Já passaram cerca de 950 dias desde que, em Dezembro de 2021, o PÁGINA UM pediu acesso aos registos anonimizados das reacções adversas às vacinas contra a covid-19 (e também ao antiviral remdesivir). Nesse longo intervalo de mais de dois anos e sete meses, houve um parecer da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, com uma sentença enviesada, e agora um acórdão histórico do Tribunal Central Administrativo Sul. O Infarmed, segundo o acórdão, tem agora cinco dias para se tornar transparente e mostrar, linha a linha, quais foram os efeitos adversos de um programa vacinal em massa que nem crianças e jovens saudáveis ‘poupou’, apesar da virtualmente nula letalidade nessas idades. O PÁGINA UM não pretende ter acesso aos registos anonimizados para criar “alarme público”, mas tão-só para que se saiba a verdade dos factos – como é a regra (talvez esquecida por muitos) do jornalismo (verdadeiramente) independente.
Trinta e um meses depois do pedido inicial, o Infarmed vai ter mesmo de facultar o acesso à base de dados nacional com informação anonimizada detalhada que regista todas as reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e também do polémico antiviral remdesivir.
A obrigatoriedade surge com um acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, do passado dia 11, que revogou uma polémica sentença de primeira instância da juíza Sara Ferreira Pinto que, em Março do ano passado, recusara a inclusão de provas inequívocas do PÁGINA UM de o Portal RAM estar já anonimizado e por considerar que a exportação dos ficheiros da base de dados constituía a criação de um novo documento, algo que inviabilizaria a obrigatoriedade do regulador do medicamento de fornecer esse acesso.
O histórico acórdão de 28 páginas – aprovado por unanimidade pelos desembargadores Joana Costa e Nora, Ricardo Ferreira Leite e Carlos Araújo – decidiu “condenar a entidade requerida [Infarmed] a, num prazo procedimental de cinco dias, facultar o acesso aos dados pretendidos das referidas bases de dados [Portal RAM], com expurgação dos dados pessoais, independentemente da forma por que a mesma se faz.
Embora o Infarmed, presidido por Rui Santos Ivo desde Junho de 2019, ainda possa recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo – apenas para adiar a concretização de um acto de singular transparência sobre informação relevante de Saúde Pública –, este acórdão histórico constitui já uma vitória do jornalismo independente e perseverante. Com efeito, de uma forma absolutamente abnegada, o Infarmed tem usado todos os subterfúgios para não permitir o acesso à listagem anonimizada – ou seja, sem nomes e outros elementos que permitissem a identificação concreta de pessoas – das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e o antiviral remdevisir. O primeiro pedido formal para aceder a essa informação, constante no Portal RAM, ocorreu em 6 de Dezembro de 2021, quando o PÁGINA UM ainda se encontrava em preparativos de lançamento.
Perante o silêncio inicial do Infarmed, o PÁGINA UM começou por solicitar um parecer à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA), no início de 2022, tendo esta entidade considerado que o Infarmed deveria facultar essa informação, mesmo se, como então aludia o regulador do medicamento, a informação pudesse ser analisada por “não-especialistas”, o que teria, alegadamente, “um elevado potencial para criar um alarme social totalmente desnecessário e infundado”.
Como ‘solução’ para esse receio não parece ser o simples obscurantismo – até porque nunca fora intenção do PÁGINA UM criar “alarme social”, que foi, aliás, a tónica dominante da imprensa e das autoridades de Saúde durante a pandemia –, foi então apresentada uma intimação ao Tribunal Administrativo de Lisboa, num processo complexo que chegou a envolver uma rara sessão de julgamento para ser ouvido o presidente do Infarmed e uma técnica superior, tendo nesse mesmo dia sido recusado pela juíza Sara Ferreira Pinto a junção de documentos que o PÁGINA UM requereria meses antes nos autos para provar a anonimização do Portal RAM.
A sentença desta juíza acabaria assim, em Março de 2023, por não surpreender ao recusar o acesso ao Portal RAM, argumentando que “para satisfazer o pedido do Requerente [Pedro Almeida Vieira], a Entidade Requerida [Infarmed] teria que exportar o conjunto de dados constantes do ‘Portal RAM’ para formato Excel ou outro e, posteriormente expurgar esse ficheiro / documento de dados pessoais, ou seja teria de criar um documento para o Requerente, dever que, contudo, a lei não impõe”.
A fazer jurisprudência esta ‘tese’ da juíza poderia ser o fim do acesso público a base de dados de carácter sensível, porquanto significaria que a simples impressão ou transferência para outro formato passaria a ser considerado um novo documento – logo, não obrigatório -, permitindo assim uma escapatória a uma Administração Pública cada vez mais obscurantista.
Porém, o viés desta sentença de Março do ano passado mostrava-se também no próprio facto de, mesmo se sem intencionalidade, a juíza Sara Ferreira Pinto até ter citado doutrina de Cláudia Monge, professora da Faculdade de Direito de Lisboa, especializada em direito de protecção de dados em saúde. Sucede, contudo, que Cláudia Monge é também uma destacada sócia da sociedade BAS, que, nesta intimação, defendia a posição do Infarmed.
Apesar de o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul ter agora concluído que estava “errado o pressuposto desta improcedência” sentenciada pela juíza do Tribunal Administrativo de Lisboa, certo é que este caso se entre 6 de mostra paradigmático de uma exasperante, morosa e onerosa luta por um banal acesso a documentos administrativos. Apenas considerando a data de entrada do processo de intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa – 20 de Abril de 2022 –, a primeira sentença ocorreu 322 dias depois, em 8 de Março de 2023.
O recurso do PÁGINA UM foi apresentado em 27 deste mês e o acórdão acabou apenas por ser aprovado 472 dias depois. Se contarmos os dias entre requerimento inicial – ao abrigo de uma lei que determina o acesso ao fim de 10 dias –, decorreu até ao acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul um total de 948 dias. Teve mais de seis dezenas de actos procedimentais, e mesmo mais um processo de intimação paralelo para obtenção de manuais e cadernos de encargos.
Saliente-se que os processos de intimação são considerados urgentes, correndo, em teoria, durante as férias judiciais. Além disso, não existe qualquer penalização para um gestor público que demonstre uma atitude obscurantista e que recorra por sistema, com o dinheiro dos contribuintes, para obstaculizar, até ao limite do absurdo o acesso a informação relevante e de interesse público.
O PÁGINA UM aguarda agora que, cumprindo o acórdão, o Infarmed disponibilize o acesso aos dados anonimizados das reacções adversas das vacinas contra a covid-19 e do remdesivir para que, em seguida, com espírito de seriedade, rigor e independência, analisar a informação aí constante. Essa análise não substitui o trabalho em curso, e quase concluído, sobre a base de dados da Agência Europeia do Medicamento, a EudraVigilance, relativa às 14 vacinas contra a covid-19 comercializadas no Espaço Económico Europeu.
N.D. Esta intimação, iniciada em Abril de 2022, desencadeou uma das iniciativas do PÁGINA UM de que mais nos orgulhamos: o FUNDO JURÍDICO, como aqui se recorda. Para financiar estas acções em tribunal – e entretanto houve mais de duas dezenas -, o PÁGINA UM contou com o precioso apoio financeiros dos seus leitores e um inquebrantável patrocínio jurídico do advogado Rui Amores. Como este caso do Infarmed demonstra, estes processos são morosos, lentos, onerosos e desgastantes, ainda mais por enfrentarmos, quase sempre, sociedades de advogados bem pagos (com dinheiros públicos). Tem sido uma batalha de David contra Golias, ainda mais desgastante por esse Golias (Administração Pública) dever existir para servir os cidadãos. Gostaríamos de fazer mais, ainda mais, mas estaremos sempre limitados financeiramente, e também em meios humanos, uma vez que muitos destes processos são demasiado complexos para serem ‘manejados’ por um único advogado que, obviamente, não trabalha a tempo inteiro (muito longe disso) para o PÁGINA UM. Para continuarem a contribuir especificamente para o FUNDO JURÍDICO, será preferível usarem o MIGHTYCAUSE, mas podem sempre optar por outras vias indicando o destino final. Obrigado.
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