EDITORIAL DE PEDRO ALMEIDA VIEIRA

Gouveia e Melo, os lacaios e o Jornalismo castrado numa bandeja

clear wine glass

por Pedro Almeida Vieira // Julho 31, 2024


Categoria: Opinião

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Desde 2008, nos registos da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista (CCPJ) – que inclui a actual época, da maior promiscuidade entre jornalismo e negócios, de deontologia amoral e de atropelos de ética –, apenas se contabiliza uma repreensão escrita contra um jornalista, neste caso uma jornalista de uma rádio alentejana, por reiterado plágio de trabalhos de colegas da concorrência.

Provavelmente, pela canina vontade dos membros da CCPJ – a começar pelo Secretariada e a acabar na Secção de Disciplina – haverá um segundo nome, e logo primário, apesar de décadas de carreira no jornalismo, incluindo periódicos então no topo: EU.

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Claro está que muita água passará por debaixo da ponte – e o caso, agora em fase de acusação, que demorou ao relator um ano, deve seguir para o tribunal administrativo se as mesmas pessoas que agora me acusarem me quiserem aplicar uma sanção, uma vez que a CCPJ se rege por normas do Direito Administrativo, mesmo se os seus membros considerem que ali podem fazer o mesmo que (e bem ou mal, nesse caso não me interessa) fazem nas suas respectivas casinhas, apartamentos, moradias ou vivendas.

Confesso – não qualquer culpa ou falha – que não lhes facilitei a vida. Desde o meu regresso ao jornalismo em 2021, depois de um longo interregno, que, através do PÁGINA UM, tenho causado arrelias aos senhores e senhoras jornalistas que sempre estiveram ali na CCPJ a fazer pela vidinha e a fazer de conta que há regulação, mas que fecham olhos aos fortes, e arregaçam a dentadura aos que eles consideram fracos. Obter informação sobre o quotidiano e a acção da CCPJ tem sido uma travessia que tem levado o PÁGINA UM a intentar queixas na Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) e ao tribunal administrativo. Uma vergonha quando uma das entidades mais obscuras da Administração Pública é uma entidade exclusivamente liderada por jornalistas.

Também fiz questão – ‘crime de lesa-majestade’ – de colocar em causa os méritos, que eram legalmente necessários para o cargo, da actual presidente da CCPJ, que pode ser senhora simpática e esforçada, mas que chegou ao cargo como estagiária de advocacia, sem currículo académico nem técnico, e um colossal ‘chumbo’ no acesso à magistratura. A senhora tem movido mundos e fundos para me castigar – e no caso dos fundos, dizem-me duas fontes credíveis, que ela quer (ou quis) que os trabalhos de um advogado que contratou fossem pagos pela própria CCPJ… E não são montantes baixos, que os honorários de ‘advogados à seria’, que não é o caso da Doutora Licínia Girão, se fazem pagar bem.

Miguel Alexandre Ganhão, editor do Correio da Manhã e da CMTV, foi o relator da acusação. Notem: um dos responsáveis editoriais de órgãos de comunicação social que foram denunciados por práticas de promiscuidade (aqui e aqui) foi quem instruiu o meu processo de acusação, e vai agora ‘julgar-me’.

De igual modo, estou agora nestes preparos de uma repreensão por escrito, porque recusei uma saída airosa: o Papa veio cá de visita à terrinha no Verão passado, para abençoar o povo, e a CCPJ ‘ofereceu-me’ um brinde para o meu processo disciplinar então em fase de instrução: amnistia. Houve 15 jornalistas que aceitaram esse brinde. Eu não, porque não se anda no jornalismo para receber bênção do Papa nem de ninguém. E nem agradeci: pelo contrário, mandei publicamente que metessem a amnistia ‘onde o sol não brilha’. Parece que, diz agora a acusação, que nem sequer poderia fazer isso, porque era uma oferta secreta, tudo é secreto. Estou-me a recordar de uma instituição secular onde o secretismo dos processos era sagrado: a Inquisição!

Mas, afinal, vamos ao motivo – ou crime – para a minha iminente ‘condenação’ – que seria pelos ‘meus pares’ se aquele grupo que ‘infecta’ a CCPJ fosse por mim reconhecido – a uma repreensão escrita com averbamento, ficando assim às portas de uma eventual suspensão da carteira profissional (imagino os Moet & Chandon ou Barca Velha que se abririam, se se avançasse depois para esse patamar).

Tudo começou – que raio de ideia a minha, ? –, porque decidi pedir documentos administrativos à Ordem dos Médicos sobre uma campanha de solidariedade em tempos de pandemia que envolveu 1,4 milhões de euros e que me ‘cheirava a esturro’.

Depois, não me sendo concedidos, apresentei queixa à Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA).

Como mesmo assim não me deram acesso aos documentos, recorri ao Tribunal Administrativo de Lisboa.

Enfim, fui arranjando ‘lenha para me queimar’: fiz três coisas que um verdadeiro jornalista deve fazer, embora a esmagadora maioria dos jornalistas já nem faça a primeira: pedir formalmente documentos administrativos em moldes que anuncia que haverá passos seguintes se não houver resposta satisfatória.

Tudo tem valido para ‘apagar’ o impacte e denegrir uma investigação jornalística que se baseou em documento apenas obtidos depois de intervenção do Tribunal Administrativo. ‘Queimar’ o mensageiro tem sido uma acção concertada.

Após o acesso aos documentos que a Ordem dos Médicos – então liderada pelo actual deputado do PSD Miguel Guimarães – e a Ordem dos Farmacêuticos – então liderada pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins – foram obrigados a me facultar, analisei e interpretei essa informação, e fiz aquilo que poucos jornalistas fazem: revelei, sempre com base em documentos que permitiam escrever o que escrevi, entre muitas outras coisas, uma combinação entre o então líder da task force da vacinação contra a covid-19 e o bastonário da Ordem dos Médicos para se administrarem doses a médicos não-prioritários, contrariando as normas da DGS, sem autorizações superiores, e envolvendo o pagamento de cerca de 27 mil euros ao Hospital das Forças Armadas. Recorde-se que Gouveia e Melo tinha então funções atribuídas no Estado-Maior das Forças Armadas. E esta ‘ajudinha’ à Ordem dos Médicos foi convenientemente compensada com elogios e prémios.

Para a escrita dos artigos, ouvi quem considerava dever ouvir, mas como comentários, e não como contraditórios (documentos oficiais não têm ‘contraditório’), mesmo tendo em conta que a esta notícia, tal como outras neste dossier de investigação, se baseava em documentos administrativos. O Ministério da Saúde – que era o responsável máximo do processo de vacinação, até porque à data dos eventos em causa a task force nem sequer tinha competência para aquele tipo de autorizações – decidiu nem sequer responder a dois pedidos de comentários.

No decurso desta notícia, a Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) decidiu em Janeiro de 2023 abrir um processo de esclarecimento. Mais de um ano depois, em vésperas de prescrição (a IGAS aprecia estes procedimentos quando quer) concluiu não haver qualquer anormalidade, mesmo não tendo investigado quem foi mesmo vacinado, enganou-se convenientemente na data de uma norma para aparentar legalidade no processo de vacinação e fechou mesmo os olhos a uma ‘confissão’, em e-mail de Miguel Guimarães, de que um político foi vacinado à boleia. Mesmo assim, a IGAS enviou todo o processo relativo ao pagamento ao Hospital das Forças Armadas, numa prestação de serviços que nem sequer foi registada no Portal Base, a plataforma da contratação pública.

Gouveia e Melo, actual Chefe do Estado-Maior da Armada, foi coordenador da task force. Para a estratégia de ‘limpar’ a sua intervenção num caso revelado pelo PÁGINA UM tem tido outro aliado: a (até agora) inacção do Ministério Público em esclarecer as ilegalidades e irregularidades de uma campanha de suposta solidariedade, com dinheiros de farmacêuticas, liderada por Miguel Guimarães e Ana Paula Martins.

Como resposta, Gouveia e Melo, então já Chefe de Estado-Maior da Armada, decidiu atacar em várias frentes contra mim: queixa judicial (que seguirá agora para julgamento, porque decidi não pedir abertura de instrução), queixa à ERC e queixa à CCPJ.

O Ministério Público acompanhou a queixa judicial sem sequer, aparentemente, mexer uma palha sobre os factos relatados por mim: desde Maio do ano passado, perguntei por várias vezes ao Gabinete de Imprensa da Procuradoria-Geral da República se houve qualquer diligência sobre essa matéria. Nunca houve resposta. No mês passado, fiz formalmente uma denúncia de toda o processo. Não soube ainda nada.

No caso da ERC, como seria de esperar, houve um ‘puxão de orelhas’, numa deliberação inqualificável em Março do ano passado, ‘cozinhada’ em tempo recorde, que mereceu a minha devida resposta.

Faltava completar o ramalhete, e compor mais um ‘favorzinho’ ao Almirante – e limpar um caso de ilegalidades e irregularidades que também mancham a ministra da Saúde e um deputado do PSD –, surgem ‘jornalistas’ que venderam a essência do Jornalismo por menos de ’30 moedas’, e querem-me meter no pelourinho.

Sem pudor nem pejo, a CCPJ quer castrar – mesmo sem aspas – o melhor que o Jornalismo sempre deve possuir para se honrar: a independência para jamais proteger, nem por preguiça ou negligência, interesses instalados; o arrojo de enfrentar os poderes; a coragem de lutar pela liberdade de informação até ao limite (e neste caso até nos tribunais); a persistência na busca da verdade e da justiça. O Jornalismo não é um tribunal nem tem os meios de investigação de uma polícia, mas tem o dever de, com os meios possíveis, revelar casos que devem merecer a crítica e investigação. Tem o dever social de não calar, de ousar pela escrita, pelo som e pela imagem, de causar impacte. Mudança, e não estagnação. É sempre isso que me tem norteado: não deixar, através da escrita, revelar o que está mal e evitar que, nem que seja por adormecimento, nos retirem direitos democráticos aos pedaços.

a man's hand with a handcuffs and a glass of water

Na verdade, não me vejo como herói nem tão-pouco como um eventual herói injustiçado e difamado – até porque uma eventual ‘condenação’ da CCPJ valer-lhes-á mais como vendetta, servindo para lançar um labéu contra o PÁGINA UM, que tem mostrado também os podres da imprensa portuguesa, como foram os casos das revelações feitas em primeira mão sobre as dívidas (incluindo ao Estado) da Trust in News e da Global Media, ou as promiscuidades e gestão amoral em outros grupos, como o Expresso, o Público, a Medialivre e a TVI, apenas para citar alguns.

Vejo-me sim apenas como um jornalista num cenário anacrónico, onde na cúpula da regulação, na CCPJ, estão apenas uns lacaios. Ia escrever uns ‘reles lacaios ao serviço do Almirante Gouveia e Melo’, mas será melhor retirar a parte “ao serviço’ do dito, não vá ele aplica mais um processo com os meios da Armada, até porque, ‘mentes maldosas’ podem associar lacaio a contrapartidas, que estes sempre aguardam – diz-se…


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