dossier Alterações Climáticas. Falso alarme: é um texto de promoção das políticas ambientais assinada pela ministra do Ambiente, Maria da Graça Carvalho. Longe vão os tempos em que os ministros não faziam publicidade gratuita para expor as suas promessas, sem sequer ter um jornalista a fazer-lhes perguntas. Sigamos.
O dossier começa então. E afinal, ora bolas!, temos um “exclusivo para a Visão” de 9 artigos de opinião, considerado que um tem duas co-autoras. Em todo o caso, um exemplo de jornalismo low cost: despacham-se 19 páginas de uma revista, num dossier de capa, sem se usar um único jornalista.
Mas calma, isto não acabou. O jornalista de ambiente de serviço da Visão, Luís Ribeiro, não pôde fazer uma reportagem de fundo na Visão para dar uma visão crítica sobre as alterações climáticas porque esteve entretido em cobrir um evento tecnológico organizado pela EDP Inovação em Madrid. E lá aparece o jornalista Luís Ribeiro a descrever do que se trata – pitchs de startups na área da energia – e a dar o comentário do CEO da EDP Inovação e, depois,do director do Ecossistema de Inovação da EDP.
Tudo ocupa cinco páginas, em seguida surge mais um “conteúdo patrocinado”, na página 59: um artigo de opinião escrito pela directora da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, mas quem pagou a ‘coisa’ foi o Fundo Ambiental, tutelado pelo Ministério do Ambiente, cuja ministra é a senhora que escreveu um artigo de opinião, supostamente não pago, nas páginas 32 e 33. Reparo agora que a imagem deste ‘par’ de dois artigos (um de borla e outro pago, o que significa que, em média, metade de cada artigo foi pago) antecipou a revelação, mas, enfim, se os princípios do jornalismo já feneceram, pode-se sempre mostrar-se um final antes do princípio, que isto anda tudo esquisito.
Esquisito? Talvez. Mas não mais do que a ‘peça’ seguinte deste dossier: uma entrevista com… ora, que surpresa: o CEO da EDP Inovação, feita pelo mesmo jornalista (Luís Ribeiro) que foi ao evento da EDP. Houve direito a três fotografias do dito e tudo, uma das quais de página inteira. Fofinha a entrevista, sobretudo na parte em que se aborda a China – um dos grandes accionistas da EDP –, que tem sido, de longe, o país com maiores e mais crescentes emissões de dióxido de carbono. Mas isso agora não interessa nada – a EDP está na crista da onda da transição verde, né?
Enfim, depois disto, já pouco relevo merece questionar se, à pala da (in)sustentabilidade dos recursos marinhos, a reportagem sobre o “almoço verde” confeccionado pelo chefe David Jesus com “espécies marinhas sustentáveis” serviu como alerta para a sobre-exploração pesqueira ou para promover as villas privadas do L’And Vineyards, em Montemor-o-Novo, a 500 euros o quartito em Agosto. Jornalismo ou publicidade, eis a questão. O Hamlet aqui poderia ser o fotógrafo da reportagem, Marcos Borga, porquanto essa reflexão introspectiva me parece essencial ao até há pouco tempo membro do Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas.
Termina este instrutivo (no sentido do estado da imprensa portuguesa) e longo dossier ambiental com uma reportagem sobre a nova conduta de drenagem de águas pluviais de Lisboa – que, hélas, é a única peça que aparenta ser jornalística, porque acaba por criticar os riscos de segurança da obra – e uma notícia-descrição da fábrica de Mangualde do Grupo Stellantis que está a construir furgões eléctricos. Oportuno porque ninguém, a não ser todos os media mainstream, falou desta fábrica na semana passada, por via da entrega de veículos eléctricos ao SNS.
Até para a semana, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do caracter jocoso, irónico ou sarcástico.
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