O Ministério da Saúde não quer saber. O Ministério do Ambiente segue-lhe os passos. Mas os novos dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), divulgados discretamente na semana passada, mostram um contínuo e surpreendente retrocesso civilizacional e de Saúde Pública em Portugal: as mortes causadas por doenças associadas a água infectada e a problemas de saneamento e higiene mais do que quadruplicaram entre 2010 e 2022. E pior do que isso, incidem cada vez mais nos idosos, com números pouco dignos de um país da Europa. Com base nas taxas de mortalidade indicadas pelo INE, o PÁGINA UM calculou os óbitos que foram determinados por médicos legistas para um conjunto determinado de doenças. Para esse grupo, em 2010 tinham sido contabilizadas 116 mortes, e em 2022 já se atingiram os 470 óbitos. Destes, cerca de nove em cada 10 foram de pessoas com mais de 75 anos, o grupo etário mais vulnerável e que vive em lares de idosos, uma parte dos quais sem condições adequadas de higiene.
Mais do que um problema de saúde pública, é um retrocesso civilizacional. As mortes em Portugal associadas a água insalubre ou a condições deficientes de saneamento básico e de higiene mais do que quadruplicaram entre 2010 e 2022.
Os dados mais recentes – referentes a 2022, e que se baseiam em informação dos médicos legistas que a introduzem no Sistema de Informação dos Certificados de Óbito (SICO) – foram divulgados de forma discreta pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) na passada sexta-feira, sem qualquer comunicado ou nota de imprensa. Mas revelam as taxas surpreendentes de mortalidade para um conjunto de doenças associadas a complicações decorrentes do uso de água imprópria para consumo ou por condições inadequadas em termos de esgotos, lixos e higiene.
De entre as causas de morte atribuídas pelos médicos legistas, e que são registadas no SICO, constam sobretudo doenças do foro intestinal, causadas por bactérias, vírus e vermes, tais como determinadas infecções intestinais virais, diarreias e gastroenterite de origem infecciosa presumível, shigelose, amebíase, ancilostomíase, ascaridíase e tricuríase. Na lista indicada pelo INE surge também a cólera, embora não haja registo de mortes em Portugal desde 1974.
O INE agrega apenas os óbitos de um determinado grupo de doenças listadas [vd. MetaInfo dos dados], não discriminando as mortes por cada uma dessas afecções integradas na Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde. Saliente-se que o PÁGINA UM não conseguiu, no ano passado, que o Tribunal Administrativo de Lisboa lhe concedesse o direito de acesso aos dados detalhados do SICO, mesmo se anonimizados, impedindo assim o conhecimento pormenorizado das diferentes causas de morte em Portugal, sendo assim impossível definir padrões locais ou regionais.
Por outro lado, na informação disponibilizada em quadro, o INE também não aponta o número absoluto de mortes nem as regiões e concelhos onde ocorreram, mas, em todo o caso, mostra-se fácil calcular esses valores através das estimativas oficiais da população em cada ano. Assim, de acordo com os cálculos do PÁGINA UM, tendo em conta a população estimada de 10,44 milhões de pessoas em 2022 e uma taxa de mortalidade para este conjunto de doenças de 4,5 por 100 mil habitantes, o número total de óbitos terá sido de 470. Em 2010, a taxa de mortalidade determinada pelo INE foi de apenas 1,1 por 100 mil, o que significa 116 óbitos para uma população de então 10,57 milhões de habitantes. Em suma, a mortalidade mais do que quadruplicou em 12 anos.
O agravamento desta situação atinge sobretudo a população idosa, em especial com mais de 85 anos, o grupo etário onde prevalece um sistema imunitário bastante débil. Com efeito, também segundo os cálculos do PÁGINA UM com base em estimativas populacionais anuais do INE, nos grupos etários inferiores aos 75 anos, a mortalidade para as doenças específicas praticamente mantém-se constante e em níveis muito baixos.
No período de 2010 a 2022, para os menores de 75 anos, os óbitos por ano variaram entre os 21 e 66, mas este grupo populacional engloba cerca de nove milhões de pessoas. No caso da população com menos de 45 anos, a mortalidade por causa deste tipo de doenças é residual ou mesmo nula em alguns dos anos.
Na verdade, a situação mostra-se particularmente dramática nos muito idosos (maiores de 85 anos). O INE aponta em 2022 uma taxa de 73,1 óbitos por 100 mil pessoas desta idade, ou seja, 16 vezes superior à média nacional (4,5%). Atendendo que este grupo etário contava naquele ano cerca de 368 mil pessoas, o número de óbitos entre os muito idosos foi de 269 pessoas. Esta taxa é substancialmente superior à registada pelo INE em 2010 (apenas 4,5 óbitos por 100 mil pessoas deste grupo etário), mas a partir desse ano tem-se registado um anormal crescimento.
No grupo subsequente, das pessoas com idade entre os 75 e os 84 anos, observa-se também um agravamento da taxa de mortalidade desde 2010, mas não de uma forma tão intensa. Em 2022, essa taxa foi de 15,8% (mesmo assim cerca de três vezes superior à média nacional), o que representou um total de 135 mortes por estas doenças. Em 2010 e 2011, os óbitos foram de 45 e 43, respectivamente, neste grupo etário para estas doenças ainda frequentes em países do Terceiro Mundo. Saliente-se, aliás, que nas primeiras décadas do século XX, a elevadíssima taxa de mortalidade infantil em Portugal devia-se sobretudo a doenças do foro gastrointestinal, que foram sendo debeladas com a melhoria do saneamento básico e dos tratamentos médicos.
O PÁGINA UM perguntou tanto ao Ministério do Ambiente – entidade que tutela o sector das águas e saneamento – e ao Ministério da Saúde se tinham conhecimento do forte agravamento da mortalidade destas doenças, e se conseguiam adiantar alguma explicação ou apontar alguma medida em curso. Porém, tanto o gabinete de Maria da Graça Carvalho como o gabinete de Ana Paula Martins preferiram ignorar as questões do PÁGINA UM, nem sequer reagindo, como se os problemas, assim procedendo, desaparecessem.
Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero, mostra-se surpreendido com esta evolução, e considera que deveria haver uma investigação sobre estes números que “não são muito favoráveis”. Para este professor da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, “em princípio, os sistemas públicos de abastecimento de água garantem a sua potabilidade, mas sabe-se que existem núcleos populacionais e algumas pessoas, sobretudo em zonas rurais, que adoptam sistemas alternativos que podem não ser seguros”.
Um médico de Saúde Pública contactado pelo PÁGINA UM, que prefere manter o anonimato, olha com preocupação sobretudo para a elevada incidência da mortalidade nos grupos etários muito idosos, que, alerta, coincidem com a maior parte da população residente em lares de idosos. “O grupo de doenças em causa está associado também a problemas de higiene, que se mostram letais em pessoas com imunidade frágil”, salienta, acrescentando que “se mostra fundamental investigar em que locais em concreto ocorreram essas mortes para se identificar eventuais surtos e solucionar problemas recorrentes”. Pela ausência de reacção dos Ministérios da Saúde e do Ambiente perante estes números terceiro-mundistas, muito provavelmente este apelo cairá em saco roto.
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