COMPLEXO TITANIC

O Eixo do Mal

minuto/s restantes

Estava na rua e vi um amigo. Parei para o cumprimentar.

Ao fim de um minuto, e depois de umas banalidades sobre se a vida corre bem ou mal, e uma ou outra sobre o tempo, passando pelo badminton, perguntou-me por que não fazia eu um texto sobre O Eixo do Mal, o programa da SIC Notícias que se arrasta há anos. 

Disse-lhe que não estava interessado, que não via o programa há muito e que só a ideia de o voltar a ver me deixava mal-disposto. É claro que, às vezes, ainda ouço ou vejo ao longe, num café ou numa sala de espera, os comentadores a dispararem balas secas para algum lado, e até sinto a velha cumplicidade amiga entre eles, o que até podia ter piada. Mas depois, só de ouvir uns minutos, vem logo ao de cima a energia má onda da Clara Ferreira Alves, em que parece que as veias do pescoço vão rebentar para cima da mesa; as banalidades assertivas do Pedro Marques Lopes, com a sua voz tremendamente irritante; as lições de moral em ponto de ebulição do Daniel Oliveira, com o seu ar de sabichão marxista; e as mexidelas neuróticas na cadeira, com alguma verve à mistura, do jovem cinquentão Luís Pedro Nunes. Não mudaram muito desde a última vez que vi um programa completo para aí em 2010. Continuam exaltados a fingir que são cool

Na verdade, as fisionomias não mudaram muito.

Acrescentei ainda que o apresentador não era o mesmo, sobre o qual nada tinha a dizer por desconhecimento da personagem. Mas tinha bom ar, e lembro-me vagamente dele numas entrevistas aparentemente bem conduzidas no Canal Q e já agora, Aurélio é um nome com alguma piada fonética. Este programa não era certamente como os bons vinhos que ficam melhores com a idade. Fiz notar.

Ilustração de Alex Farac

Ele voltou a insistir para que escrevesse um texto, ainda que curto, só para dizer mais ou menos aquilo que acabara de ouvir como resposta. Nem era preciso desenvolver muito, era só para ficar a nota, palavra aliás muito usada no programa, fez-me saber.

Este amigo nunca me levava a sério. Enquanto lhe ia dizendo estas coisas, ele só se ria, mas estranhamente via o programa como um acto masoquista, dizia ele com um flácido sorriso nos lábios. Era o hábito.

Gostava da música do genérico e tinha um especial prazer em tentar adivinhar as roupas que iria ostentar a Clara Ferreira Alves em cada novo episódio, já que tinha alguma irreverência para a idade e até surpreendia nas cores e nas lãs. Disse-me até que já tinha adivinhado umas quantas vezes, num jogo absurdo de adivinhas fashion que mantinha com a namorada.

Também jogava noutros canais e acertava com alguma frequência no prognóstico que fazia aos penteados da Raquel Varela, noutro programa similar na RTP3.

A historiadora do trabalho, garantiu-me o meu amigo, mudava de penteado a cada semana e já lá iam mais de dez anos de programa. Portanto mais de 200 penteados pelo menos, deduzi. Garantiu-me que sim. Mas o que andava eu a perder… Não há cabeça que aguente tanto secador.

Ilustração de Alex Farac

Primeiro, eu não sou critico de televisão, disse-lhe aumentando o tom da minha voz só de pensar nos actores do programa com nome de Bush, ainda não aprendi a moderar-me. As coisas continuam a enervar-me como se ainda fosse um adolescente, embora, tenha já escrito alguns artigos sobre situações televisivas, já que ser critico da televisão é uma redundância, uma obrigação porque toda a gente devia ser critica de televisão por natureza. A televisão nasceu para ser criticada mesmo antes de a ligar. Quem inventou a caixa negra foi um génio, pertencia certamente ao Eixo do Mal. Inventou o melhor sonífero de sempre para que se sonhe acordado. Depois quem desenvolveu os programas de comentário devia ter muita raiva ao mundo.

É verdade que exerce algum fascínio catódico sobre mim claro, a caixa idiota está feita para isso e vejo mais rapidamente os programas cor-de-rosa da Maya que os noticiários e programas de debate. É que nos eixos-do-bem somos obrigados a ouvir, por muito que não queiramos.

O Rui Santos de blazer a falar de futebol consegue ser menos previsível que os do Expresso da Meia-Noite, de camisa e mangas arregaçadas na descontra, mas também calma, não vejo o jornalista desportivo a pregar moral futebolística todas as semanas, era o que mais faltava.

Pareço aquela personagem do Caro Diário do Nanni Moretti que não conhecia as ilhas que deviam visitar, mas sabia tudo acerca delas, inclusivamente onde ficavam as melhores pastelarias, acrescentou o meu amigo em tom de gozo. Nunca via os programas, mas sabia tudo, género síndrome Big Brother em que no fundo toda a gente passa por lá, mas ninguém assume. A coscuvilhice funciona. É universal e a Endemol estudou em Tavistock.

Lembrei-me dessa personagem do filme italiano e ri-me. Aliás, esse filme antigo ataca bem a televisão. Mas em 1994 ainda não havia Internet e redes sociais eram discotecas controladas por profissionais de relações publicas. O mundo mudou.

O Eixo do Mal não.

Ilustração de Alex Farac

Escrever sobre um programa é estar a dar importância ao programa, embora ache que ninguém leia as minhas crónicas-ou-lá-o-que-isso-é, não o posso saber, não estou nas redes, não existo, o que para mim é igual ao litro.

Escrevo porque gosto de escrever e assim posso mudar de estilo quando quiser. Até posso mentir que ninguém me chateia. Posso dizer mal, bem, mais ou menos mal, mais ou menos bem, posso até exagerar que ninguém me censura, muito menos o director do PÁGINA UM, que é um herói contemporâneo. Um Clint Eastwood do Macintosh sem os excessos musculados do americano. Um justiceiro que é preciso levar a sério mesmo que não tenha as paisagens do Texas atrás em planos heróicos e comprometedores como só o cinema sabe fazer. Precisamente uma coisa que me irrita nesses programas é nunca pegarem em nada que saia daqui do jornal online, como se os jornalistas do P1 andassem a brincar aos jornalismo. E por saber disso por dentro ainda me afasto mais. As Lusas e Reuters produzem, os Ricardos realizam, e os Oliveiras actuam. E amanhã será igual.

Mas por outro lado, a verdade é que percebo bem qual o papel atribuído àquela gente no Matrix. Esquecemo-nos muitas vezes, mas todos eles recebem um cheque no fim do mês, ainda que vá ficando cada vez mais magro. O próprio “papel” começa a escassear. Há muitas alterações não só climáticas no horizonte e os comentadores têm de comer, o que torna a compreensão mais compreensível para ser redundante sem ninguém me chatear com o redundamento. Para regras, basta ver o Eixo do Mal semanalmente. Quem nos dera que não as seguissem.

Já ninguém é punk? Charles Bukowski era.

Se não houvesse uma Clara haveria outra obscura qualquer, vinda das universidades a fazer o que é preciso. 

Os agentes de casting não param para comer uma sandes mista. O relógio chega a ter mais de 24h. O incrível aqui é o programa durar há tanto tempo. Ser um dinossauro em 16 por 9, catapultado ainda do 4 por 3, há-de ter algum segredo. E não deve ter grandes audiências como aliás muito poucos programas fora dos big brothers, têm. Já para não falar das dividas acumuladas pelos grupos mediáticos que sobrevivem sabe Deus como.

Deus… E o PÁGINA UM.

Todo um mistério… Para quem não leia o PÁGINA UM.

A minha dúvida é se eles sabem do seu papel, se têm consciência do que representam, alguém tem de o fazer, é certo.

Chego à conclusão que se trata de teatro, o problema é que já está toda a gente cansada da dramaturgia e não é fácil mudarem paulatinamente de peça. Os actores vão mudando de vez em quando, parece a série Neighbours. E o Shakespeare aqui não manda nada. Se há coisa que estes programas não têm é elegância. Às vezes é uma gritaria desenfreada, ouve-se na rua.

Lembra mais Marquês de Sade representado pela Comuna.

A Realidade também não é assim tão profícua, pelo menos da forma como a estratégia está montada. Já adivinhamos no futuro próximo as alterações climáticas ainda mais alteradas a ser debatidas com a culpa do Trump e da ganância capitalista, as fake news, as eleições dos EUA, as observações em falsete do Pedro, as indignações do Daniel, as irritações nervosas com olhares fugidios para o tecto da Clara, e o ar blasé como se nada tivesse a ver com aquilo do Luís.

Uma seca expectável descomunal.

Ilustração de Alex Farac

E os cães ladram, mas qualquer dia as caravanas passam-se.

Se é para jogar a sério ao Matrix mais vale ver uns putos conspirativos da terra plana no YouTube, é bem mais divertido, ao menos tem semelhanças com um filme de acção americano, com ritmo, suspense e finais inesperados. Se é para seguir a telenovela informativa do costume, aconselho os velhos e passarem pela plataforma e deixarem-se ir pelo algoritmo, que hão-de aprender alguma coisa, nem que seja que os répteis andam aí, tomam café connosco, os extraterrestres têm a cabeça na Lua e que os pássaros assim como a morte não existem, já que para mim quem não “existe” são estes 4.

Não, definitivamente não vou escrever, disse eu ao meu amigo que se despediu a rir, sem mais uma vez me levar a sério.

Ruy Otero é artista media


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