Centro hospitalar já gastou mais de 1,2 milhões em ajustes directos para obra sempre 'urgente'

Uma serralharia de Guimarães é a única empresa capaz (por três vezes) de ‘tratar’ de um bloco operatório do Hospital de Faro

por Elisabete Tavares e Pedro Almeida Vieira // Agosto 8, 2024


Categoria: Res Publica, Exame

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O caso foi insólito no primeiro ajuste directo. Estranho no segundo. E cada vez mais suspeito ao terceiro. Por estranhas razões, a empresa Custódio de Castro Lobo & Filhos, uma simples serralharia de Guimarães, conseguiu, desde Setembro do ano passado, sucessivos ajustes directos adjudicados pelo Centro Hospitalar Universitário do Algarve, primeiro para instalar um bloco operatório em estrutura amovível, depois para serviços de ‘terraplanagem’ e, agora, para efectuar melhorias não especificadas. Tudo sem concurso, sempre com justificações diversas, e a última mesmo absurda. Certo é que a empresa vimaranense, com sede a 600 quilómetros de distância de Faro, já facturou com este negócio mais de 1,2 milhões de euros.


Já diz o ditado que ‘não há duas sem três’. No caso de uma empresa de serralharia de Guimarães, a permissa cumpriu-se. A sociedade Custódio de Castro Lobo & Filhos conseguiu um terceiro contrato por ajuste directo com o Centro Hospitalar Universitário do Algarve (CHUA), desta vez, para efectuar “melhorias funcionais ao novo edifício do Bloco Operatório Amovível”, sem se saber que melhorias são precisas para uma unidade que terá sido construída, em princípio para ficar funcional, pela mesma empresa, há menos de um ano.

Ao todo, não tendo transcorrido uma volta da Terra ao eixo do Sol, esta empresa facturou já 1.245.495,90 euros em três contratos com o CHUA. O primeiro contrato que conseguiu, em Setembro de 2023, no valor de 800 mil euros, noticiado pelo PÁGINA UM, envolveu a ‘montagem de bloco operatório, duas salas cirúrgicas, em estrutura aligeirada amovível’.

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(Foto: D.R.)

Seguiu-se, no mesmo mês, um segundo e estranho contrato de 199.249,60 euros para a realização de ‘trabalhos de terraplanagem, modelação do terreno e preparação de acessibilidades’, apesar de o alvará registado pela serralharia vimaranense no Instituto dos Mercados Públicos Imobiliário e Construção (IMPIC) não pareça abranger a execução daquele tipo de trabalhos de construção, como o PÁGINA UM também noticiou.

Agora, no dia 1 de Agosto, foi publicado no Portal Base um terceiro contrato, assinado a 20 de Maio, por ajuste directo, entre a CHUA e a Custódio de Castro Lobo & Filhos, no valor de 246.246,30 euros, para efectuar ‘melhorias funcionais ao novo edifício do Bloco Operatório Amovível’. O motivo invocado, desta vez, para a não realização de concurso público pelo CHUA, foi a necessidade de “proteger direitos exclusivos, incluindo direitos de propriedade intelectual“, algo que, por norma, se aplica à compra de obras de arte ou de espectáculos culturais, e não para obras de construção, como blocos operatórios. Instado a comentar este argumento, o centro hospitalar nada disse a este respeito.

Assim, segundo o CHUA, o primeiro contrato com esta serralharia foi feito sem concorrência invocando o o artigo do Código dos Contratos Públicos que admite o ajuste directo quando “em anterior concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação, nenhum concorrente tenha apresentado proposta, todas as propostas tenham sido excluídas […], nenhum candidato se haja apresentado, ou todas as candidaturas tenham sido excluídas” com base em determinados fundamentos.

A serralharia de Guimarães tem um alvará de empreiteiro de obras públicas mas não consta expressamente no IMPIC que esteja habilitada para efectuar um dos serviços contratados pelo CHUA, que envolveu a execução de terraplanagem. (Foto: PÁGINA UM)

No segundo contrato, o da terraplanagem, o argumento usado pelo CHUA foi o da urgência, para não lançar concurso público. Isto sabendo-se que, nestes casos, o ajuste directo só pode ser justificado se “estritamente necessário e por motivos de urgência imperiosa resultante de acontecimentos imprevisíveis pela entidade adjudicante, [e que] não possam ser cumpridos os prazos inerentes aos demais procedimentos, e desde que as circunstâncias […] não sejam, em caso algum, imputáveis à entidade adjudicante”. Para essa opção, não basta invocar, mas tem de se fundamentar; algo que nunca sucedeu.

De resto, antes destes contratos com o centro hospitalar algarvio, a empresa de Guimarães tinha apenas mais um contrato registado, além destes três ajustes directos com o CHUA: um contrato obtido através de um procedimento de consulta prévia, em Junho de 2023, com o Município de Alijó, no valor de 23.070 euros para ‘Aquisição de serviços de restauro e recuperação de peças para exposição do Centro Interpretativo D`Olival ao Azeite de D`Ouro’.

Saliente-se que esta empresa vimaranense tem uma estrutura familiar, sendo gerida por José Dâmaso da Cruz Castro Lobo, um empresário que também é dono da Mabera, que comprou a histórica têxtil Coelima, em 2021, para a recuperar. No seu portfólio, disponível no site da empresa, a serralharia vimaranense apresenta como clientes o Hospital de Braga, apesar de no Portal Base não constar nenhum contrato correspondente. No entanto, é comum existirem subcontratações em obras de grande envergadura.

Destaque-se que o Hospital de Braga chegou a ser presidido pelo actual presidente do CHUA, o economista João António do Vale Ferreira, entre 2011 e 2019, mas o centro hospitalar algarvio sempre se escusou a esclarecer o motivo para que fosse escolhida uma serralharia a 600 quilómetros para montar um bloco operatório, que requer conhecimentos específicos.

(Foto: D.R.)

Com efeito, questionado pelo PÁGINA UM sobre as razões da ausência de concurso público nestes três contratos e como foi feita a escolha da empresa vimaranense, a Unidade Local de Saúde do Algarve apenas afirmou, através de respostas enviadas pelo gabinete de comunicação, que “realizou os procedimentos de contratação, a que se refere no estrito cumprimento da lei em vigor e da sua missão e na proteção de direitos e obrigações exclusivas dos Contratos Públicos”.

Adiantou que “a escolha do procedimento contratual adotado para cada um dos contratos, encontra-se devidamente fundamentada, considerando a exigência das necessidades de garantia de prestação de cuidados em segurança, por parte do órgão competente para a decisão de contratar”, sem responder directamente às questões colocadas.

Fonte oficial deste centro hospitalar indicou ainda que, desde o início de atividade do bloco operatório amovível, “foram já realizados 481 procedimentos urgentes em ambas as salas cirúrgicas, atendendo a que o Bloco Operatório Central da Unidade Hospitalar de Faro não estará operacional até final do corrente ano por motivo de obras adjudicadas a outro concorrente”.

(Foto: D.R.)

“A alteração do Plano de Contingência Clínico da obra principal para salvaguarda da segurança na reabilitação de forma muito mais célere no Bloco Central no Edifício Principal, considerando a adaptação das respostas cirúrgicas ao plano de proteção radiológica e reforço do circuito do doente, motivou a decisão de adjudicar os trabalhos necessários à empresa responsável pela construção do novo Bloco Operatório em causa”, diz fonte do centro hospitalar algarvio, acrescentando que só dessa forma ficavam garantidos “os direitos e obrigações de garantia relacionados com a montagem e fornecimento dessa instalação, e assegurando a celeridade e qualidade desejadas”.

Este tipo de procedimentos, de sucessivos ajustes directos, transformando em fases a execução de um projecto, constitui um expediente de duvidosa legalidade, sobre o qual o Tribunal de Contas ainda se pode pronunciar. Caso tal não suceda, será provável que haja um quarto ou quinto contrato, e que a facturação improvável desta serralharia de Guimarães em serviços num hospital do Algarve, a 600 quilómetros de distância, e sem concorrência, continue de boa saúde.


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