Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo no Ruanda, ao serviço da RTP, publicada originalmente no DIÁRIO DE NOTÍCIAS em 28 de Maio de 1994.
«Está doido? Nós estamos todos a fugir deste inferno. Porque é que você quer entrar nele?»
Meditei na pergunta e depois disse ao homem para seguir em frente.
Voltava a haver confrontos políticos e étnicos no Ruanda. Tudo indicava que a antiga Suíça de África se tinha tornado noutro «campo de morte», depois de o avião do Presidente Juvenal Habyarimana ser atingido, em 6 de Abril, por dois rockets e se ter despenhado, no jardim da sua residência, à vista dos familiares que o esperavam, a poucos metros da pista do Aeroporto Grégoire Kayibanda, em Kigali. A Guarda Presidencial negou a autoria do atentado.
Nós acabávamos de chegar ao aeroporto de Kigali num voo especial C-130, a partir de Nairobi, com os boinas-vermelhas e verdes belgas. Era tarde. Estávamos todos cansados.
Depois, da parte de trás do edifício, veio o barulho do fogo de metralhadora.
Mais de 50 crianças negras chegaram em camiões, carrinhas e jipes. Todos eles eram órfãos abandonados. Muitos deles estavam feridos, incapacitados, perdidos noutra guerra esquecida que não compreendiam. E eu?
Os militares não tinham aviões que chegassem para levar todos os miúdos negros e os civis europeus deixados em Kigali.
Quando o C-130 descolou, uma figura notável fez a sua aparição no solo: um homem lendo um livro, encostado à parede. A luz vinha de um cubo para acender latas de ração de combate.
«Porque é que não dormimos todos uma boa noite?», propôs-me o comandante. Eu não consegui.
«Qual é exactamente a situação, comandante?», perguntei. Demos uma volta por ali. As tropas do FAR, o exército do Ruanda, estavam no interior do aeroporto e em Kigali. Os guerrilheiros da Frente Patriótica do Ruanda (FPR) não estavam longe. Podíamos ouvi-los falar. Estavam ali, na estrada. E também na cidade. Os guerrilheiros estavam a ganhar a guerra.
O fogo continuou, interrompido apenas pelos gritos ocasionais das crianças feridas.
No hall do aeroporto, nessa noite, a conversa não era sobre o que os dois lados e as tropas da ONU podiam ou deviam fazer mas se haveria uma operação para cobrir.
«Receio que vá haver outra guerra no Burundi…», disse o meu amigo Alfonso Armada, do El País. Não tenho a certeza que ele estivesse errado. O Burundi é quase como o Ruanda. Os mesmos grupos étnicos, as mesmas tensões, as mesmas chacinas. «Mais uma semana, mais 300 chacinados no Burundi (…) Até agora mais de 100.000 pessoas perderam vida, principalmente em confrontos étnicos, desde que o exército assassinou o Presidente Melchior Ndadaye, em Outubro», escrevia o The Economist, uma semana antes de o novo presidente do Burundi, Cyprien Ntaryamira, morrer em Kigali. Ele vinha no avião do Presidente do Ruanda. Ntaryamira tinha sido impotente para travar «os confrontos étnicos com origem nas antigas hostilidades entre os Hutus, um povo de agricultores que constitui 85% da população, e os Tutsis, inicialmente virados para a pastorícia, ao Norte, que dominaram os Hutus num sistema quase feudal.»
O coronel belga falou à Imprensa sobre a operação da manhã seguinte para salvar alguns padres e freiras perdidos no país. Era uma missão arriscada. O outro problema era que apenas 12 jornalistas podiam ir. Nós éramos 23 e todos queríamos estar presentes.
Gerou-se entre nós uma batalha psicológica. Alguns lançaram mão da sua experiência. Não resultou. Não conseguimos chegar a acordo entre nós. O coronel decidiu, finalmente:
«Isto é uma operação belga. É para os media belgas. A Imprensa estrangeira não tem nada a dizer», acrescentou o coronel depois de eu lhe lembrar que a televisão precisava de mais pessoal.
Jornalistas da imprensa escrita decidiram tirar de um chapéu o nome afortunado dos quatro que podiam ir. Um, dois, três… Alfonso Armada foi o número 3. Um jornalista belga disse: «Nada de estrangeiros!» Alfonso já não pôde ir. Simone Reumon (canal RTBF, Bélgica) disse-me que ia. Eu não ia, mas ela deixava-me utilizar as suas imagens. O Ruanda era uma história da Bélgica… só para a imprensa belga. Nunca esquecerei o o seu estranho sentido de justiça e a sua peculiar definição de jornalismo com bandeira.
Passei a noite a vaguear pelo aeroporto depois de ajudar Alfonso a enviar um texto para Madrid. Estava triste. Trabalho para a televisão (RTP). Tinha uma história (os órfãos), mas não tinha satélite para a transmitir, nem telefone para a contar, ninguém no Quénia para me ajudar, nada de nada. Nem mesmo uma cerveja…
O grupo deixou o aeroporto de Kigali às 06:00 da manhã. Eu, fiquei. Christian Maton, o meu cameraman belga, desejou-lhes «boa viagem».
O resto da manhã passou sem que nada acontecesse. Os soldados estavam lá. Eu estava lá.
É conhecida a capacidade dos militares para distorcer a realidade (e, por vezes, a nossa maleabilidade para a aceitar), mas no Ruanda não foi preciso. Há poucas excepções…
Os aviões C-5 norte-americanos transportavam soldados estrangeiros (e alguns jornalistas, incluindo eu) e equipamento militar de Bruxelas para Nairobi. Era uma «missão de treino», disse-me um sargento da Força Aérea, natural da Califórnia. Em voz baixa retorqui com um «obrigado» mastigado. Começava a sentir-me apreensivo com os americanos a participarem nessa guerra. Os estrategistas de guerra belgas franceses destacados para o Gabinete de Imprensa, em Kigali, não manipularam todos os jornalistas todo o tempo. Não era necessário. Pregaram um susto de morte a dois jornalistas flamengos. Eles abandonaram Kigali na mesma noite no primeiro voo para Nairobi ou Bujumbura. Esta guerra não era interessante nem sexy para os europeus. De facto, não era a guerra deles. Eles não estavam aqui para lutar (mesmo se o uso de mísseis não foi posto de parte), mas para evacuar os civis europeus juntamente com algumas autoridades locais influentes — e os órfãos. Humanité oblige…
«Negros contra negros… a selvajaria continua, eles não mudaram, é só isso…», disseram-me em privado, que o mesmo funcionário europeu dos «serviços de informações» classificaria os «negros bons para o lado da França e os maus rapazes para o da Bélgica». Ambos os países estão activos na região.
Motivos de ordem política e económica são uma das explicações…
As tropas da ONU ficariam no Ruanda para «manter uma presença das Nações Unidas». A ausência de qualquer tentativa da ONU para travar a guerra (para defender princípios e salvaguardar a sua credibilidade) era mais do que evidente. Kigali é muito menos importante que Sarajevo, Gorazde e outras.
Devido ao tiroteio em grande escala, às chacinas e à atenção que a Imprensa lhes estava a dar (tentando pôr o Ruanda no mapa das notícias internacionais), o apoio entusiástico dos militares começava a diminuir.
Antes do meio-dia, vi uma caravana de jipes e camiões. Era a última. Havia outras três pessoas para retirar da Baixa de Kigali. Eu não tinha nada a perder…
«Se tiver carro, eu aceito-o na coluna!», disse o oficial. Pensei que ele estava a brincar. Kigali era então o pior lugar do Ruanda. Não éramos compatriotas, é verdade…
Mas o boina-vermelha belga falava muito a sério. Todos os soldados estavam equipados com espingardas automáticas FNC e coletes à prova de bala. Alguns jipes e camiões eram blindados. E eu nem sequer tinha um carro…
Devo ter parecido completamente estarrecido.
«Vem? Tem medo da morte?», indagou.
Eu respondi: «Tenho, mas dê-me cinco minutos… para descobrir um carro.»
Vi uma velha carrinha abandonada no parque de estacionamento. Abri a porta.
Uns minutos mais tarde, liguei a ignição — como um ladrão da cidade. A bateria estava descarregada. Alguns dos 10 jornalistas excluídos incitavam-me ao crime.
Tentei outro carro — um jipe Mitsubishi novinho em folha. O sistema é o mesmo: dois fios mais um — e resultou. A estranha procissão pôs-se a caminho. Dei boleia a outros seis jornalistas.
Juan Mirales (La Dernière Heure, Bélgica) sorriu. A caravana arrancou lentamente até a estrada chegar à fronteira entre os dois lados do conflito.
Os fotógrafos freelance tiraram fotografias dos corpos rígidos na estrada. Uma jovem ficou com a cabeça feita em bocados por uma catana. As pernas de um homem foram comidas pelos cães depois de ele ser abatido. É culpado de ter nascido no grupo étnico errado e de ter recusado o extremismo.
Nos arredores de Kigali e em todo o país havia uma atmosfera de pânico e desespero. Dezenas de milhares de ruandeses e seis ou sete civis europeus foram assassinados. Dez boinas-azuis belgas da ONU morreram porque receberam ordens dos seus superiores para se renderem. Os seus inimigos arrancaram-lhe os olhos, cortaram-lhes os pénis, cortaram-lhes os tendões, abateram-nos — com 10 balas cada. Eles…
As tropas leais ao Governo (sic) estavam a ser denunciadas como carniceiros ou assassinos. Não estou certo que fossem os únicos…
«Não desperdiçámos este dia!», disse Vincent Dudant, freelance, agora um bom amigo.
Alguém disse: «Não é o máximo?» Eu ia a guiar o jipe. Daí a pouco, sem aviso, parecia que estávamos no inferno. Encontrávamo-nos no meio de um combate. Era uma emboscada. As tropas belgas não são bem-vindas no Ruanda. Agachei-me atrás do volante. Ouvia-se os disparos das AK-47 muito próximos. A caravana parou. Ouvia o pau-pau-pau das metralhadoras, o zumbido das balas atrás das árvores. Preferia isso aos morteiros…
Durante um momento longo e de estupefacção fiquei imóvel. Os boinas-vermelhas responderam. Eu disse a Christian para filmar: «Usa toda a fita que queiras, mon petit!»
Ao que parece, o que estava a acontecer era que as tropas leais ao Hutus estavam a apresentar o cartão-de-visita a um comando europeu, à FPR ou aos civis que estavam na zona. Foram 15 minutos ruidosos…
Deixámos o lugar com alguns buracos nos carros e uma história para contar. A capital do Ruanda estava dividida… Foi-nos dito por um guerrilheiro da FPR furioso. Eles levaram com fogo «amigo» dos boinas-vermelhas. Um jipe abandonou a coluna, mas nós encontrámos na capital o embaixador do Egipto.
A caminho do sítio onde os dois civis belgas deviam estar, vimos mais corpos, um jovem ferido a pedir ajuda. Eu não disse palavra. Ia a conduzir… O seu único conforto antes de morrer: duas fotos. A preto-e-branco. Pensei no que Bill Kovach ou Bob Phelps fariam na minha situação.
A segunda viagem a Kigali correu bem — depois de uma rápida paragem junto ao Hotel Méridien, ocupado pela Missão da Paz das Nações Unidas. Houve outra explosão de um morteiro frente ao edifício. Os outros civis não vieram connosco.
O campo era verdejante e luxuriante. A África é tão bela. A chuva tinha parado há muito, mas ainda se sentia o cheiro da terra — as cores ocre magníficas. O que faltava eram as pessoas — pessoas a caminhar como se faz por toda a parte nesse continente —, pessoas a dançar, a rir ou simplesmente a trabalhar ou a dormir.
À frente da coluna encontrámos o oficial que mandava. O seu carro tinha sido atingido por fogo emboscado a cerca de dois quilómetros. Havia outro problema. Tínhamos de regressar à base aérea da capital por outro caminho.
Uma vez no aeroporto, encontrei Alfonso. «Foi fascinante, mas muito triste», disse-me em português. Nessa manhã, ele encontrara alguns amigos italianos da ONU e foi com eles até Musha.
Conclusão: ele conseguiu um furo jornalístico. Uma aldeia inteira — 1.180 homens, mulheres e crianças — foi dizimada porque era Tutsi.
O episódio deu manchetes. Eu também fiz uma entrevista com o padre de Musha. Num camião.
«Eram 06:30. Eles começaram a matar toda a gente com granadas de mão, armas automáticas e catanas, dentro e fora da igreja. No dia seguinte, fui à minha igreja. Havia um grupo de 50 crianças com as mães. Viraram-se para mim e disseram: — Padre, Padre, Padre. Que podia eu fazer?», explicou-me o padre Litric Danko antes de defender que a única coisa que eles precisam no Ruanda é de uma ditadura.
Perguntei-lhe de onde vinha. «Serbia. Serbia.», replicou.
Deixei Kigali umas horas mais tarde. Fiz duas histórias sobre o Ruanda. Eu não tinha muito e o Ruanda já não era uma prioridade. Pelo menos até ser história na CNN.
O problema, agora, é a minha próxima missão em África. Aposto que vai ser algo sobre a região dos grandes lagos como o Burundi. B-U-R-…
Esta crónica não é inocente. Como Olivier Todd disse, «não se podem reduzir os factos a palavras.»
COMPLEMENTO DE INFORMAÇÃO – 2024
O Ruanda foi o pior teatro de operações onde estive até hoje. Foi muito pior do que Timor, Zaire, Bósnia, Líbia, Síria, República Centro-Africana, etc.
Em menos de 100 dias, a guerra no Ruanda provocou a morte de 800.000 pessoas e 3.000.000 de feridos e refugiados.
Estive no Ruanda logo nos primeiros dias do genocídio. Éramos 23 repórteres. Era o único português. Não havia CNN, BBC, ABC, TF1, etc.
Em Kigali, pedi uma arma para matar. Eu cá me entendo: com granadas defensivas atiradas para dentro de igrejas pejadas de mulheres, velhos e crianças e com bebés esventrados à catanada (sem falar das violações e dos roubos) optei por ser homem antes de ser pianista de lupanar (não digam pf aos meus pais que eu sou jornalista para eles não ficarem decepcionados, segundo a fórmula consagrada e assaz pouco original)…
Não cheguei a matar, mas era mais do que tempo de abalar dali. Confesso que tive pesadelos durante 18 longos anos por causa daquele maldito inferno. Ninguém passa impunemente pelas guerras. Nem os soldados, nem os civis, nem sequer os jornaleiros. Um dia, os meus pesadelos desapareceram. Definitivamente.
No Ruanda, arranjei aquele que é, passados 30 anos, um dos meus melhores amigos de sempre. O grande repórter (El País, ABC, fundador e actual director do FronteraD, etc.), poeta e escritor galego Alfonso Armada.
Fui para o Ruanda porque o embaixador do Burundi na Bélgica era meu vizinho e amigo. Ele alertou-me para o genocídio que estava em preparação com (mais uma vez) a passividade cúmplice da ONU.
Na ausência de notícias das agências internacionais (instituições obviamente mais credíveis do que os correspondentes da casa!), a RTP só me deixou avançar para Kigali na condição de eu não gastar dinheiro.
Eu confiava na minha fonte. E sou poupado…
Primeiro, arranjei em Bruxelas boleia para África: um voo militar dos EUA para Nairobi.
Já tinha um pé no continente.
Depois, na placa do aeroporto da capital do Quénia, tive a sorte de um C-130 militar belga me levar (juntamente com uns poucos jornalistas como o Alfonso Armada) para Kigali. Éramos só 23.
Em Kigali, pernoitámos no aeroporto cercado. Dormimos no chão. Devorámos as melhores rações de combate que… não são, decididamente, as portuguesas.
Parte da história do Ruanda continua por contar.
Para saber mais, proponho três documentos:
– J’ai serré la main du diable – La faillite humaine au Rwanda.
General Roméo Dallaire, 2004
– La France, le Rwanda et le génocide des Tutsi – Commission de Recherche sur les archives françaises relatives au Rwanda et au génocide des Tutsi.
(Rapport remis au Président de la République le 26 mars 2021)
Editor : Armand Colin (NOTA: Também está disponível na internet em pdf e é grátis.)
– Rwanda 1994 et l’échec des Nations Unies – Toute la vérité.
Amadou Deme, 2011
Lisboa – Julho 2024
Reportagem do jornalista Rui Araújo ao serviço da RTP, originalmente publicada no DIÁRIO DE NOTÍCIAS, Lisboa – 28 de Maio de 1994
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