TEM DIAS

Vem aí trovoada!

open book on brown wooden table

por Sílvia Quinteiro // Setembro 5, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

A manhã acontece com a tranquilidade própria dos primeiros dias de setembro. Uma pausa entre o corrupio das férias e o do trabalho. O caminho quase deserto. A brisa fresca convida à preguiça no terraço. Um fundo azul-céu. O sol a derramar dourado sobre a paisagem. A luz a tocar ao de leve as copas verdes dos pinheiros mansos. Luminosas por fora. Sombrias por dentro. O vaivém dos pássaros a traçar linhas entre as árvores do mato e as do quintal. Os hibiscos floridos. Grandes. Alegres. Nas paredes, osgas gordas, moles, a aproveitar o que resta do verão. Um dia perfeito. Um velho passa e dá de vaia. Daí a uns minutos, outro. Aposentados. Indiferentes ao calendário. Os dias são apenas dias. O percurso diário, circular como o tempo: exercício, terapia, passeio, lugar de encontro.

O senhor da bicicleta passa para cima e para baixo, para baixo e para cima. Dá as voltas que a idade lhe permite e que o médico recomendou. Não perde a oportunidade para lembrar às duas amigas que passam que: – Já não era para estar aqui hoje! Uma pessoa tem de se mexer.  Elas confirmam, acrescentando a importância de espairecer.  E lá vão. Elas para baixo, ele para cima. Poucos minutos depois, novamente a bicicleta. Cruza-se, desta feita, com uma senhora roliça, peito de pomba, passada lesta e ar de quem sabe coisas:

⎼ Vem aí trovoada!  ⎼   exclama.

⎼  Pois vem! ⎼   confirma ele, continuando a pedalar.

a pink flower with green leaves

Olho para o céu e não vejo os sinais. Também não questiono. A moleza tomou conta de mim. Continuo refastelada a observar.  Reparo como se cruzam, mas não param.  Por hoje, estão conversados. Conhecem-se bem. Sabem das vidas, das famílias, das maleitas uns dos outros. Além disso, um pouco mais adiante, um vizinho instalou um cadeirão debaixo de uma árvore e passa ali boa parte do seu tempo, garantindo que todos ficam ao corrente das novidades.

Ocorre-me, entretanto, que há vários dias que não vejo uma  das senhoras que por aqui costuma passar. Aguardo alguém que me possa dar notícias. Mais uma vez, a bicicleta. Aceno e pergunto se sabe o que é feito  da vizinha. Conta-me que cegou. Que já não sai:

⎼ Não vê nadinha! ⎼ reforça.

Está morta, penso. Tão triste!

Um pé atrás do outro, uma pedalada depois da outra, um cumprimento, a frase que se atira sem esperar resposta: Está fresquinho!; É preciso é ir andando!; Ah, valente!; É p’rá medalha!  Provas de vida. Garantias renovadas de que ainda se está aqui. De que se é. O que importa saber se vem trovoada? Por aqui, confirma-se que se está vivo, que se vê e se é visto, que se ouve e se é ouvido. Exercita-se a certeza que se desmancha cada dia.

a bicycle parked in front of a house

A senhora que sabe coisas volta a passar.

⎼ Vem aí trovoada!  ⎼ grito-lhe.

⎼  Pois vem! Ê lhe disse, J’quim? ⎼ responde, olhando para o meu interlocutor.

⎼ Tá visto que sim.  ⎼ diz ele com um sorriso.

Um para cima, outro para baixo.

Sílvia Quinteiro é professora da Universidade do Algarve


PÁGINA UM – O jornalismo independente (só) depende dos leitores.

Nascemos em Dezembro de 2021. Acreditamos que a qualidade e independência são valores reconhecidos pelos leitores. Fazemos jornalismo sem medos nem concessões. Não dependemos de grupos económicos nem do Estado. Não temos publicidade. Não temos dívidas. Não fazemos fretes. Fazemos jornalismo para os leitores, mas só sobreviveremos com o seu apoio financeiro. Apoie AQUI, de forma regular ou pontual.

APOIOS PONTUAIS

IBAN: PT50 0018 0003 5564 8737 0201 1

MBWAY: 961696930 ou 935600604

FUNDO JURÍDICO: https://www.mightycause.com/story/90n0ff

BTC (BITCOIN): bc1q63l9vjurzsdng28fz6cpk85fp6mqtd65pumwua

Em caso de dúvida ou para informações, escreva para subscritores@paginaum.pt ou geral@paginaum.pt.

Caso seja uma empresa e pretende conceder um donativo (máximo 500 euros por semestre), contacte subscritores@paginaum.pt, após a leitura do Código de Princípios.

O jornalismo independente DEPENDE dos leitores

Gostou do artigo? 

Leia mais artigos em baixo.

A vida tentará vergar-te, mas a flecha, que do teu arco sair, voará em linha recta.Bruno Rama é ilustrador editorial (©Direitos ...