Fique culto neste Verão

O equívoco minimal-repetitivo do gorila que está sempre fora do seu devido lugar

por Clara Pinto Correia // Julho 23, 2024


Categoria: Opinião

minuto/s restantes

A hereditariedade é governada por tantas leis ou condições desconhecidas
que até parece agir de maneira caprichosa.

Charles Darwin


Fique estranhamente culto nesta Verão

ESTE SABER VAI OCUPAR UM LUGAR COMPLETAMENTE VAZIO

A partir do último livro de Charles Darwin, THE ASCENT OF MEN & THE SEXUAL SELECTION

No contexto de uma nova tradução, revista e comentada, de todas as obras de Darwin, que entrará em publicação a partir de Dezembro de 2024 na editora Exclamação


Esta é uma história muito antiga, de traços marcadamente universalistas, onde a narrativa costuma ter mais do que três personagens: primeiro, a deusa, ou rainha, ou fada madrinha, protectoras de um principezinho que vai subir a escada da perfeição até ao cimo, mas não conseguirá fazê-lo sozinho; depois, o primeiro autor que é capaz de inventar estes cenários com escadas de perfeição que é necessário subir até ao cimo para que os nossos antepassados se transformem em nós; e, finalmente, o público culto que lê e debate estes livros, concorda ou não concorda com eles, e se diverte com frequência a resumir as suas ideias em cartoons hilariantes.

Esses mesmos cartoons, no entanto, perdem completamente a graça quando são associados ao livro errado, e assim fazendo nos baralham as pistas. Este é, por excelência, o caso do cartoon em que Darwin é um gorila, que aparece com uma frequência espantosa na capa de variadíssimas edições modernas de A ORIGENS DAS ESPÉCIES, nas mais diversas línguas europeias – quando, se pensarmos nisso durante cinco minutos, aquele desenho nunca faria sentido na capa daquelelivro, masapenas no livro que se lhe segue. Eu própria tenho uma ORIGEM DAS ESPÉCIES francesa dos anos 80, publicada em dois volumes, e a capa do primeiro volume é logo o famoso gorila com cara de Darwin. Como se algum detalhe desta cronologia fizesse sentido.

É indecente insistirem em baralhar os jovens que continuam a querer deixar a sua pequenina marca nas Ciências da Vida desta da maneira.


Embora todos os cartoons onde Darwin (ou alguns dos seus apoiantes) apareçam hoje associados à ORIGEM DAS ESPÉCIES, a verdade é que essa associação nos induz seriamente em erro. É inegável que o livro causou um frisson enorme em toda a Europa e logo a seguir na América. Embora não diga nada a este respeito, foi por várias vezes utilizado como sendo, no humano, a explicação da formação, nascimento, dureza, e sobrevivência das mulheres. Houve missionários, sobretudo em África, que usaram a selecção natural para explicarem que, formando grandes grupos de amigas tal como as hienas formam alcateias com grandes números de fêmeas, as mulheres treinassem secretamente nesses grupos as artes da sobrevivência, da obtenção e da divisão justa de alimentos, da medicina caseira elevada ao seu mais alto nível, bem como da leitura e discussão dos Clássicos[1] e das suas armas[2]

Mas não foi neste livro que Darwin falou da questão de o homem descender do macaco.

No entanto, houve anteriormente “Livros do Macaco” de outros autores antes, que causaram o escândalo que seria de esperar por muito incorretos que ainda estivessem. Também se debateram acaloradamente inúmeras “Teorias do Macaco” enquanto iam saindo várias edições da obra de Darwin. De todos estes, o debate mais notável travou-se entre o melhor anatomista do seu tempo, Richard Owen, e o melhor porta-voz da ciência natural em Inglaterra[3], Thomas Henry Huxley, que veio a abraçar e defender a teoria evolutiva de Darwin com tal fervor que ficou conhecido por Darwin’s Bulldog. O público acompanhou estas trocas de argumentos – bons argumentos, de parte a parte, vindos de homem de ciência segura – com um entusiasmo colectivo que pode ser difícil de entender nos dias de hoje, mas se compreende bem na altura. E se os macacos tivessem fé?

Owen defendia existir uma nítida discrepância entre os componentes cerebrais do macaco e sua distribuição e os do homem, provando que o homem se erguia acima de toda a Criação, sozinho numa classe superior à parte. Huxley defendia que esses componentes estavam presentes em todos os Grandes Primatas, exactamente no lugar onde estavam no homem, e o mesmo acontecia até em macacos menos desenvolvidos. Isto provava que o homem não se distinguia da restante Criação – com todos os problemas éticos, morais, espirituais e intelectuais que o conceito levantava à Europa do seu tempo. Huxley e os seus aliados acabaram por ganhar o debate, mas deixaram o campo de batalha cheio de cadáveres.

Um campo de batalha cheio de cadáveres nunca é bom para o progresso de uma ideia.

Sempre muito timorato, Charles Dickens, o escritor mais amado de todos os ingleses dos seus tempos, fez involuntariamente um grande favor a Darwin quando deitou água na fervura e acalmou os espíritos afirmando que a origem das espécies através da selecção natural era uma daquelas ideias brilhantes, que só os que não temem o trabalho e são audazes são capazes de conjurar, que de tempos a tempos vêm à superfície, norteiam o pensamento dos povos, têm o seu período de lugar ao sol – e depois somem-se no nevoeiro sem deixar vestígios, deixando tudo como era antes.

Observando toda esta agitação, Darwin sabia, sem qualquer dúvida, que escreveria o seu próprio “Livro do Macaco” mais tarde. Mas a ORIGEM DAS ESPÉCIES não é nenhum “Livro do Macaco”.

No entanto, se o autor quisesse poderia facilmente ter sido.

Aquele olhar irresistivelmente assustador de Darwin na caricatura do gorila mostra-o tão poderosamente seguro de si que, se não pagou explicitamente a algum artista menor para associar os seus traços humanos com as características do impressionante Grande Primata que afinal existia mesmo[4], então é, pelo menos, exactamente o que parece[5]. É sem dúvida um olhar de triunfo. Pela primeira vez na sua vida, está a considerar a possibilidade de tomar os comandos do lugar da selecção natural, para fazer tudo andar muitíssimo mais depressa. Darwin começou a refletir devagarinho, quando voltou da viagem do Beagle já tinha a Selecção Natural esboçada na sua cabeça, mas, consciente da violência com que a Inglaterra Vitoriana ia receber todos estes novos desvios à norma, em vez de se precipitar para a publicação dos seus resultados ficou a ver o que é que acontecia aos seus pares que também propunham modelos de Selecção Natural, que novos espécimes eram descobertos nos mundos longínquos[6] e o que que é que os seus descobridores diziam sobre eles, e ainda, pois que isso conta sempre na altura de pedir financiamento às Academias e à aristocracia, o que é a quota-parte de maledicência  que vive e respira livremente em cada um de nós ia contanto, com cada vez mais audácia, sobre o dia-a-dia destas infames caças ao dinheiro.

E, seja por caça ao dinheiro seja por assegurar o respeito de suficientes colegas, Darwin não ia entrar a matar e escrever, logo à partida, um livro que diz taxativamente “o homem descende do macaco”.  Em 1859, o seu professor mais estimado, Adam Sedgwick, a quem Darwin mandou uma das primeiras edições de A ORIGEM DAS ESPÉCIES com uma dedicatória cheia de estima, escreveu-lhe de volta uma longa carta, onde abundam passagens como esta:

A coroa de glória da ciência orgânica é conseguir, através da causa final, ligar o material ao moral. Você ignorou esta ligação; e, se percebi bem a sua intenção, fez o melhor que pôde para quebrá-la. Se fosse possível quebrá-la (o que, graças a Deus, não é possível), a humanidade poderia brutalizar-se, e afundar-se num grau de degradação mais baixo do que qualquer um em que já tenha caído desde o início da sua história registada.”

         Perante esta e muitas outras reacções chocadas e iradas vindas de homens profundamente respeitados por toda a comunidade científica, depois de ter começado a publicar A ORIGEM DAS ESPÉCIES, de ter assustado de morte meio mundo de arcebispos e outros fiéis devotos, Darwin absteve-se sempre de estabelecer qualquer parentesco entre o homem e o macaco nas edições sucessivas do seu livro. Por junto, deixou que todas as ondas de choque e de enorme escândalo andassem à solta à solta e ficassem à vontade para irem formando os novos padrões que permitiram o entendimento generalizado de como funciona a selecção natural no processo da formação das novas espécies, e, com ele, a compreensão cada vez melhor da utilidade dos novos caracteres que os seres vivos foram adquirindo – ou perdendo – ao longo do tempo. Mas nunca falou de como nada disto acontecia especificamente no homem. Não o fez nem na famosa 6ª edição, em que deixou todo o seu quadro evolutivo por ordem, e considerou, por fim, a sua obra acabada.

É de calcular que Darwin já tivesse as suas ideias a esse respeito perfeitamente claras. Enquanto cientista, baseando-se no seu próprio raciocínio e na correspondência com dezenas de correspondentes de vários tipos localizados em todas as partes do mundo, estava certamente pronto para falar de como seria a evolução do homem a partir de um certo tipo de antepassado com vários descendentes. Mas era notório que a sociedade vitoriana que o rodeava não estava, de todo, pronta para ouvir dizer que “o homem descende do macaco”. Observando a tempestade à sua volta desde a primeira hora – desde a publicação de livros muito anteriores ao seu – no que dizia respeito à origem do homem, Darwin limitou-se a dizer que mais tarde, depois de mais estudos, “talvez venha a fazer-se alguma luz sobre o assunto”.

E essa luz data apenas de 1871, quando, passados mais de dez anos de discussões que muitas vezes foram outros colegas que tiveram por ele, Darwin publicou finalmente “A ASCENDÊNCIA DO HOMEM E A SELECÇÃO SEXUAL”, a que o público laico, científico, e religioso prestou uma atenção muito menos raivosa de um lado e do outro das bancadas, mesmo confrontado com a implicação já muito mais aberta de que o homem era um Primata como outro qualquer, apenas sem cauda e com muito menos pelo, aqui provavelmente também por obra da selecção sexual – do arquétipo primitivo, as fêmeas da nossa espécie terão preferido, sistematicamente, os machos com menos pelo e sem cauda; e fenómenos destes podem acontecer porque “podemos admitir que o gosto é flutuante, mas  não é, de todo, arbitrário.

E aqui sim, a caricatura do gorila passa a fazer sentido.

Por isso, e de uma vez por todas, tirem-na da capa da ORIGEM DAS ESPÉCIES, quando ainda ninguém podia ter feito esta caricatura porque em 1859 ainda ninguém sabia se os gorilas existiam mesmo. Passem-na para a capa da ASCENDÊNCIA DO HOMEM, que é o seu verdadeiro lugar. Há já muito tempo que este equívoco deixou de ter graça.

Ainda por cima, é um desrespeito à sabedoria do autor, que conseguiu aguentar-se calado durante várias décadas, à espera de que os seus conterrâneos e colegas se acalmassem, e que os leitores se habituassem de tal forma à noção de selecção natural que incluir o homem no processo já não torturasse os espíritos. Pelo que lhe dizia respeito, claro que ele já sabia de tudo isto há muito tempo. Digamos que desde a sua juventude distante. Num dos seus cadernos de apontamentos preenchidos febrilmente em Londres logo a seguir à chegada da viagem do Beagle, Darwin quase que grita de alegria ao anotar a descoberta da mudança de paradigma que finalmente dá um sentido realista ao mundo vivo:

Platão diz no FÉDON que as nossas ideias imaginárias têm origem na preexistência da alma e não provêm da experiência. Ler macacos em vez de preexistência da alma.

Muito bem visto, Sr. Darwin.

E que sábia estratégia, essa de ficar à espera.

Entretanto Charles Dickens morreu, e nunca chegou e medir a dimensão do seu erro.

Clara Pinto Correia é bióloga, professora universitária e escritora


Exemplos de títulos ou citações baseados em Darwin

“A ascendência do dinheiro tem sido fundamental para a ascendência do homem”?

É preciso ter lata.

“A força mais poderosa na ascendência do homem é o prazer que lhe dá o seu próprio talento. Gosta de fazer bem aquilo que faz, e, tendo feito uma coisa bem, gosta de fazê-la ainda melhor.”

Imaginem, por exemplo, todas as escolas do País…

Extra-história

A falta de senso causada pela

possibilidade de extinção devido ao aquecimento global e

à caça furtiva para roubar o marfim

HISTÓRIA VERDADEIRA DOS TRÊS ELEFANTES AFRICANOS

Estavam três magníficos machos de elefantes africanos reunidos num bebedouro resguardado pela folhagem, trocando impressões em tom soturno sobre o futuro da sua espécie, que cada vez parecia menos promissor. O mais velho de todos recordava-lhes os tempos de Darwin, e das suas considerações sobre a reprodução dos elefantes registadas em A ASCENDÊNCIA DO HOMEM E A SELECÇÃO SEXUAL, em que o velhote considerava que a seleção sexual teria que incorporar truques ainda não conhecidos para limitar o número de animais enormes, tais como os rinocerontes e eles próprios, senão ao fim de mais algumas gerações deixariam de caber no seu habitat natural – e demonstrava tudo isto com tabelas cheias de números incompreensíveis e tudo. Agora o belíssimo rinoceronte branco estava reduzido a um macho, o que era o mesmo que dizer que estava extinto, já, que não poderia reproduzir-se antes de ele próprio morrer de velho. Os outros rinocerontes eram considerados espécies protegidas, tal era a loucura da caça furtiva para lhes levar o corno, que mais de metade das pessoas do mundo acreditava ter propriedades afrodisíacas formidáveis. E eles… da morte de Darwin em 1882 a este ano de 2024… onde o geólogo inglês pensara que as suas populações teriam que ser naturalmente limitadas ali estavam eles próprios ameaçados de extinção, incapazes de perceber a parvoíce das pessoas – que, essas sim, eram cada vez mais – com cada vez menos recursos e menos água…

         … e estavam nesta tristeza quando apareceu entre eles a Entidade Protectora dos Elefantes.

         – Elefantes, elefantes! – disse a Entidade – Não deixem que a tristeza destrua a vossa longevidade! Estou aqui para dar a cada um de vocês aquilo que mais quiser. Tu, elefante mais velho, o que é que mais queres?

         – Ah! – disse o elefante – Quero uma tromba muito grande, muito grande, muito grande, que possa atravessar toda a África Subsaariana.

         – Que bonito – respondeu a Entidade – Mas queres essa tromba para quê?

         – Ah! – disse o elefante – Eu quero essa tromba para ir buscar água onde houver água, e aspergir com água todas as partes de África onde falta água, e assim tentar recomeçar a estabelecer o equilíbrio em que vivíamos dantes.

         A Entidade, comovida, deu-lhe um pequeno toque na tromba, que imediatamente ficou enorme, larguíssima, capaz de regar todas as secas africanas. Depois virou-se para o segundo elefante e perguntou-lhe, da mesma forma, o que é que ele mais queria.

         – Ah! – disse o segundo elefante, sem a mínima hesitação – Eu quero umas orelhas tão grandes, tão grandes, tão grandes, que possam fazer sombra sobre savanas inteiras e ponham os ventos a correr sobre o equador por forma a moverem as nuvens e provocarem as chuvas na altura certa.

         E a Entidade, sempre muito comovida, tocou-lhe nas orelhas, que ficaram logo de tal forma enormes que quase permitiam ao animal levantar voo com elas. Finalmente, chegou a altura de perguntar ao terceiro elefante o que é que ele mais queria.

         Ah! – respondeu logo o terceiro elefante, também ele sem a mínima hesitação – Eu quero umas pestanas tão compridas, tão escuras, tão enroladinhas, tão bonitas, que todos os outros animais parem só para me verem passar.

         – Mas… – perguntou a Entidade depois de uns segundos de surpresa, enquanto os primeiros elefantes escutavam com toda a atenção – Tu queres essas pestanas para quê, terceiro elefante?

         Ah! – respondeu o terceiro elefante, fechando os olhos num sorriso apetitoso ao mesmo tempo que cruzava as patas da frente – Mariquices.


[1] No caso de grupos de mulheres brancas, onde pelo menos uma ou duas fossem capazes de ler para as outras – e as outras fossem capazes de entender o enredo daquelas estranhas histórias. Os outros Grupos de Mulheres serviam para quaisquer selvagens, e eram uma boa demonstração da tendência universal das Mulheres para o secretismo.

[2] Se estão interessadas em armas, é porque não estão interessadas em nada de bom. É evidente que estão cercadas por animais ferozes, mas nunca é essa a primeira ideia que ocorre aos missionários.

[3] E também o homem que cunhou a palavra AGNOSTICISMO – o não é propriamente uma brincadeira de crianças para o período em causa.

[4] A existência do gorila foi discutida até muito tarde. Embora o animal figurasse em muitas lendas, só mesmo a partir de 1864, quando o missionário americano Thomas Savage trouxe alguns crânios do Gabão, é que os cientistas obtiveram provas materiais da sua existência. Um dos primeiros grandes anatomistas a conseguir reconstituir um gorila por inteiro a partir de material recebido pelo Museu Britânico em 1861 foi exactamente o anatomista Richard Owen, que publicou a sua monografia sobre o gorila em 1865.  As descrições da famosa postura bípede do macho maior, quando enche o peito de ar e lhe bate com os punhos produzindo um som semelhante ao se um tambor, ao mesmo tempo que solta um urro possante destinado a afastar os intrusos, demoraram o seu tempo a ser levadas a sério, e impressionaram profundamente todos os leitores.

[5] Toda esta passagem é pura especulação, mas não deixa por isso de ser provável.

[6] Darwin fez a viagem enorme do Beagle através do mundo; depois disso, no entanto, nunca mais fez uma única viagem.


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