Calor.
Nada para fazer.
O tédio era uma palavra ainda tida em conta e vinha no dicionário. Ligava-se a televisão em horário nobre, e a notícia principal era… o calor.
Lembro-me, há pelo menos vinte anos, de todos os telejornais abrirem em prime time, num dia normal de Agosto, com os repórteres perguntando às pessoas comuns que estavam nas praias do país, nomeadamente Carcavelos e praia da Rocha (ainda hoje essas praias servem para as mesmas reportagens), sobre o que achavam do tempo que fazia.
Invariavelmente, as pessoas olhavam para o céu, e a resposta era sempre a mesma – que estava calor, que o sol brilhava em pleno e a água, embora estivesse um bocadinho fria, no caso de Carcavelos, ornamentava-se sempre de uma temperatura bastante convidativa para o mergulho. E assim foi durante anos a fio. Todos os anos lá iam os pobres dos repórteres às mesmas praias fazer as mesmas perguntas nos mesmos dias de sol. Tanto que já não conseguíamos passar sem isso. Numa ou noutra época, podia haver uma ou outra variante balnear, como o famoso arrastão de Carcavelos, que até se veio a revelar mentiroso ou exagerado. Mas nada de novo debaixo do sol.
A repórter invariavelmente falava na temperatura, normalmente acima dos trinta graus e incentivava estupidamente os telespectadores a irem até lá, esquecendo-se que a maioria da população estava a trabalhar ou não morava na zona da linha do Estoril ou em Portimão. Depois passava para o pivot, que já podia ser o Rodrigo Guedes de Carvalho ou a Clara de Sousa, e se não houvesse algum incêndio espectacular digno do envio de piquetes, a notícia seguinte podia mesmo tratar-se de uma tartaruga-de-couro salva nas Caraíbas por um grupo de excursionistas japoneses, acompanhada por um piscar de olhos do José Rodrigues dos Santos, caso fosse a pública RTP ou de uma lamechice pegada com melodrama Moulinex à mistura do Rodrigo G. C., o famoso poeta da SIC.
A TVI nos anos noventa andava a rezar noutras paróquias pela falta de audiências até ao milagre do BB e pouco acrescentava ao estilo dominante.
Os leitores estarão a pensar que hoje também se fazem estas reportagens, e é certo, mas até certa altura elas eram totalitárias, conseguiam preencher um telejornal inteiro, não existiam alternativas e actualmente estas notícias e reportagens aparecem no meio de outras, diluídas em formatos informativos cada vez com menos audiência. Até aos anos 2000 (não é óbvio situar), o fenómeno da televisão era determinante, e parecia ser mais credível para os consumidores. Se havia Silly Seasons é porque o mundo estava em silly season e a democracia era tão certinha que se chegava ao pico do Verão e o mundo puro e duro ia de férias.
Dava-se também importância às férias de famosos, por exemplo do Paulo Portas ou do Figo, e os portugueses pareciam gostar de vê-los a beber “refrescos de whiskey” no Algarve. Mais uma vez, é certo que hoje também existem essas reportagens, mas com credibilidade zero. O planeta-Verão já não é acompanhado por uma banda sonora de música ligeira. O mundo comprou outra novela e por isso a presença assídua de fantasmas nestas crónicas.
Nessa época, ainda antes da nova moeda, Santana Lopes era capaz de transformar uma cidade normal como a Figueira, num Rio de Janeiro, tal era o incentivo à dívida e ao Carnaval permanente.
Até o Eric Cantona nos Verões santanistas, não saía da Figueira, arrastando-se espectacularmente na areia do futebol de praia e nas pistas do Casino, antes de se dedicar ao cinema de autor.
Toda esta festarola era sempre acompanhada pelos diferentes canais que viam nessa cidade o exemplo colorido a seguir. O Santana Lopes e a Cinha Jardim tinham um rumo para o Verão dos portugueses. O futuro era para cima, diziam os mais optimistas, o próprio Santana Lopes até falava em altos astrais para a política, até bater com a cara de frente na Serra da Boa Viagem, claro…
Nesse período de fim de século, avizinhava-se sempre o grande acontecimento do Pontal em que os protagonistas do PSD apareciam todos bronzeados em mangas de camisa branca, ou às riscas, a abrir as primeiras hostilidades da época contra o PS, pairando sempre a sombra do Cavaco, que podia aparecer com um carro novo a fazer rodagem, fosse qual fosse o contexto ou a função do algarvio. O Cavaco sempre meteu medo ao PSD.
Neste Agosto também como sempre houve Pontal, e o elenco do costume andou por lá certamente, mas… Ninguém viu. O Pontal não funciona em 4K.
Já nesses anos dourados, o campeonato de futebol começava e os primeiros jogos aconteciam sem grande significado. Convém lembrar que havia poucos canais e o mundo ocidental ainda navegava em algum romantismo ainda que abstrato, em que as coisas tinham nome de coisas.
Mas também existiam Big Show Sics e a canção do Iran Costa, “É o Bicho”, animava as discotecas com coreografias estúpidas e infantilizadas, embora os psicólogos de serviço já adivinhassem ali algum erotismo inapropriado. Mas sempre dentro do mesmo género soft banana split.
Também havia crises, claro, e pequenas nebulosas, tipo um súbito aparecimento de uma alga na Ria de Aveiro que punha em causa a apanha de amêijoa branca. Podíamos estar em 96 ou 97 e o mundo parecia uma fábula de Walt Disney, em Agosto, ainda com Brancas de Neve e Sete Anões contadas às crianças, houvesse ou não guerras, houvesse ou não hospitais febris, houvesse ou não Clintons com bombardeiros prontinhos a agredir países, ou houvesse mesmo uma pobreza encapotada típica de Portugal. As tartarugas e a venda de bronzeadores estavam primeiro, e as férias eram um direito adquirido, sobretudo em família. As crianças eram entrevistadas para dar boa disposição ao telejornal e 35 graus eram uma bênção da natureza, tornando-se urgente desfrutar a consolidação da euforia perpétua proposta. Hoje, os mesmos dizem tratar-se do Inferno.
Acabavam sempre as reportagens acentuando o cuidado a ter com a hora de mais calor, incentivando os mais velhotes a ficar em casa uma horita ou outra e a beberem muita água, que pelos vistos havia por todo o lado. O mundo de Verão era um carrossel que era preciso manter oleado. Hoje, as horitas são dias a fio, e a água, dos velhotes e não só, é da Nestlé e custa os olhos da cara. O sol parece fazer sempre mal e os raios dourados já não lhes pertencem. O céu é da NASA e do Elon Musk.
Portugal continuava a endividar-se, mas o futuro parecia trazer sempre luz e a dívida permanente era apenas assunto para conversa dos chefes de família enquanto bebiam umas cervejas e comiam uns tremoços nas esplanadas de praia, como se isso fosse uma brincadeira para meninos que desse apenas umas boas piadas de Verão com a finalidade de chatear os comunistas.
A guerra da Jugoslávia só voltaria no Outono, parecia que fechava para férias também, e os grandes acontecimentos paravam porque era Verão, que curiosamente era sempre azul, como a série espanhola do Chanquete.
Anos depois, o mais parecido, mas do lado inverso, foi a pandemia Covid, em que o mundo também fez férias todo ao mesmo tempo, parando guerras, massacres e catástrofes naturais, mas ao invés de as pessoas irem para a praia, foram para casa ver o sol aos quadradinhos. O céu, que fora outrora azul, ficou mais que cinzento e pleno de drones autoritários que até falavam. No fundo, a pandemia foi a Silly Season do Inverno. Ainda hoje não acredito que tenhamos vivido naquela dimensão.
Só de pensar nas regras… do Fauci.
No Verão de 2020 cheguei a ver na televisão, por exemplo, como numa praia do sul de Espanha, um funcionário balnear de megafone na mão assinalava quem devia ou não ir ao banho, tipo “agora a senhora de azul pode ir para a toalha, o senhor de calções pretos pode tirar a máscara e ir dar um mergulho, mas vá em segurança e tire o pano só na água. O menino aí da direita, afaste-se do outro menino, por favor, e deixe de jogar à bola”. Vi também um jihadista suicida a dizer que tinha mais medo duma constipação do que de um soldado da ONU. E que depois, caso fosse contaminado, queixava-se ele, não parava de espirrar para cima da avó, uma velha também jihadista. “Deixa mas é lá isto passar que depois volto a dar uns tiros de bazuca, posso ser jihadista, mas não sou parvo”.
O vírus não foi só digital e assustou mesmo, se não foi de uma maneira, foi de outra. As máscaras do Carnaval da Figueira da Foz foram substituídas por outras bem mais fúnebres.
E, paulatinamente, desde a crise de Setembro de 2001, acompanhada pelo aparecimento da nova euro-moeda, que tem sido um a-ver-se-te-avias digital.
Primeiro, o aparecimento de canais tanto televisivos como na net, não deu descanso às férias, depois o aparecimento das redes sociais, generalizando-se o Facebook por exemplo lá para 2007 ou 2008, que também acompanharam a crise do subprime, começaram a fazer das suas e as comidas exóticas e mesmo o típico bife com ovo a cavalo passaram para o planeta digital para serem comidos com os olhos. Já para não falar dos pôres-do-sol que se viam ao espelho nas lentes empoeiradas dos mortais, tornando-se banais e menos laranja.
De lá para cá, os Verões vão ficando mais “gélidos” (quentes, segundo a versão oficial), e o mundo ainda está mais fragmentado do que o computador de Hunter Biden.
Como estamos em 2024, façamos um apanhado de um dia normal de Verão, englobando todos os media, em que qualquer semelhança com aquela realidade de outrora é pura ficção, como dizem os brasileiros.
Trump é quase assassinado por um puto com três nomes, como é da praxe. Guerra iminente entre o Irão e Israel. Puigemont foge de Espanha para Waterloo, sem que os moços de esquadra deem por ela. Um adolescente mata três crianças no Reino Unido gerando uma onda de violência da extrema-direita. A polícia propõe aos emigrantes que troquem as facas por uma assinatura à borla da Netflix, devolvendo os objetos cortantes na polícia local em troca da subscrição. Mais uma pandemia assumida pela OMS, desta vez a varíola dos macacos.
Mais uma data de mortos na Ucrânia. Apagão informático que põe em causa o funcionamento de aeroportos e as partidas de aviões. Musk fala no fim do mundo e ele mesmo entrevista Donald Trump. Não sei quantos mortos nas praias portuguesas. Praias interditadas com salmonela; o fantasma do dentista da TVI a continuar a assustar e a pairar nos dentes dos portugueses sem, contudo, ouvirmos uma palavra da Cristina Ferreira ou da Fátima Lopes, que bem o promoveram durante anos a fio. Discussões intermináveis de comentadores sobre orçamentos preocupantes. As eternas dívidas dos clubes, as dívidas do FCP, a falta de água e a seca no Alentejo de sempre, os recordes de temperatura em Bilbao, ainda que os autóctones achem normal. A demência de Biden, a vida cada vez mais cara. Os jogos olímpicos mais woke de sempre. As lástimas de Pichardo e o Benfica. O Fogo da Madeira que é o mais “quente” de sempre.
Enfim, podia continuar até ao infinito.
Mas o que vale é que é Verão. Ainda assim, se tiver sorte e para refrescar, uma vez que o calor me chateia, talvez caia um bocado de granizo lá pelo fim da tarde já que o tempo não anda para brincadeiras.
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Manuel Silva
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