Título
O livro das despedidas
Autor
VELIBOR ČOLIĆ (tradução: António Gonçalves)
Editora
Gradiva (Julho de 2024)
Cotação
18/20
Recensão
Esta é uma obra marcante que se insere no contexto das narrativas sobre a guerra e o exílio. Čolić é um autor bósnio que vive em França desde que desertou do exército, em 1992, durante a Guerra da Bósnia. Traz-nos uma visão profundamente pessoal e poética sobre a experiência de ser um refugiado e o sentimento de perda que acompanha o exílio partilhando connosco a resiliência e a criatividade em face das adversidades, utilizando a sua escrita como um meio para processar o trauma: “o exílio é exigente. O exílio recomenda: doseia bem a tua visibilidade. Faz-te notar apenas pelas mulheres e não pela polícia. Toda uma arte. Tornar-se um cidadão anónimo, o Senhor ninguém. Suavizar os nossos gestos. Cortar a barba. Mudar de penteado: substituir o estilo da Europa de Leste por outro mais descontraído, mais livre, mais ocidental. (…) Deslocar-se sem fazer barulho, comer em silêncio, falar com suavidade, escrever com gentileza. (…) As pessoas não te perguntam quem és nem como estas. Perguntam simplesmente de onde vens.”
O livro é construído de maneira fragmentada, misturando memórias, reflexões e episódios fictícios, mas que ressoam com a realidade vivida por muitos que, como o autor, foram forçados a deixar o seu país de origem devido à guerra. O protagonista, um alter ego de Čolić, navega por essas memórias e histórias enquanto tenta reconstruir a sua vida no seu novo país. A estrutura do livro não é linear e tem pequenos capítulos onde o autor vai espelhando a natureza fragmentada das lembranças e da identidade do exilado: "Estamos num bar na rua Sainte-Catherine. À nossa volta, o mundo literário, a casta dos escritores. Estou espantado com a monotonia deste mundo. Imaginava-o diferente, mais colorido, mais livre, anárquico. Mas não, os verdadeiros escritores franceses são como eu: desamparados, malvestidos, mal na sua pele. Um mundo insípido, baço. Falam muito disso, até só escrevem sobre isso, mas o seu sofrimento permanece anónimo."
A obra explora a despedida em múltiplos níveis: da pátria, da língua, da família, dos amigos e, em última instância, de uma parte de si mesmo. Čolić escreve sobre o exílio não apenas como uma deslocação física, mas como uma experiência profundamente emocional e psicológica. A guerra, apesar de não ser o tema do livro, está sempre presente como a força destrutiva que desencadeia todas essas despedidas. Há também uma forte ênfase na identidade e na sobrevivência cultural, abordando a dificuldade de preservar a própria identidade enquanto vai sentindo a necessidade de adaptação a uma nova cultura: "Sou o cão da estação de caminho-de-ferro. Passo o meu tempo nos corredores escalavrados e obscuros da Gare de Estrasburgo. Descubro e saboreio a dupla tristeza dos que partem e dos que ficam, circulo na fronteira entre dois mundos. Arejo o meu exílio. Levo-o a passear como um cão que cheirica as árvores no parque e ladra às estrelas. (...) Entre dois comboios, escrevo. Rapidamente. Frase a frase, página a página. Sou uma metralhadora literária. Algures entre Faulkner e Zola, um existencialista que não respeita a pontuação, um homem que tenta reconstituir o mosaico da sua própria vida. Um sobrevivente. O biógrafo do meu próprio destino. Avanço no escuro às apalpadelas, mas a minha coragem não tem limites. Vivo a minha própria literatura.
Como o Primo já está tomado, considero-me um Secundo Levi."
O autor adota uma linguagem lírica e evocativa, entrelaçando a poesia com a prosa para capturar as complexas emoções das personagens. O estilo é, ao mesmo tempo, contundente e delicado, refletindo a dor do exílio e a nostalgia de um lar perdido. A narrativa é permeada por uma melancolia sutil, mas também por momentos de humor e ironia, o que proporciona um contraste interessante e evita que o texto se torne excessivamente sombrio.
A tradução usa algumas liberdades que nos soam estranhas. Por exemplo: “(... ) Impõem-se então duas soluções : emagrecer ou tornar-me um Vasco Santana Júnior .
E como toda a gente bem sabe, eu não sou propriamente um humorista. "
Não era necessário. O livro é, no entanto, imperdível. Um testemunho pungente de um refugiado entre tantos exilados “porque o exílio quase nunca é uma questão de presença. É tantas vezes uma acumulação de sombras, uma história de ausências.”