Da Varanda do Varandas

Juro que nunca festejei um golo do Sporting

lion lying on brown grass field during sunset

minuto/s restantes


Armado de uma habilidosa trela invisível, o Génio Catamo puxou a bola para dentro até encontrar uma pista de descolagem entre os centrais. Nasceu nele, que eu vi e poderei testemunhar em tribunal, uma juba resplandecente de leão do Delta do Zambeze. Quando a perna esquerda do Aladino de Alvalade subiu ao céu, para urdir o retumbante remate de desenlace, eu abri a boca para um grito do catano, inconveniente e obsceno numa bancada de imprensa.

– Está lá dentro! Está lá dentro!

Uma tesoura da prestigiada marca luso-canadiana Stephen Eustáquio ainda cortou a relva num esforço inglório. De igual modo, o desesperado guarda da baliza adversária mergulhou como um perdido naquele rio selvagem. Debalde de água fria para ambos. Fatal como o destino, um filhote de leão em forma de bola voadora cruzou a grande área feito um raio e resolveu o clássico. Tendo eu gritado antes do tempo, já nem festejei o golo. Pensei antes em resgatar de imediato a reputação e a aparência de imparcialidade entre camaradas jornalistas.

– Pedro, desculpa-me. Não devia fazer estas figuras credenciado pelo PÁGINA UM, mas foi um reflexo condicionado pelo meu início de carreira.

E então recordei os gloriosos tempos na Rádio Alto Minho, a carregar pesadas bobines com quilómetros de cabo e mesas de mistura com dois metros por três de cursores de áudio. Ao lado de profissionais de gabarito, como Mário Gonçalves, Paulo Sérgio e o lendário Paulo Torres, mais reconhecido na Expo de Sevilha do que o José Rodrigues dos Santos, eu descrevia “o pormenor” das jogadas do Vianense e as noites gloriosas da Juventude de Viana no hóquei em patins. Quando me lembrava de dizer que um penalty a nosso favor tinha sido mal assinalado, o meu pai recebia no dia seguinte o pontual protesto de cidadãos indignados pela minha traição à cidade. Paciente, suportava estoicamente, sem comentários, os ouvintes que através dele tomavam a palavra. E depois insistia comigo para perseguir a verdade e o sonho de ser jornalista. Andei assim dos 14 anos até à maioridade. Descobri agora que, afinal, passei ao lado de uma valiosa carreira, a relatar os golos sempre em primeira mão, catorze segundos antes da concorrência.

– Pedro, conheces outro relatador que cante golo antes de um remate de fora da área?

O Senhor Director do PÁGINA UM respondeu que não, mas acrescentou que ando a cantar muito de galo, uma frase que lhe oiço desde que começámos a ir à bola juntos, na época passada. Eu acho que ele bem poderia personalizar tal censura com recurso estilístico a um animal verdadeiramente perigoso, como um leão ferido ou um cavalo puro sangue da Suécia. Considerando a queda dele para as aves amestradas, engulo com amizade a injustiça. E até concordo que devemos ter cuidado, em especial com as viagens dos árbitros ao Catar e outros vícios tão antigos como as velhas profissões. Ao fim de tantos anos de roubos de capoeira, estamos a expiar o tempo de presidentes, treinadores e atletas de aviário. A nossa festa é tão natural como a própria sede e a fome insaciável do Gyökeres.

– Viste a raça do animal? Ainda gosto mais dele por ser bravo do que pelos golos atrás de golos que marca.

Aos 92 minutos, com o resultado em aberto depois de um jogo de ostensivas oportunidades desbaratas, o namorado loiro da bela Inês foi despudoradamente derrubado pelo canivete canadiano de marca. Para o efeito, tal adversário, embora fresco e recém-entrado em campo como uma alface frisada, agarrou-se à mais bela e perigosa camisola do campeonato com as duas mãos que tinha mais ao pé, por manifesta falta de pernas para lhe aplicar uma tesourada. E o gigante sueco, em lugar de rebolar de dores e agredir a relva como ditam os tristes hábitos de violência doméstica da liga portuguesa, levantou-se como uma mola, de dentes afiados, a convidar o leão do Zambeze para a estocada final no adversário.

– Eu passo-te a bola e vais ser tu a marcar, porque os meus pais podem estar a ver o jogo pela parabólica e cortam-me a mesada se me apanham a mentir duas vezes no mesmo jogo.

Farnel do Sporting: sandes de leitão de Negrais, bem aviada…

O génio moçambicano, outro rapaz educado e bem-mandado, sobretudo nos minutos de compensação pelo tempo gasto pelos adversários em rábulas e fitas manhosas, em menos de um minuto recebeu o passe, atrelou a bola, abriu a juba, fez golo e resolveu o clássico. Depois disso, festejou com os adeptos eufóricos nas bancadas, reconhecido pela assistência mas ainda intrigado quanto a tão insuperável generosidade. Só nos balneários, o mágico Pote, que tem muita graça, traduziu por gestos, com os dois pés que tem sempre à mão e os 32 dentes brancos de tantas piadas, as misteriosas razões do sueco.

– Jag har aldrig gjort ett mål i mitt liv!

Peço desculpa aos leitores interessados por me abster de traduzir. Se a entidade que censura a comunicação, para pontualmente justificar a própria existência, me apanha a reproduzir uma mentira despudorada, troca-me a carteira profissional por um cartão vermelho. Essa correspondência poderia agradar ao Pedro Almeida Vieira, que (ainda) é do Benfica e adora metê-los em tribunal, mas eu prefiro deixar em paz e ao pó a caixa do correio. Por favor, peçam ajuda ao dr. Google, ao mágico Pote ou a outro tradutor qualificado.

– Jag har aldrig gjort ett mål i mitt liv!

O cidadão Viktor Einar Gyökeres, nascido a 4 de Junho de 1998, em Estocolmo, Suécia, um metro vírgula oitenta e sete vezes noventa quilos de força bruta orientada, com residência e piscina em Lisboa, é suspeito de cometimento na forma continuada do crime de fraude sobre os valorosos e honrados defesas centrais adversários. Há indícios recolhidos e bem embrulhados nas bandeiras pelos funcionários fiscais de linha, de que o arguido proferiu aquela frase do início do jogo até sofrer uma falta inocente na grande área. Apanhado em flagrante ameaça e consumada violação da linha de baliza, alega ter-se inspirado numa entrevista recente do histórico presidente adversário.

– Eu nunca comprei um árbitro. Isso não é verdade!

Assim seja eu arrolado como testemunha, abonatória, e estou disposto a declarar que o arguido só disse a verdade. Pelo menos, nos exactos termos em que eu declaro, juramentado, não guardar qualquer memória de algum dia haver festejado um golo do Sporting. No último jogo, é verdade, gritei golo, mas foi antes do mesmo ser materializado. Ora, meritíssimo juiz, não pode tal descrição objectiva, factual e incontroversa da realidade, por mais adiantada, ser confundida com outra coisa que não o despretensioso relato de um profissional da imprensa desportiva, com 37 anos de experiência.


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