Recensão: Romancista como Vocação

Autobiografia de um romancista singular

por Ana Luísa Pereira // Julho 23, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

Título

Romancista como vocação

Autor

HARUKI MURAKAMI (tradução: Inês Rocha e Maria João Lourenço)

Editora

Casa das Letras (Março, 2024)

Cotação

13/20

Recensão

Haruki Murakami nasceu em 1949, na cidade de Quioto, Japão. Cresceu em Kobe e estudou teatro na Universidade Waseda em Tóquio. Começou a escrever aos 29 anos, tornando-se, ao longo das décadas seguintes, num dos mais aclamados e populares romancistas contemporâneos. Ouve a canção do vento foi o seu primeiro romance, com o qual ganhou o Prémio Gunzou de Literatura para novos escritores, em 1979. A este, seguiu-se Flíper, 1973. Estes dois curtos romances foram publicados, em Portugal, em conjunto pela Casa das Letras (2016), a editora que nos trouxe a maior parte das suas obras.

O seu reconhecimento internacional viria acontecer com obras como Norwegian wood (1987) [2016, Civilização Editora], Kafka à beira-mar (2002) [2006, Casa das Letras] e 1Q84 (2009) [2011, Casa das Letras].

São vários os prémios internacionais de literatura que Murakami ganhou, como por exemplo, o Prémio Tanizaki (1985), com O impiedoso país das maravilhas e o fim do Mundo [2013, Casa das Letras], o Prémio Franz Kafka (2006), com Crónica do pássaro de corda (Casa das Letras), o Athens Prize for Literatureem 2014, com a trilogia 1Q84. Em 2009, venceu o Prémio Jerusalém pela sua obra.

Murakami também é tradutor e escreveu várias obras de não-ficção, de entre as quais se destacam Música, só música (de que se falou aqui), e Auto-retrato do escritor enquanto corredor de fundo, de 2009 – um livro recomendado pelo Plano Nacional de Leitura. A importância da corrida, como elemento da sua rotina diária, é, aliás, um dos temas deste Romancista como Vocação, original de 2015.

Nesta obra, constituída por 12 capítulos, o autor japonês conta-nos, de forma aberta, simples e honesta, a sua trajetória como escritor, dando a sua perspetiva sobre a arte de escrever, que, no seu caso, é marcada pela fusão do realismo mágico com referências à cultura pop, explorando temas como a solidão e a alienação nas sociedades contemporâneas. A banda sonora é, com frequência, a música jazz.

Esta leitura concede ao leitor uma perspetiva intimista de como o autor desenvolveu o seu estilo único, influenciado pela sua paixão pela música e pela experiência de escrever noutra língua. Além dos aspetos técnicos da escrita, Murakami também dedica espaço ao propósito da literatura, ao papel do escritor na sociedade e à relação entre a vida pessoal e a escrita.

Outro motivo que me levou a publicar estes «registos de discursos por fazer» prende-se com o desejo de reunir sistematicamente todas as reflexões que partilhei em diferentes lugares. Ficaria satisfeito se os leitores as encarassem como uma compilação abrangente (à data) das minhas opiniões sobre a arte de escrever romances” (p. 11).

O primeiro capítulo é sobre esse ofício de escritor, “aquele que tem necessidade de fazer o que é desnecessário” (p. 26). É o seu ponto de vista, como é pessoal a perspetiva que perpassa todo o livro. Não é, por isso, desengane-se o leitor, um manual de escrita de ficção. Se é verdade que Murakami descreve o seu processo criativo, também reforça aquilo que é sobejamente sabido: trabalho, trabalho, trabalho e rotinas, rotinas, rotinas. A sua persistência e perseverança estão aliadas ao seu estilo de vida ativo e regrado, no qual a corrida diária é obrigatória. O autor enfatiza, assim, que a escrita além de ser uma vocação, é um trabalho árduo que exige muita disciplina e profunda dedicação. Ainda que seja interessante enquanto autobiografia, este livro fica aquém do já citado “Auto-Retrato do Escritor Enquanto Corredor de Fundo”.

No capítulo 2, Murakami discorre sobre como deixou a sua atividade anterior – era proprietário de um bar de jazz, em Tóquio – para se tornar escritor a tempo inteiro.

Para cada romance seleciona matéria-prima de uma das suas, por si designadas, gavetas mentais de ideias, memórias, personagens. Os capítulos 4 e 5 desvendam um pouco esse processo criativo e original. Na verdade, é provável que os que procuram receitas (não há, já se sabe) se sintam dececionados. Talvez não sejam os únicos.

No capítulo 7 – Uma ocupação infinitamente física e individual – reforça a importância, para si, de manter o corpo saudável e em boa condição física para ser capaz de se sentar durante horas e horas a escutar o que tem guardado nas suas gavetas mentais. Murakami descreve o processo de trabalho exaustivo por que cada obra passa, implicando, pelo menos, quatro revisões. A primeira versão é escrita livremente, sem um roteiro definido. Na segunda, elimina as eventuais contradições das personagens; na terceira, adiciona detalhes aos cenários e ajusta os diálogos; e, na quarta, faz correções gerais antes de deixar o texto “descansar” e fazer a última revisão.

O tema do capítulo 3 – A propósito dos prémios literários – é o principal motivo para a classificação atribuída. Arrisco a dizer que, para a maioria dos fãs (em que me incluo) acaba por ser irónico que, juntamente com Philip Roth, Murakami seja visto como um eterno candidato ao Nobel de Literatura.

Desde Sputnik, meu amor (2005, Casa das Letras) que a sua escrita envolvente me impele a ler de uma assentada a maior parte dos livros que me chegam às mãos. Agora, ao ler as técnicas a que o autor recorre fica, de certa forma, justificado o sentimento ambivalente que alguns dos livros me causaram. Com efeito, livros houve em que me questionei se a fraca qualidade do texto em português se devia à tradução se à redação original. Mas como reconhece o autor, isso nunca impediu que continuasse a ler as suas histórias fantásticas, com enredos originais e repletos de personagens fantásticas, excêntricas e solitárias.

Por isso, os leitores que são muitos e também eternos admiradores do escritor não precisavam de um tão extenso relambório de alusões sobre pertencer ou não aos círculos literários, ou sobre o porquê de ser ou não ser nomeado para mais prémios. Bastava, talvez, ficar a ideia de que sim, senhor, se sente frustrado pelas críticas que recebeu, em especial no Japão, e por não ser reconhecido como escritor de primeira linha no seu país – que justificam o capítulo 11 – Ir para o estrangeiro: novas fronteiras. Nós, os leitores não japoneses, agradecemos essas opções por viver além-mar e ansiamos por mais e novos romances.

No final, talvez apenas reste a este, e a outros grandes romancistas:

Against criticism we can neither protect nor defend ourselves; we must act in despite of it, and gradually it resigns itself to this” (frase atribuída a Goethe).

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