Recensão: Os rostos

Todos nascemos loucos

por Maria Carneiro // Agosto 22, 2024


Categoria: Cultura

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Título

Os rostos

Autor

TOVE DITLEVSEN (tradução: João Reis)

Editora

Dom Quixote (Julho de 2024)

Cotação

14/20

Recensão

Os rostos, originalmente publicado na Dinamarca em 1968, foi escrito por Tove Ditlevsen no mesmo período da magnífica Trilogia de Copenhaga, também é inspirado na sua vida, mas transforma o seu material em arte numa alquimia que perturba e enternece, simultaneamente. Ao longo de toda a sua vida adulta, a autora lutou contra o abuso de álcool e drogas, e foi internada várias vezes em hospitais psiquiátricos. Vimos isso várias vezes na sua outra obra e voltamos a vê-lo neste.

A personagem central, Lise Mundus, é uma escritora de livros infantis, que não sabe lidar com o seu sucesso. Ganhou um prémio com um livro que "não considerava nem melhor ou pior do que os seus outros livros", e é assediada por jornais e revistas à procura de opiniões de "mulheres proeminentes" sobre questões triviais ("As minissaias estão a destruir o casamento?").  Casada e mãe de três filhos, Lise sente-se esmagada pelas expectativas e responsabilidades da vida doméstica e pela pressão da sua carreira, embora não consiga escrever nada há dois anos. Sente-se posta de parte pelo meio literário, e vive com a preocupação que, um pequeno acto de plágio cometido há muito tempo, venha a ser descoberto e que ela esteja prestes a ser desmascarada. Lentamente, torna-se numa mulher a viver um colapso mental, navegando entre a realidade e as alucinações. 

À medida que a sua saúde mental se deteriora, ela começa a ver rostos perturbadores à sua volta, rostos que a observam e a julgam. Essas visões misturam-se à sua realidade, tornando-se cada vez mais difíceis de se distinguir numa impotência que nos arrasta a nós também. O livro procura retratar a "loucura" vista por dentro, com toda a falta de confiabilidade que tal acarreta. Lise, por exemplo, acredita que o seu marido, Gert, está a ter uma relação amorosa com a governanta, Gitte, depois de a sua amante anterior, Grete, se ter suicidado. Ela também acredita que Gitte lhe fornece uns comprimidos para dormir e a instiga a suicidar-se também.

Os pensamentos de Lise são delirantes, mas ela acaba por tomar uma overdose medicamentosa e acaba num hospital psiquiátrico "amarrada à cama com um cinto de couro largo coberto de parafusos e parafusos". Lise anseia por "um lugar diferente, outra realidade, onde seja possível existir", mesmo que isso signifique uma enfermaria de hospital. Mas nem aí fica tranquila: é atormentada por vozes intrusivas e teme os rostos das outras pessoas que a rodeiam. Os rostos que Lise vê são expressões simbólicas da sua angústia interior, representando a culpa, o medo e a autopunição. Ditlevsen explora aqui a desconexão entre a identidade interna e a externa, e como essa divisão pode levar à fragmentação da mente. A mãe visita-a, mas não é simpática. O resto da família está impedido de o fazer, porque ela mantém a narrativa de que querem matá-la. Desde o início, os armários são "cavidades perturbadoras", o céu cheira "como o hálito de pessoas que não comem" e as vozes soam como "pus de uma ferida".

Os rostos e as vozes (nós nunca sabemos quais são reais e quais são produto da sua loucura) continuam a atormentá-la, a ela e a nós, leitores. As descrições das alucinações de Lise são tão vívidas que sentimos a mesma confusão e terror que a protagonista. A fronteira entre a realidade e a ilusão é deliberadamente ténue, o que cria uma atmosfera de incerteza e suspense psicológico.

Quando um médico lhe pergunta a Lise a razão para ter tentado matar-se, ela responde:

"Eu tinha uma necessidade terrível de ver alguns rostos novos".

Os rostos torna-se assim uma exploração poderosa e perturbadora da mente humana em desintegração. Tove Ditlevsen, através deste romance, oferece uma representação visceral da luta pela saúde mental, escrito com a habitual clareza e honestidade brutal, apresentando uma visão perturbadora da vulnerabilidade humana e da fragilidade da mente. No entanto, diga-se que depois de se ter lido a Trilogia de Copenhaga, este romance não vem nada acrescentar de novo.

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