Só faltava mesmo uma auditoria para ‘limpar’ a imagem de uma estranha campanha de solidariedade que, durante a pandemia, catapultou a imagem de Ana Paula Martins, a actual ministra da Saúde, e de Miguel Guimarães, actual vice-presidente da bancada social-democrata. A consultora BDO prestou-se a fazer uma prestação de serviços às Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos – que nem sequer está registada no Portal Base – para ‘comprovar’ que estava (quase) tudo bem numa campanha que envolveu cerca de 1,4 milhões de euros. Só encontrou um minúsculo desvio não-justificado de 18 mil euros, mas convenhamos que também não se procurou muito: a auditoria não viu (ou não quis ver) que a conta bancária (que até identifica) não era uma conta oficial de qualquer das Ordens profissionais, mas sim de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. E, sem ver isso, também não viu fugas ao Fisco (não-pagamento de imposto de selo) nem omissões ao Ministério da Administração Interna, nem contabilidade paralela com possível criação de um ‘saco azul’ nem falsas declarações sobre os doadores por parte dos beneficiários. E era tão fácil ver: hoje mesmo, o PÁGINA UM confirmou, através de donativos simbólicos, que a conta usada na campanha ‘Todos por quem cuida’ continua a ter Miguel Guimarães como beneficiário e que uma conta oficial da Ordem dos Médicos indica, como deve ser, apenas a Ordem dos Médicos como beneficiária.
A consultora BDO prestou-se a elaborar uma auditoria à campanha de solidariedade ‘Todos por uma causa’ – que, durante a pandemia, geriu cerca de 1,4 milhões de euros provenientes sobretudo da indústria farmacêutica – sem sequer detectar (ou ter pretendido detectar) que todos os fluxos financeiros se processaram usando uma conta particular detida pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e pelo deputado do PSD Miguel Guimarães, que então ocupavam os cargos de bastonários da Ordem dos Farmacêuticos e dos Médicos, respectivamente. Com essa inexplicável ‘cegueira’, surpreendente numa reputada consultora registada na Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) e na Ordem dos Revisores Oficiais de Contas (OROC), o aspecto mais grave detectado foi ‘apenas’ uma “diferença não justificada de 18.787 euros entre o somatório das aquisições efectuadas […] com os donativos em dinheiro […] e os valores entregues às entidades beneficiárias”.
De fora, ficou assim – tentando lançar um ‘lençol de legalidade’ – um vasto conjunto de ilegalidades e irregularidades desta campanha, logo detectadas pelo PÁGINA UM após uma sentença do Tribunal Administrativo de Lisboa ter obrigado em finais de 2022 as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos a revelarem a documentação desta campanha. Aliás, a própria auditoria da BDO, agora revelada pelo PÁGINA UM, também somente foi acedida por determinação de nova sentença do Tribunal Administrativo, já do presente ano, uma vez que Carlos Cortes, o bastonário da Ordem dos Médicos que substituiu Miguel Guimarães em 2023, não aceitou entregar voluntariamente o documento, concretizado sem sequer ser conhecido um contrato público, uma vez que não existe qualquer registo no Portal Base.
Apesar da suposta bondade desta campanha – atribuir sobretudo material e equipamentos de protecção contra a covid-19 a instituições de solidariedade social e unidades hospitalares –, de entre as irregularidades e ilegalidades detectadas pelo PÁGINA UM incluem-se contabilidade paralela, fuga ao fisco e falsas declarações para obtenção de benefícios fiscais e facturas falsas.
Criada logo no início da pandemia em Portugal, a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.
Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.
E foi aqui que começaram as irregularidades. Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.
Ora, a pseudo-auditoria da BDO confirma o NIB (e IBAN) usado, referindo que “foi criada uma conta destinada a receber, através de depósito directo ou por transferência, os donativos angariados com o IBA P50 0035 0646 0001 7662 9302 1”. Porém, o documento assinado por Ana Gabriela Barata de Almeida (ROC nº 1366, inscrito na CMVM sob o nº 201606976, em representação da BDO & Associados – SROC) não se debruça nem uma linha no aspecto essencial: essa conta não era nem da Ordem dos Médicos nem da Ordem dos Farmacêuticos nem da própria Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), que se associou à campanha.
Não se diga que essa pesquisa era complexa. Na verdade, é pública e confirmável: hoje mesmo, o PÁGINA UM procedeu a uma transferência simbólica (1 euro) para esse IBAN, que pertence a uma conta da Caixa Geral de Depósitos, onde surge, como primeiro beneficiário “José Miguel R Castro Guimarães”. A actual ministra é (era) co-titular desta conta particular, havendo ainda outro co-titular, Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde do PSD e actual coordenador do Plano de Emergência de Saúde. A conta era movimentada com duas assinaturas. A actual ministra assinou diversas ordens de pagamento.
Para que não haja dúvidas sobre a contabilidade paralela desta campanha solidária, o PÁGINA UM procedeu também hoje a uma transferência simbólica (1 euro) para o IBAN de uma das contas da Ordem dos Médicos, usada pela secção Sul desta instituição no Millenium BCP. E esta conta tem, obviamente, como único beneficiário a Ordem dos Médicos, e não o nome do bastonário ou de outro qualquer responsável. Por regra, são depois documentos internos que indicam quem pode movimentar a(s) conta(s) institucional(is), e seria no mínimo irregular que housse pagamentos de terceiros ou contas abertas por outras entidades ou pessoas para pagar facturas de prestação de serviços ou aquisição de bens requeridas pela Ordem dos Médicos.
Como a BDO não tomou sequer diligências sobre a existência de uma conta particular a gerir uma campanha, fez assim vista grosa a uma catadupa de ilegalidades e irregularidades, mesmo tendo-se debruçado em supostas “verificações factuais”, designadamente a confirmação da entrada das receitas angariadas na conta bancária, a conformidade com a regulamentação das acções de beneficência, as declarações emitidas aos doadores e de procedimentos de aquisição e entrega de bens, dando-lhes uma cobertura de aparente legalidade.
Nada mais falso.
Sendo que a conta da campanha “Todos por quem cuida” não era institucional – mas sim de três pessoas, independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna para a angariação de fundo omitiu o facto de que o NIB em causa não ser das entidades oficiosamente promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticas. Aliás, foram indicadas no final do pedido duas contas que nunca foram usadas na angariação, e que efectivamente pertencem a estas duas instituições. Ambas as contas (com o NIB 000334778686020 e o NIB 000000182339728) estão no Santander, sendo tituladas, respectivamente, pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticas.
A razão para não serem usadas contas oficiais de qualquer uma das ordens nunca foi dada, mas certo é que o Ministério da Administração Interna foi iludido, Além disso, o pedido de autorização apenas foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos para a conta paralela se iniciara em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três meses antes. Com efeito, à data do pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser precedida da autorização ministerial.
Por outro lado, nessas circunstâncias jamais se poderia aplicar a lei do mecenato ou outro tipo de benefício, porque em termos formais estava-se perante uma recolha de donativos por três pessoas, inexistindo uma justificação lógica (ou ilógica) para não se ter procedido sequer a qualquer correcção. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pagado solidariamente o imposto de selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros. E houve muitos.
Ora, face aos montantes das diversas transferências sobretudo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10 euros de imposto de selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM, nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para esse cumprimento fiscal.
Existiram pelo menos mais 13 transferências bem acima de 500 euros que também não terão sido declaradas às Finanças nem pago o imposto de selo, a saber: ASPAC (35.000 euros), Bial (20.000 euros), Bene (20.000 euros). Ipsen (12.000 euros), Atral (10.000 euros), Falinhas Mansas (10.000 euros), Angelini (10.000 euros), Apormed (5.000 euros), Rial Engenharia (5.000 euros), Medicina G Medeiros Marques (1.500 euros), Forex ACI (1.500 euros), Gin Lovers (1.080 euros) e Multiclínicas Far (1.000 euros).
Contas feitas, segundo os cálculos do PÁGINA UM com base nos extractos bancários, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves receberam 41 donativos superiores a 500 euros e deveriam ter pagado 138.333,10 euros de imposto de selo. E nunca o fizeram.
A BDO, na sua auditoria, omite qualquer irregularidade, uma vez que omite que a conta não era institucional. No seu trabalho, a auditora apenas confirma os valores declarados e recebidos, elencando individualmente os donativos das farmacêuticas via Apifarma, que individualmente concedeu 90.000 euros. As farmacêuticas mais beneméritas foram a Novartis (215.751 euros), a AstraZeneca (200.00 euros), a Gilead (150.000, para onde Ana Paula Martins começaria a trabalhar depois da saída da Ordem), a Merck Sharp & Dohme (50.000 euros) e a Janssen (40.000). A Pfizer concedeu 30.000 euros de apoio.
Além desta grave falha fiscal – independentemente dos objectivos da campanha –, as 16 entidades do sector farmacêutico que concederam apoios também deveriam ter feitos declarações no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, identificando expressamente Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. Estes profissionais de saúde – dois médicos e uma farmacêutica – também nunca procuraram que o Infarmed, que vigia os patrocínios neste sector, envidasse esforços para incluir essas referências no portal. E o Infarmed, presidido por Rui Santos Ivo, nunca se incomodou em incomodar as farmacêuticas por não declararem o ‘patrocínio’ de mais de 1,3 milhões de euros a três individualidades, uma das quais, Ana Paula Martins, que agora tutela o regulador do medicamento.
Além destas irregularidades e incumprimentos fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição, designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem doados. Ora, isso passou ao largo da BDO, apesar de se apresentar como uma das principais auditoras a operar em Portugal.
Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.
Uma das ordem de pagamento assinadas por Ana Paula Martins foi para transferir 27.365,20 euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida pela disponibilização de locais e pessoal de enfermagem para vacinar, contra as regras da Direcção-Geral da Saúde, médicos considerados não-prioritários em Fevereiro de 2021, uma iniciativa pessoal de Miguel. Esta decisão, com a concordância do então coordenador da task force Gouveia e Melo, após diversas reuniões, continua a ser analisada (há mais de um ano) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A factura das Forças Armadas foi, contudo, emitida em nome da Ordem dos Médicos. E a Ordem dos Médicos viria depois a emitir declaração (falsas) de recepção de donativos por parte de quatro farmacêuticas. Uma dessas falsas declarações de donativo, no valor de 3.725,20 foi passada em Março de 2022 à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.
Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, nunca foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.
Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul’, ou mesmo um desvio de verbas até 968 mil euros. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.
Ora, a alegada auditoria da BDO – pelo menos, o título do documento obtido pelo PÁGINA UM após sentença do tribunal diz “Prestação de serviços de autoria ás actividades e contas do fundo solidário #TodosPorQuemCuida” – comete aqui um erro de palmatória. Na página 10 da auditoria diz-se que “procedemos à análise dos gastos7aquisções efectuadas por forma a validar a documentação de suporte correspondente”, indicando que foram realizadas verificações às notas de encomenda, factura, evidência de entrega aos beneficiários e comprovativo do pagamento, concluindo que se confirmou “a existência destes elementos para todas as aquisições”.
Mas também aqui há uma omissão grave, que aparenta ser intencional. Com efeito, se e BDO conferiu facturas e pagamentos teria sido assim impossível não ter detectado que as facturas eram emitidas em nome da Ordem dos Médicos mas os pagamentos eram feitos por terceiros, neste caso pela conta titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Significa isso que, sem qualquer documento justificativo – e não existia quando o PÁGINA UM consultou todos os documentos após a sentença do Tribunal Administrativo –, deram entrada documentos de despesa elevados (cerca de 978 mil euros) sem qualquer fluxo de caixa associadas às respectivas facturas, ou seja, houve indicação de que terá saído dinheiro da Ordem dos Médicos sem ter havido.
Se houve ou não a criação de um ‘saco azul’, não se sabe – e nem o actual bastonário, Carlos Cortes, se disponibilizou voluntariamente a esclarecer esta estranha situação nem quis entregar os relatórios e contas de 2020, 2021 e 2022 da Ordem dos Médicos –, mas é estranho que haja uma completa omissão por parte da BDO neste aspecto sensível e de grande responsabilidade. Sabe-se apenas, que o saldo da conta solidária em 20 de Fevereiro do ano passado era de 107.382 euros, mas o actual bastonário, Carlos Cortes, nunca quis esclarecer se esse dinheiro remanescente continuava a ser gerido pelos três titulares ou se a verba fora transferida, e em que condições, para uma conta oficial da Ordem dos Médicos.
Vejamos um exemplo desta situação. A factura nº 551 passada pela Clotheup em 2 de Outubro de 2020 pela aquisição de batas descartáveis no valor de 110.700 euros foi emitida à Ordem dos Médicos. Tendo sido uma aquisição a pronto de pagamento, não houve saída de dinheiro da Ordem dos Médicos, porque quem a pagou foi a conta solidária de Ana Paula Martins e dos outros dois co-titulares. Ora, nesse dia, poderia ter sido “desviada” a verba de 110.700 euros da conta bancária oficial da Ordem dos Médicos, não havendo assim o mínimo sinal de qualquer desfalque, uma vez que existia uma factura a suportar essa saída. Esse expediente pode aplicar-se a qualquer outra das 31 aquisições identificadas pelo PÁGINA UM.
Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.
Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.
Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da “sua campanha”, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.
Logo, a título de exemplo – e é mesmo um só exemplo, porque existem largas centenas de casos, reportados e fotografados pelo PÁGINA UM durante a consulta dos dossiers contabilísticos e operacionais da campanha “Todos por Quem Cuida” –, é falsa a declaração de 23 de Março de 2021 da Liga dos Bombeiros Portugueses, bem como a competente carta de agradecimento do então presidente Jaime Marta Soares, de que foi a farmacêutica Gilead que lhes entregou 4.984 batas cirúrgicas, 1.661 litros de álcool gel, 831 máscaras cirúrgicas, 2.492 óculos reutilizáveis, 664 fatos integrais tamanho M e 664 tamanho L, e ainda 4.153 viseiras, tudo no valor de 103.400,60 euros.
Neste caso particular – que é extensível a todas as outras farmacêuticas envolvidas nesta campanha –, a Gilead terá apenas entregado, através da Apifarma, um donativo de valor desconhecido (que agora a BDO diz ter sido de 150.000 euros), para uma campanha solidária, titulada por três pessoas. Formalmente, teriam de ser as três titulares dessa conta (Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves), e não as entidades beneficiadas com os géneros doados, a passar uma declaração de recepção desse donativo à Gilead (e às outras farmacêuticas). Porém, se assim fosse, as farmacêuticas não teriam hipóteses de usufruir de qualquer benefício fiscal, uma vez que o Estatuto do Mecenato não abrange donativos a pessoas singulares – e nem a Ordens profissionais, acrescente-se.
Outro caso paradigmático passou-se com a Associação Nacional de Farmácias que em 10 de Fevereiro de 2021 declarou que a Merck Sharpe & Dohme lhe doou 107.574 máscaras cirúrgicas no valor total de 50.000 euros. Nada poderia ser mais falso. Aquilo que sucedeu foi a Merck Sharpe & Dohme ter doado 50.000 euros a Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves que, depois aproveitaram para usar esse dinheiro para pagar máscaras a uma empresa – que emitira uma factura à Ordem dos Médicos –, sendo esses equipamentos de protecção individual entregues então à Associação Nacional de Farmácias.
A emissão de centenas de declarações falsas – trata-se mesmo de centenas, que englobam muitas pequenas IPSS – configura até fraude fiscal, porque as entidades beneficiadas assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que não é verdade, nem as farmacêuticas conseguirão comprovar qualquer compra através de facturas. Certo é que, com este estratagema, as farmacêuticas conseguiram enquadrar os seus donativos no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado – para levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue. Algo que não sucederia se tivesse sido tudo feito como sucedeu: os donativos foram entregues a três pessoas (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), foram feitas compras e entregues os géneros às IPSS, associações e unidades hospitalares.
Assim, com este esquema falso as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, e terão acabado por assumir, em termos contabilísticos, custos da ordem dos 1,82 milhões de euros, Em conclusão, este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros. Note-se que este esquema, profundamente à margem da lei, envolveu também hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.
Apesar da logística desta campanha ter sido protagonizada sobretudo pela Ordem dos Médicos, e pelo então seu bastonário Miguel Guimarães, a actual ministra teve um papel bastante activo, e não apenas como co-titular da conta. Ana Paula Martins procedeu a várias ordens de pagamento de géneros – cujas facturas foram encaminhadas para a Ordem dos Médicos – e também participou em diversas reuniões específicas da campanha. De acordo com as actas consultadas pelo PÁGINA UM, a actual ministra da Saúde participou em pelo menos oito reuniões da comissão de acompanhamento entre 11 Maio de 2020 e 5 de Maio de 2021. Mesmo depois da sua saída da liderança da Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, manteve-se como titular da polémica conta solidária.
Ora, perante este intrincado esquema de falsas declarações – as farmacêuticas doaram o dinheiro para a conta de três pessoas, e não fizeram donativos directos para os beneficiários –, a BDO nada diz na sua auditoria. No curto capítulo sobre a confirmação das declarações emitidas aos doadores, a auditora diz que “procedemos também à verificação das declarações emitidas aos doadores pelas entidades beneficiárias e pelo TPQC [‘Todos por quem cuida’].
Ora, das centenas de declarações que o PÁGINA UM consultou, os beneficiários finais nunca tiveram contacto com os doadores iniciais; e, na verdade, a haver declarações verídicas deveriam ser de dois tipos: declarações de Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves aos doadores, entre os quais as farmacêuticas; e depois declarações das diversas beneficiárias às referida pessoas que pagaram os bens doados. O facto de a auditoria da BDO referir que foi “possível confirmar a concordância dessas declarações” é, no mínimo, estranho.
Após a entrega pela Ordem dos Médicos da auditoria – que durante o processo de intimação, apresentado no final do ano passado, a Ordem dos Médicos garantiu ao juiz não estar concluído, apesar de ter data de 10 de Março de 2023 –, o PÁGINA UM colocou diversas questões à BDO e, em particular, à auditora Ana Gabriela Barata de Almeida. Numa primeira fase, a BDO respondeu que “no que respeita à auditoria/trabalho de procedimentos acordados às atividades e contas do Fundo Solidário ‘Todos por quem cuida’, informamos que está abrangido por segredo profissional […], pelo que não podemos prestar quaisquer informações relativas a factos, documentos ou outras de que tenhamos tomado conhecimento por motivo da referida prestação de serviços”.
Perante a insistência, dias depois foi remetida uma mensagem pelo advogado Pedro Guerra Alves, alegadamente representante legal da BDO, ameaçando o PÁGINA UM com um processo judicial. Essa pressão ilegítima, numa fase em que a investigação do PÁGINA UM ainda decorria, levou à apresentação de uma queixa contra o causídico no Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Médicos e na Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
O PÁGINA UM também colocou questões sobre a qualidade desta auditoria da BDO à CMVM e à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas. No caso da CMVM veio a resposta da praxe para não dar resposta: “A CMVM está sujeita a sigilo profissional e não se pode pronunciar sobre situações concretas relacionadas com entidades sujeitas à sua competência de supervisão sobre a actividade de auditoria, nos termos previstos no Regime Jurídico da Supervisão de Auditoria (RJSA).” Quanto à Ordem dos Revisores Oficiais de Contas nem resposta veio.
Também sem resposta, até hoje, ficaram os diversos pedidos do PÁGINA UM ao bastonário da Ordem dos Médicos, que foi informando que, por serem assuntos anteriores ao seu mandato, reencaminhou para os serviços.
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