TEM DIAS

Vir de vez

open book on brown wooden table

por Sílvia Quinteiro // Agosto 22, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

              Tinha saudades de casa. Fecho os olhos. A luz intensa atravessa-me as pálpebras. Mergulho numa paz absoluta. A monotonia por que ansiava há tanto. O som das cigarras, ondas que se desfazem num murmúrio ao encontrar a areia. Um contínuo. Som que é silêncio.  Apenas o canto das rolas marca o compasso e nega a suspensão do tempo.   A sombra imperfeita das videiras. A aragem a brincar com a minha pele, a soprar-me os pelos das pernas e dos braços: fresca, quente, quente, fresca, quente…

              O telemóvel vibra junta da minha perna. Não queria atender, mas nunca se sabe:

⎼ Tou? Toninho, já cá tás, filhe? ⎼ perguntam do outro lado.

⎼ Estou, sim, tia. Cheguei de madrugada.  ⎼ respondo.

⎼ Ai, graças a Deus, filhe. Tava aqui em pulgas. Ainda deves tar cansade. Mas quande quiseres passa por’qui. Vem almoçar ca gente. Tenhe cá uma coisa p’a t’amostrar.

the sun is setting over a grassy field

 

A tia tem razão. Ainda estou muito cansado. Vim de carro. Já me tinha desabituado. Mas vim de vez. Parece mentira. De vez… Combinamos um almoço para sábado.

Os tios esmeram-se.

⎼ Isto aqui não é à grande e à francesa, mas é à grande e à algarvia! Vá lá, toca a comer que isto quem na presta pra comer na presta pra trabalhar. ⎼ brinca o primo Ernesto, enquanto põe em cima da mesa uma travessa de sardinhas assadas.

⎼ Carcanholas da ria, berbigão, xarém com conquilhas, saladinha montanheira, sardinhas, panito pra pôr por baixo… Sirvam-se que disto não apanham vocês lá na França. ⎼ acrescenta.

⎼ Ah, pois não, mas agora já sabes que estou logo aqui ao lado. É só convidares-me mais vezes.  ⎼ respondo.

As longas sardinhadas no alpendre dos tios. Os risos, as conversas que se misturam com os sabores, os odores, as cores, as memórias. Ouço-os, como às cigarras: doce banda sonora de verões passados.

O Ernesto, de pano de cozinha na mão, vai enxugando uma enorme melancia encharcada.

⎼  O frigorífico é para melancias enfezadinhas. explica  – Esta esteve dentro do tanque desde de manhã para ficar fresquinha. A melancia quer-se grande, para dar umas boas talhadas.

white and brown wooden house on green grass field near body of water during daytime

Seguem-se um café e um medronho para ajudar a digestão. A tia Alice surge de dentro de casa com uma tesoura de jardinagem numa mão e uma fotografia na mão.

⎼ Vê lá se conheces aí alguém. ⎼ desafia-me, colocando a fotografia em cima da mesa.

– Deixe lá ver. Tenho de pôr os óculos. – respondo.

⎼ Ai, filho, se já nem tu vês bem… na hei de eu tar velha… ⎼ desabafa a tia entre o lamento e a brincadeira. E eu percebo que nunca vai entender como é possível o filho da irmã já estar aposentado. Na verdade, espanta-a sempre que já esteja maior que ela.

⎼ Não diga isso, que a tia está mais nova do que eu. ⎼ respondo, enquanto ela, ligeira, sobe à cisterna, que já só serve como poiso para as centenas de vasos que são o seu orgulho:

⎼ Vou-te mandar aqui umas podas. Tens de dar um jête àquele quintal. Pôr lá umas florinhas, que morreu tudo à sede e a tu mãe tinha sempre tude chê’delas. ⎼ diz.

Examino a fotografia. Um primeiro olhar e viro-a. Na parte de trás, esborratada e já quase ilegível, a inscrição “Ludo, 1954”. Oito mulheres e cinco crianças. Estão em pé, alinhadas. Sorriem para a câmara. Trabalhadoras das salinas. As roupas, pouco mais que farrapos. Vestidos andrajosos. Camisas que não fecham. Saias presas à cintura por cintos velhos ou baraços.  As vestes das meninas destoam das das mães. Limpas. Engomadas. Chapeuzinhos de palha. Aperaltadas para a fotografia, com certeza. Na imagem, um único rapaz. Ao contrário das meninas, está coberto de pobreza. Tem um ar sujo. Sobre o corpo, uma camisa curta. Apenas isso.

As mulheres usam lenços por debaixo dos chapéus. Por cima, as rodilhas ajudam a equilibrar as canastras. Pés de lama. Nus. Negros até aos tornozelos.

a chair and a table in a dark room

⎼ Então? Não conheces ninguém? ⎼ pergunta o tio António, enquanto arrasta a cadeira para junto de mim.

⎼ Reconheço a tia. Toda nova e jeitosa. Olhe para isto. Parece uma garça, aqui com uma pernoca alta e toda desempenada. – provoco-a sorridente. Ela ri-se e diz qualquer coisa que não percebo.

⎼ Olha, a prima Amélia. Estás aqui prima, à frente das nossas vizinhas: a Idalina, a Estrudinhas, a Marcelina.  Aqui ao lado, a mãe da Natércia e da Noélia. Elas à frente. As feições não mudaram nada.  E, se não me engano, esta é avó delas. Não me lembro do nome. ⎼ digo enquanto passo o indicador uma a uma.

⎼ Vangelina. ⎼ lembra a tia. ⎼ E a do lado. Sabes quem é? ⎼ pergunta.

 ⎼ A minha mãe, claro. Que saudades! ⎼ os olhos enchem-se-me de lágrimas, a garganta prende-se um pouco. Tusso e ajeito-me na cadeira.  É dia de festa.

 ⎼ Grandes senhoras! – exclamo, sabendo que o repetirão em coro.

Lembro-me bem destas mulheres e destas crianças. Sei de cor as suas histórias. Apesar de a vida nos ter levado por caminhos diferentes, agosto foi sempre o mês do reencontro. De pôr a conversa em dia, mas também de lembrar. Repetiam todos os anos as suas histórias, como se essa partilha garantisse que o seu passado tinha realmente acontecido: a gripe espanhola que levou o pai e a mãe da Estrudinhas quando ela tinha dois anos; a guerra do Ultramar que matou o noivo da Noélia;  o marido da Ti Vangelina, que emigrou para a Venezuela e nunca mais deu notícias; o sangue vendido para pôr um teto sobre a cabeça dos filhos;  o aborto causado pelo peso do sal; a exploração; as jornas de trabalho de sol a sol; a fome que se enganava com figos secos; a penúria que obrigou os meus pais a emigrar. Também eu preciso que confirmem. Que à mesa me digam que estou certo. Que foi assim que aconteceu.

⎼ Oh, tia, eu sei que a miséria era muita. Mas não me diga que não dava ao menos para me taparem as miudezas para a fotografia? ⎼ pergunto.  

⎼ Tu até tinhas uns calçanites que te fez a avó Julinha, que Deus tem. Mas eras muito pequeno e a tua mãe não tinha tempo para te andar a limpar o rabo. Nem havia cá fraldas, o que é que pensas?  Vocês eram mecinhes, andavam per‘li uns c’os outres. Não havia cá onde os deixar. – explicou a tia. – Pareciam pilritesós saltinhes dum lado pró outre.

⎼ Era duro, hã…? – pergunto.

⎼ Era, mas a gente também se ria muito. Contávamos muita anedota. Cantávamos. Dizíamos umas asneiras p’rá gente se ir entretende. Éramos moças…Ele em havende pás sopas e pa vocês se irem criande… mas trabalhava-se muite.

grayscale photo of Eiffel tower on top of white envelope

Exatamente o que vejo nesta fotografia, nestes sorrisos: um misto beleza, sofrimento, força e doçura. Sorrisos abertos, francos. Sorrisos de gente feliz. Impossíveis de compreender sem conhecer estas mulheres. Não me lembro daqueles tempos em que era tão pequeno que ainda não tinha direito a calções. Para mim, elas só entraram na minha vida anos mais tarde. Mas reconheço os sorrisos. São os mesmos. Sorrisos felizes, mesmo quando as histórias dos tempos difíceis lhes colocavam um véu de tristeza no olhar. O segredo por detrás deste sorriso aberto? Acredito o sal que lhes curtiu a pele lhes temperou a alma.  Eram divertidas, bem-dispostas, naturalmente felizes ou, pelo menos, decididas a sê-lo.   

Ao almoço pega-se o lanche. Os tios insistem que fique para jantar. Já me tinha esquecido do que significa “passa cá por casa”.  O estômago diz-me que não aguento. Que não posso ficar sentado. Decido fazer uma caminhada no Ludo. Está um final de tarde lindo. Vou até às salinas. As águas turvas dos tejos coloridas pelos azuis, rosas e dourado do céu. Manchas do branco das nuvens. Aproximo-me na esperança de ver ali resquícios do passado, mas a água já não espelha a imagem das marnotas: um bando de flamingos cruza-se com um avião que levanta voo. Os que chegam e os que partem. Pergunto-me quantos lá irão na esperança de um dia virem de vez.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

APOIOS PONTUAIS

IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

MBWAY: 961696930 ou 935600604

FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.

De onde me encontro, olho para a vida como se olha para a casa da infância. Descubro que o edifício outrora ...

Não será pelas asas que te alçarás em voo, mas sim pelo coração, que assim te libertará das garras do chão. ...