TEM DIAS

Ilusões e quiches de espinafres

open book on brown wooden table

por Sílvia Quinteiro // Julho 22, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Agarrou o livro. Abriu-o, pressionando a palma da mão contra o vinco que teimava em fechá-lo. Leu os dois primeiros parágrafos. Releu-os em voz alta. Fechou-o. Era tudo o que a capa e o título prometiam. Voltar a amar, a silhueta de um casal sobre um pôr-do-sol em tons de Inteligência Artificial. Oferecera-lho a tia:

⎼ Como gostas de ler… e tens de começar a pensar em refazer a tua vida. És muito nova!

Pois gosto, pensou. Gostava também da tia. Gostava ao ponto de guardar aquele livro. Não tencionava lê-lo. Guardá-lo-ia como qualquer outro objeto que ela lhe tivesse oferecido. Livro-pisa-papéis. Livro-de-não-ler. Livro-há-mesmo-alguém- que-acha-que-isto-é -literatura. Livro-como-é-possível-abater-árvores-para-imprimir-isto. E, o mais incrível, livro-número-1-no-TOP-de-vendas. Este sucesso que não conseguia perceber fez com que um turbilhão de pensamentos lhe atravessasse a mente. Lembrou-se dos anos 90. Das  supermodelos. Perfeitas. Poderosas. Cindy, Naomi, Linda, Christy. Desfilavam, posavam, eram ricas e famosas. Ser como elas era o sonho de milhares de miúdas e miúdos por todo o mundo. Mas mais do que isso, passou a ser o sonho de muitos pais e mães. Embevecidos com a beleza das suas crias, viam ali a possibilidade de uma vida bem sucedida. Começaram a surgir escolas de manequins um pouco por todo o lado. “Caçadores de talentos” convenceram as famílias a apostar o que tinham e o que não tinham na realização dos sonhos dos mais novos. Dos que tinham tudo para dar certo. Mas também dos que não tinham rigorosamente nada que pudesse apontar nesse sentido. Sentada à mesa do escritório, livro nas mãos e olhar perdido naquele pôr-do-sol impossível, continuava a pensar nas crianças e jovens que qualquer leigo na matéria teria percebido não terem a mínima possibilidade de virem a ser modelos. Deixaram para segundo plano os estudos, atraídos por uma carreira nas passerelles ou na publicidade. Bem mais apetecível do que estudar, sem dúvida. Anos à espera da grande oportunidade. Amargurados, a  sentir-se injustiçados. A acumularem rejeições e traumas. Anos e anos até perceberem, ou não, o que lhes tinha acontecido.

assorted-color hanging clothes lot

Olhou novamente para aquele monte de folhas impressas e achou que poderia servir para elevar um pouco o monitor do computador. Afinal, sempre teria alguma utilidade.  Abriu-o mais uma vez. Já agora, queria ver como terminava. Leu o parágrafo da última página. Ah, felizmente tinha uma lombada com a altura ideal para o que precisava. 

Das pseudoescolas de manequins, o seu pensamento deslocou-se para as escolinhas de futebol. Para os meninos arrastados pela ideia de que a fama é tudo. De que estudar dá trabalho. Ganhar a vida a dar uns chutes na bola é bem mais fácil e apelativo. Talento e sacrifício são pormenores. Abre-se uma “escola”. Enfiam-se os miúdos nuns equipamentos giros. Depois, basta ir sussurrando aos ouvidos dos pais que têm ali o próximo Ronaldo e a mensalidade não falha. Sonham com aviões particulares, mansões em lugares paradisíacos, contratos de milhões a fazer capas de jornais. O tempo vai passando. O secundário faz-se a custo. O sentimento de injustiça. A revolta. A frustração que tantas vezes poderia ter sido evitada. Bastaria alguma honestidade. Bastaria que se dissesse claramente que a maioria dos meninos e meninas se podem divertir, mas nunca  serão profissionais. Só que a honestidade custa dinheiro. O problema é que no futebol é que não há como vingar sem verdade. Já na literatura… Suspirou. Voltou a olhar para o livro. Poderia o texto da contracapa induzir os compradores em erro? Começou a ler. Não aguentou mais de duas linhas. Não. Nem era esse o caso.

E voltou a pensar nas sanguessugas que, sempre atentas, vão diversificando o negócio, tirando proveito das ilusões e ingenuidade alheias. Alimentam-se  agora do sangue de um novo grupo de vítimas. Atacam-nas nas águas pantanosas das editoras, que nascem um pouco por todo o lado, entaladas entre uma escola de modelos/atores (vai dar tudo ao mesmo) e outra de futebol. E é ver entrar e sair os aspirantes a escritores.  Entram apreensivos, ansiosos. Saem com o ego massajado e a carteira mais leve. A maioria das editoras é hoje um negócio que vive de alimentar sonhos e explorar sonhadores. Publicam manuscritos com mais erros de ortografia e sintaxe do que parágrafos. Enredos ao nível da composição “As minhas férias”. Um discurso que convence o autor de que será o próximo Saramago. Mas em bom, claro!  O outro nem pontuar sabia! O editor vai metendo milhares de euros ao bolso, ano após ano. Sim, porque os leitores não foram lá à primeira, mas hão de reconhecer o génio. Não se pode desistir assim. O próximo volume não falha. Faz-se uma capa ainda mais chamativa e embala-se num saquinho com brilhantes, fechado com uma fitinha de seda. Monta-se uma banca com flores de plástico nas feiras do livro e fazem-se sessões de autógrafos. É fundamental que o texto tenha muitas frases de encher o ouvido. Daquelas a escorrer azeite. Pode até ter atores das telenovelas a ler uns excertos. Custa dinheiro. Mas é um investimento. Depois é publicar mais um. E outro.  E até outro, se o pé de meia ainda não se tiver esgotado.

man playing soccer game on field

E vem-lhe então à memória a recordação de uma antiga professora da FLUL. Uma conhecida catedrática com tanto de competente como de pouco diplomática que, certo  dia, após a apresentação de um trabalho, perguntou à autora se havia um prato que cozinhasse particularmente bem.

⎼ Quiche de espinafres! ⎼ retorquiu a rapariga.

 A resposta não se fez esperar:

 ⎼ Então, vá para casa e faça imensas quiches de espinafres. Mas deixe a literatura em paz que não lhe fez mal nenhum.

E ela foi.

Cruel? Sim. Honesta, porém.

Leonor coloca finalmente o livro debaixo do monitor. Lombada virada para a parede. A cor da capa e o título são-lhe insuportáveis.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


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