Aquele (meu) querido mês de Agosto

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Ruy Otero|22/08/2024

Num destes sábados de Agosto, a RTP 2 emitiu um memorável filme de Miguel Gomes – Aquele querido mês de Agosto, de 2008, e revi-o.

Com o passar dos anos, este filme ainda parece que ficou melhor, como se surgisse de uma boa casta cinematográfica, que com o tempo vai ganhando mais corpo e elegância (fazendo uma analogia com o vinho, e com os seus eternos segredos).

Sem dúvida, que o tempo é amigo da boa arte.

Ajusta-se e consagra-se nela e pode, no caso de ser compreendido, tornar-se no melhor ansiolítico para os artistas.

De uma forma geral, os filmes de Miguel Gomes têm qualidade e são extremamente bem pensados por alguém que passou pela crítica de cinema e que se habituou a ver filmes para escrever sobre eles.

Indubitavelmente, o cinema também é escrito, é palavra, e aqui temos um exemplo disso, fazendo, de uma forma muito sóbria, tudo encaixar em tudo, até Portugal lá está metido ao barulho, a fazer de Portugal. É um filme sobre o tempo, em que a espera e a falta de dinheiro verdadeiro ou não, contribuem e supostamente mudam a acção. Um filme que tem a urgência de ser cinema, mais do que a de agradar aos produtores. Isto podia ser a sinopse, ou mesmo a falsa sinopse, já que a longa-metragem vive dessa dicotomia entre realidade e ficção, elevando a arte a um ponto-chave, assinalado vezes sem conta por Jean-Luc Godard com as suas célebres afirmações acerca do documentário e da ficção, sendo que o ideal para o suíço é um integrar-se no outro.

Lembro-me de outro singular filme de Joaquim Pinto Uma Pedra no Bolso –, cuja acção também se desenrola durante o Verão num Portugal específico, em Porto-de-Barcas, vila piscatória que conheço bem e onde também em tempos já pesquei imagens. Um filme talvez esquecido, que teve presença na RTP2 em Agosto, há um par de anos, mas que imaginamos o tempo a fazer o seu trabalho, para que estes fantasmas melancólicos ganhem corpo, já que alma têm de sobra, sendo mesmo essa alma a marca de uma boa parte do cinema português de autor.

Vem-me à memória ainda Os Contos de Verão do super-francês Éric Rohmer, passado nas mágicas praias da Bretanha, em que a nostalgia e a palavra são iguarias do cardápio burguês e culto, tipicamente gaulês, como é hábito em Rohmer. Claro, há muitos outros filmes cujo calor contagia e derrete o ecrã. O Pecado Mora ao Lado de Billy Wilder é um deles e “queima” definitivamente o televisor sempre que aparece por aí, mas deste já se disse tudo e a Marylin Monroe tem direito ao seu descanso, uma vez que em vida não o conseguiu sem a ajuda de benzodiazepinas, imortalizando-se qualquer dia mais por elas do que pela sua presença nos fotogramas.

Pessoalmente, adoro ver um bom filme de verão… No Verão. Mesmo se o céu não anda tão azul, chegando mesmo a não sair durante dias a fio dos tons cinzentos característicos desta época… Gris.

Outra era virá, se o cinema, ao contrário de Deus, assim o quiser. A Cinemateca Portuguesa está lá para nos sussurrar ao ouvido, a doce melancolia da morte anunciada do cinema, que nunca mais chega.

Em qualquer um destes quatro filmes que enumerei, é o amor que anda no ar, ao invés de drones. O filme de Miguel Gomes, como entidade própria que já é, percebeu que o cinema e a vida mais os sons que só existem na cabeça das pessoas sensíveis, têm mistério suficiente para não mais nos abandonarem os pensamentos. O cinema é um espírito com o qual os cinéfilos fazem telepatia. Porque o cinema também é memória, sobretudo memória futura para que a poética (seja ela qual for) nunca desapareça no meio da convulsão geral em que mergulhámos definitivamente, com guerras e ódio por todo o lado, tendo sido esta a marca destes últimos tempos bestiais.

Aquele Querido Mês de Agosto vale e até “informa” mais do que um ano de telejornais e tem uma acção realisticamente climática sobre o espectador, coisa que a realidade vai paulatinamente abandonando, porque se transforma ela mesmo numa imitação de uma rede social.

Neste filme ambicioso disfarçado de filme humilde, que tem a acção em terras da Beira Alta, durante o Verão, quando os emigrantes voltam para as férias e é tempo de bailaricos, procissões e incêndios, o povo não é só vítima ou testemunha, como habitualmente é tratado pelos media em geral. Aqui a realidade grita pela existência e saboreamos um documentário a fazer de ficção, senão mesmo de uma ficção a fazer de documentário, para citar o crítico Luís Miguel Oliveira a citar Godard.

Aqui, o povo tem voz e canta a sua angústia através da lente justa e sonora do realizador e da sua equipa. Mesmo tratando-se da cruel realidade a que ninguém escapa, no qual se exalta o realismo mágico, mesmo que a ideia de terror sobrenatural parta mais de um trecho de um filme, que aparece dentro do filme, que da própria encenação de Miguel Gomes, trazendo para a sala uma preocupação estilística, participe de uma visão estética da vida que não exclui de todo a experiência do real.

E alicerçado nesses degraus de continuidade, o fantástico filme vai cavalgando e surpreendendo por entre rituais em que até os próprios incêndios igualmente o são, como se vê nas cenas da torre de detecção e no plano dos botões luminosos no centro de controlo.

Importante para a compreensão conceptual do filme, são travellings, como aquele em que a câmara acompanha de frente a carrinha de bombeiros com a música de Toni Carreira Sonho de Menino – a instalar-se paulatinamente na acção.

Em poucos filmes, o som e o tratamento acústico estão tão singularmente presentes para habitar o campo narrativo, em que se ouve, mas pode não se ver, e escuta-se de “olhos bem fechados” (para citar Kubrick), devido às cinzas orgânicas que parecem sair do ecrã ou da tela. Esta é a poética do filme que arde, mas não se vê.

A banda sonora assinalável é fundamental para o desenvolvimento das histórias fragmentadas, sobretudo da história central em que um pai, uma filha e o seu namorado-primo se relacionam, trazendo sempre novidades narrativas, até porque os próprios protagonistas fazem parte de uma banda musical que deambula pelas aldeias da zona, cantando-se e interpretando-se a si mesmos aludindo aos musicais clássicos.

A banda sonora tem títulos como: ‘Escravo do teu encanto’, ‘Som de cristal’, ou ‘Passear contigo’, todas elas bastante reconhecíveis pelo público em geral.

O verdadeiro e real(?) Vasco Pimentel que faz dele próprio a fazer dele próprio, dá-nos uma lição no fim da película acerca da eternidade e dos fantasmas que habitam os filmes, numa dimensão em que a imagem se apaga no som. A tecnologia desaparece perante tamanha grandeza e apenas prevalece aquilo que queremos acreditar ser a vida. A vida para lá de todas as vidas, a vida em que, como dentro dos filmes nunca nada morre. É sempre tudo a fingir. 

Esta película não parou no tempo. Esta e outras obras cinematográficas feitas com arte, fazem, sim, parar o tempo. E como o Verão me torna melancólico, vou parecê-lo e dizer que o cinema também é amor e com ele mantenho uma relação de fidelidade amorosa ao longo dos anos, sabendo e aceitando a indústria e a sua artificialidade, e até reconhecendo a abundância de criminosos nefastos como o Harvey Weinstein que produziu filmes que hoje são autênticas elegias ao amor, como Shakespeare in Love, ainda que não seja grande filme.

O cinema perdoa, daí a sua possibilidade de catarse. Se a vida fosse um filme, salvava-se, mesmo sabendo que o cinema foi o principal agente manipulador e transmissor de mensagens subliminares para o século XX e veículo de persuasão com sede em Hollywood. Mas a contradição é a flor e a pistola dos artistas e a realidade ganha sempre depois de vermos um bom filme.

Ainda assim, sabemos que o cinema traz valor acrescentado e é muito mais do que isso, e esse cinema-muito-mais-do-que-isso é onde este filme se inscreve, e não será vítima do novo tecno-mundo, cujos realizadores são anónimos e não precisam de actores, podendo mesmo fabricá-los a partir da A.I. Isso não é Ser Cinema.

Aqui o conteúdo de elementos mágicos ou fantásticos percebidos como parte da “normalidade” pelas personagens não é claro, mas existe, sim, a presença de elementos mágicos algumas vezes intuitivos, mas nunca explicados, ou mesmo a presença do sensorial como parte da percepção da realidade, trazendo uma singular distorção do tempo para que o presente se repita ou se pareça com o passado, baralhando-se cronologicamente. Como exemplo disso temos o “milagre” operado na personagem do pai do Fábio, quando fala na transformação que se deu no seu cativeiro impregnado de dor, ao cruzar-se com a Rainha Santa, feita de cerâmica, durante a procissão quando experimentava o auge da agonia, até ao triunfal cruzamento onde a dor desaparece definitivamente. Não conseguimos saber se aconteceu mesmo ou é produto do argumento ficcionado.

Talvez pertença aos dois, e é isso que as novas tecnologias digitais inteligentes não percebem.

Uma personagem inesquecível é o Paulo Moleiro, que não faz nada, segundo um amigo, mas todos os anos em fevereiro dá um salto da ponte para mostrar que está vivo.

Aquele Querido Mês de Agosto é esse salto que nunca se vê.

Ruy Otero é artista media

Ilustrações de Manuel Silva


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