Título
Mandíbula
Autora
MÓNICA OJEDA
Editora
Dom Quixote (Março de 2024)
Cotação
17/20
Recensão
Um grupo de adolescentes de um meio privilegiado, conservador, cria uma irmandade de devoção ao Deus Branco, figura mística que simboliza o terror.
As cerimónias livres ou ritualizadas são oficiadas num "templo" descoberto pela líder do grupo, Annelise. "Quero mostrar-vos uma coisa [… ] e desde então visitavam-no às escondidas, depois das aulas, para pintar as paredes, cantar, dançar ou não fazer nada, apenas para o habitarem durante algumas horas vazias, com a sensação às vezes frustrante, outras vezes excitante […] que pressentiam nas articulações mas ainda não sabiam explicar."
O erotismo perigoso, ousado, da adolescência, é invocado de forma subliminar e é sublimado nas histórias de terror, ensaios para as creepypastas, tributos literários a Edgar Allan Poe e Lovecraft.
As adolescentes saltitam do mundo real, regulado e visceral para o mundo imaginário, secreto e com regras paranormais deslizando do universo pré-adulto para o infantil, atravessando fronteiras sensoriais e psicológicas fluidas, típicas dum estado transitório da adolescência.
As emoções e sensações assaltam constantemente a razão: "[…] Enfim quero assegurar-lhes que não lhe estou a mentir: qualquer pessoa é capaz de distinguir a realidade dum pesadelo, ou o real do imaginário. Apenas os loucos esquecem a diferença, mas eu não estou louca. Sei o que vi. Além disso, mesmo que o tivesse imaginado, mesmo que essa aparição branca estivesse estado apenas na minha mente, porque teria de ser menos real? A minha mente existe e tudo o que ela projecta sobre o mundo também. […] Porque no fim de contas o que importa não é o real mas sim o verdadeiro."
Annelise, com a mandibula de tubarão na fronte, roubada do espolio de ciências naturais do colégio, uma coroa de força predatória, primitiva, metamorfoseia-se em sacerdotisa pagã.
O triângulo de jovens mulheres, as duas 'bestfriend forever', Annelise e Fernanda, e a infeliz e insegura professora Clara, partilham relações disfuncionais com as progenitoras, de diferentes expressões: indiferença, humilhação e controlo. Esse laço invisível e oculto, motor de sentimentos de vazio, abandono e perda, despoleta a traição de Annelise, o rapto de Fernanda e a loucura temerosa de Clara admiradora de Rimbaud: “A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo, escreveu o poeta em Uma Temporada no Inferno".
O medo surge como uma vertigem de desejo e rejeição controlada pela dor e pelo risco ritualizado, uma liturgia iniciática. "Mas o medo era biológico […] e possuía um idioma sem gente".
A imagem poética da mandíbula simboliza a relação voraz, por vezes predadora no sentido literal e metafórico, das relações de 'amitié amoureuse' entre mulheres e entre mães e filhas, uma narrativa mítica de dor, erotismo e 'dark side of the soul'.