Belo Horizonte – “É significativo o fato de que a esquizofrenia atinge as pessoas jovens, exatamente as que têm dificuldade de se adaptarem a uma lógica de vida que os contraria”. Afirmou ontem o psiquiatra italiano Franco Basaglia, que participa do III Congresso Mineiro de Psiquiatria.
Basaglia lembrou que todas as lutas dos jovens dos anos 60 foram abertas por problemas de drogas e, paradoxalmente, diminuíram os problemas da esquizofrenia. Segundo ele, a esquizofrenia é um dos modos de racionalizar ou de justificar a loucura de modo institucionalizado, é um modo de reagir aos insultos da vida.
«Esquizofrenia debatida em MG», in Jornal do Comércio, edição n.º 22844, de 20 de Novembro de 1979.
[No] momento em que o social entra na medicina, o médico já não percebe mais nada, porque está habituado a pensar que o seu doente seja um corpo doente, um tumor, um fígado doente, uma cabeça doente. Não lhe passa pela cabeça que esta pessoa, que esta doença, que esta situação possam ser consequências da vida.
Franco Basaglia, na primeira resposta dada no debate relativo à conferência «Psiquiatria e Política: o manicómio de Barbacena», proferida em 21 de Novembro de 1979, em Belo Horizonte.
A impossibilidade de uma apresentação integral, na edição de 22 de Agosto, do texto inicialmente pensado para recordar o nome de Franco Basaglia nas páginas deste jornal, teve a vantagem de funcionar como um favorável imprevisto, por me ter dado a oportunidade de um regresso ao assunto, designadamente para proceder a um exercício de confronto de panoramas de observação em Portugal e no Brasil.
Caso para usar de empréstimo as palavras de um verso: mais uma vez (noch einmal)!
E o imprevisto veio a proporcionar igualmente a oportunidade de poder apresentar ao público português a (primeira) versão na nossa língua do texto da última conferência proferida por Franco Basaglia[1], em 21 de Novembro de 1979, em Belo Horizonte, tradução que o PÁGINA UM oferece agora em anexo aos seus leitores.
Se a aproximação do centenário do nascimento do carismático fundador da corrente da “Psiquiatria Democrática”[2] já vira renascer o interesse médico[3], histórico-biográfico[4], científico[5] e político[6] pelo pensamento e pela (ambivalente e complexa) acção dessa figura, certo é que em nenhum outro país do mundo Franco Basaglia deixou tantas saudades como no Brasil, pelas razões que, numa pequena amostra, tentaremos dar conta nas páginas seguintes.
1. UMA ESTRANHA DESCOBERTA
Em abono da bem diferente situação portuguesa, está o facto – é melhor dizê-lo desde já – de Franco Basaglia nunca ter tido ocasião de fazer uma visita a Portugal, diversamente do que sucedeu a Barcelona, onde, com uma só lição, conseguiu que o movimento da psiquiatria democrática florescesse no país vizinho, movimento clandestino, numa primeira fase, e depois mais institucionalizado, designadamente em torno de uma editora (La Revolución Delirante), de um estruturado movimento de psiquiatras, de um site e da persistência de outras ligações a Trieste.
Todavia, se foi na bacia ocidental do Mediterrâneo (Itália, Grécia, Sérvia, Espanha, mas também: França, Holanda, Bélgica, Escócia, País de Gales, Suécia, Polónia, etc.) e em geral na América do Sul que Basaglia alcançou maior projecção, é deveras espantoso que em Portugal o seu rasto tenha sido nulo, a começar pela formação universitária dos médicos.
Com efeito, se a curiosidade me levou nestes dias a pesquisar nas bibliotecas das principais Faculdades de Medicina públicas portuguesas (de Lisboa, de Coimbra e do Porto), a primeira descoberta que fiz não me podia ter deixado mais estarrecido: em nenhuma dessas bibliotecas existia uma única obra de Franco Basaglia ou sequer sobre Franco Basaglia.
Glória por isso aos dois exemplares de obras suas de que dispõem o Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, o Instituto de Ciências Sociais e a Faculdade de Psicologia/Instituto de Educação da Universidade de Lisboa – visitas a recomendar, por conseguinte, aos estudantes de Medicina, bem como aos psiquiatras formados em Portugal.
Sem necessidade de nos alongarmos sobre o assunto, embora o tema da “velha Psiquiatria” praticada entre nós mereça um regresso em força, esta descoberta liminar elucida-nos quanto baste acerca de quatro coisas: (i) que, em Portugal, não há nem pode haver reflexão crítica aprofundada sobre a teoria nem sobre as práticas da Psiquiatria; (ii) que, em Portugal, não existe, nem pode ter existido até agora, pensamento, investigação ou ensino críticos aprofundados da Psiquiatria; (iii) que, em Portugal, não existe, nem pode existir (salvo, como realmente acontece, no plano de personalidades isoladas) uma prática psiquiátrica (hospitalar, comunitária ou privada) que tenha tido em suficiente linha de conta os contributos das novas correntes da Psiquiatria surgidas no último meio século[7]; (iv) é por isso perfeitamente normal que, em Portugal, salvo esses tais casos isolados, o paradigma da Psiquiatria se deva por conseguinte situar ainda entre (o distante) Pinel e o “Manicómio Químico” dos últimos 50 anos[8], com o seu rol de novos “crimes de paz” (Basaglia), a exigir igual denúncia e desmantelamento, tanto mais pelas insidiosas ligações dessas práticas com a sempre cada vez mais poderosa indústria farmacêutica.
2. FRANCO BASAGLIA NO BRASIL
Diversamente por isso do que se passou em Portugal, Franco Basaglia teve ocasião de visitar o Brasil por três vezes, visitas que viriam a ter lugar nos seus últimos anos de vida. E o mínimo que se pode dizer, do lado dele, é que soube aproveitar essas viagens como poucos; do lado dos brasileiros, como poderiam eles esquecer alguém que se ofereceu ao Brasil com tal intensidade e carinho e que deles se despediu, na conferência que agora apresentamos, com a declarada tristeza de poder não os voltar a ver?
Na primeira ocasião, fora convidado para o célebre 1.º Simpósio Internacional de Psicanálise de Grupos e Instituições, realizado entre 25 e 29 de Outubro de 1978, sob organização do argentino Gregório Baremblitt, que conseguiu juntar no Copacabana Palace cerca de 2000 pessoas, para ouvir gente tão célebre como Pierre Guattari, Robert Castel, Erving Goffman, Howard Becker, para não falar da estrela da altura, Sheri Hite[9], mas onde a figura central era sem dúvida o próprio Basaglia[10] (e a vitória que tinha alcançado alguns meses antes na Itália, com a aprovação da lei com o seu nome)[11]. Ora, se o melhor hotel do Rio de Janeiro tinha sido escolhido para o honrar[12], terminadas as palestras, Basaglia preferia no entanto ir para a rua, ao encontro dos sindicatos, dos hospitais psiquiátricos, dos lares e das clínicas, das universidades, dos trabalhadores, dos jornalistas[13]. E, não nos tendo chegado registo escrito das intervenções feitas nesse Simpósio, a boa notícia é a de que estão agora a ser transcritos e preparados os Anais do evento.
Depois desse primeiro grande impacto, com convites vindos de todos os lados, Basaglia regressaria ao Brasil em Junho e Julho do ano seguinte, para a viagem que, nas suas dimensões humana, política, simbólica e comunicativa, ficou seguramente como a passagem mítica do Professor italiano por terras do Brasil, tendo percorrido diversas cidades (Rio de Janeiro, Salvador, São Paulo, Belo Horizonte, Barbacena)[14], para nelas proferir conferências, leccionar cursos e seminários e sobretudo agitar decididamente, sem temer o escândalo[15], as águas do status quo.
E viria ainda uma terceira vez, para participar com Robert Castel no III Congresso Mineiro de Psiquiatria, organizado entre 15 e 21 de Novembro de 1979, em Belo Horizonte.
Se a primeira e a terceira viagens foram sempre acompanhadas pela imprensa (embora com a devida contenção dos meios afectos ao regime (como a Globo e o Estadão), nenhuma delas se havia de gravar para sempre na memória do Brasil como a viagem do Verão de 1979.
Com efeito, não foram apenas as dezenas de notícias e de reportagens de televisão feitas sobretudo no seguimento da visita que efectuou ao Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, mas também o facto de:
- A partir dessa visita, o fotógrafo Hiram Firmino ter feito uma série de reportagens no jornal Estado de Minas, que levariam à publicação do livro Nos Porões da Loucura e, mais tarde, à integração dos respectivos originais no “Museu da Loucura”, inaugurado em 1996 num dos 16 pavilhões do antigo manicómio;
- O cineasta Helvécio Ratton ter realizado, a partir dessa visita, o documentário Em nome da razão (hoje disponível aqui), com uma extraordinária repercussão logo nesse ano;
- De a mineira Iole de Freitas, que já participara na organização do 1.º Simpósio de 1978, ter realizado igualmente a curta-metragem Deixa Falar, rodada na recém-criada Cidade de Deus, peça que viria a ser comentada com palavras extremamente duras por Franco Basaglia em Novembro de 1979[16];
- De ter sido ainda no seguimento dessa visita, uma vez descobertas as fotos feitas por Luiz Alfredo na revista O Cruzeiro de 1961, que veio a ser editado o livro (colônia: uma tragédia silenciosa), organizado em 2008 pelo psiquiatra Jairo Furtado Toledo (aluno do 5.º ano de Medicina por altura da visita de Basaglia a Barbacena e a quem mais tarde seria confiada a direcção do estabelecimento, cujo desmantelamento veio a concretizar);
- De radicar também nesse momento simbólico o livro publicado em 2013 pela jornalista Daniela Arbex, o Holocausto Brasileiro, com base no qual viria a ser mais tarde realizado o documentário com o mesmo nome (agora disponível aqui, de visualização não recomendada a menores de 16 anos).
Por fim, deve deixar-se claro que foi também a segunda viagem de Basaglia ao Brasil que esteve na origem das primeiras edições do livro Conferenze brasiliane: na verdade, a primeira edição dessa famosa obra foi publicada no Brasil ainda nesse ano (Franco Basaglia, A psiquiatria alternativa: contra o pessimismo da razão, o otimismo da prática: conferências no Brasil, São Paulo, Brasil Debates, 1979), em edição coordenada por Darcy Antonio Portolese e Gabriel Roberto Figueiredo (com tradução das partes em italiano de Sônia Soianese e de Maria Celeste Marcondes), tendo havido uma segunda e uma terceira edição (em 1982); ora, foi com base neste texto em português (que não integrava as conferências de Belo Horizonte) que viriam a trabalhar Franca Basaglia e Maria Grazia Giannichedda quando publicaram, na Itália, em 1984, num número especial da revista do movimento, Fogli di Informazioni, a primeira edição italiana das Conferenze brasiliane. E veio a ser apenas no seguimento da descoberta, já no final do século, pelo psiquiatra Antônio Soares Simone, das fitas magnéticas das quatro conferências de Belo Horizonte, proferidas em Novembro de 1979, que se tornou possível publicar na Itália, no ano 2000, o volume das 14 intervenções e debates que constituem a versão canónica das Conferências Brasileiras hoje disponíveis em diversas línguas (ainda que, lamentavelmente, nenhuma delas a portuguesa)[17].
3. FRANCO BASAGLIA EM BELO HORIZONTE
Embora Franco Basaglia, vindo de Itália, tenha feito duas viagens a Belo Horizonte, chegou por muitas vezes a Belo Horizonte, no regresso de périplos por outros recantos do estado de Minas Gerais.
Chegado à cidade nas vésperas da “Semana Franco Basaglia”, que decorreu entre 25 e 29 de Junho de 1979 (onde leccionou um curso, seminários e supervisões), os organizadores do evento quiseram mostrar ao Professor italiano toda a rede de hospitais psiquiátricos públicos que faziam parte da “Fundação hospitalar do Estado de Minas Gerais” (o hospital Gaia Veloso, o Instituto Raul Soares, bem como o Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena)[18].
Segundo o testemunho de Antônio Soares Simone[19], se a visita aos dois primeiros hospitais já o tinha deixado em choque, a visita a Barbacena «teve nele um impacto tão violento que o deixou deprimido. Basaglia, que devia falar à comunidade terapêutica, chegou à sede do curso [em Belo Horizonte] mas não queria falar. No início, houve um silêncio pesado e depressivo, enquanto o público o incitava a falar». E, tendo começado a referir-se à história da Psiquiatria, foi deixando frases como estas: “há sítios no mundo onde a história parou”, “há situações em que é impossível encontrar soluções de compromisso, porque se o fizermos estaremos a fazer um compromisso com a morte, e com a morte não há compromisso possível”. E, então, acrescenta Soares Simone, «comoveu o público».
Na narração feita pelas jornalistas italianas Ludovica Jona e Elisa Storace, depois do facto extraordinário de a Junta Militar ter consentido na visita e depois de Basaglia ter visto realmente 1600 pessoas nuas e atadas, na viagem de regresso a Belo Horizonte, ele não disse uma única palavra e, depois disso, mal conseguia falar.
Depois de ver o que não concebia ver[20], de ouvir (do director de Barbacena) o que não concebia ouvir[21] e de, no final da visita, questionar o «governador da época, Francelino Pereira[22], sobre o que via: um campo de concentração e extermínio, responsável pela fabricação de cadáveres para 17 escolas de medicina»[23], Basaglia não conseguia falar.
Mais. Sempre que o tema foi Barbacena, “Basaglia não conseguia falar”: não o conseguiu fazer no final desse dia e tão-pouco o conseguiu na conferência agendada para 21 de Novembro de 1979, com o título “Psiquiatria e Política: o Manicómio de Barbacena”, porque depois de visionar o filme sobre o hospício, a emoção era tal, que teve de confessar mais uma vez a sua dificuldade em falar, ficando-se por desabafos como estes: “Barbacena é a expressão mais evidente de um fascismo reinante, que não quer os pobres à sua mesa”, “Devemos aplaudir chorando este filme, que nos deu a possibilidade de ver contra aquilo que devemos lutar”. E a conferência, nesse último dia do Congresso Mineiro de Psiquiatria, teve de se quedar na realidade pelo debate com os participantes.
Diante da completa estagnação relativamente à resposta aos problemas da saúde mental no estado de Minas Gerais, estava entretanto em preparação desde 1978 a realização do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, aproveitando o élan que já se fazia sentir um pouco por todo o país quanto à necessidade da reforma psiquiátrica, juntamente com o início da abertura política do regime. Por sua vez, o último congresso, cujas conclusões e promessas tinham caído em total esquecimento, datava já de 1972.
O III Congresso Mineiro de Psiquiatria não hesitou por isso em traçar como objectivo principal o de “deflagrar um processo político de mudanças na área da saúde mental, em Minas Gerais”[24], para o que convidou dois dos nomes mais reconhecidos e estimados no Brasil, pois se pretendia igualmente que o congresso tivesse um assumido “enfoque social”.
Robert Castel leccionou o curso «A Ordem Psiquiátrica».
Franco Basaglia ministrou o curso «Assistência Psiquiátrica e Participação Popular», constituído por quatro conferências (e respectivos debates):
- Psiquiatria e participação popular (em 17 de Novembro)
- Alternativas no trabalho em saúde mental (em 19 de Novembro)
- Psiquiatria e Política: o manicómio de Barbacena (em 21 de Novembro)
- Público e privado em psiquiatria (em 21 de Novembro)
Se a terceira destas intervenções se resumiu aos curtos desabafos já referidos, não foi esse o caso da última delas, texto que agora o PÁGINA UM dá a conhecer ao público de língua portuguesa, para ele remetendo o leitor.
Sobre a preparação, os intervenientes e as conclusões do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, o leitor interessado poderá igualmente obter informação relevante no respectivo relatório final (disponível aqui).
Se há 50 anos Barbacena era conhecida como a “Cidade dos Loucos”, tal o número de hospitais psiquiátricos nela existentes[25], e se pôde neste quarto de século voltar a ser chamada, como sempre fora, a “Cidade das Rosas”[26], quem poderá dizer até que ponto a passagem de Franco Basaglia por Belo Horizonte terá contribuído para que a cidade seja objectivamente reconhecida como uma das metrópoles com melhor qualidade de vida, no Brasil e no mundo?!
Uma nota final.
Para além da multiplicidade de artigos, de publicações (com dois livros ainda por sair) e de iniciativas que já tiveram lugar durante o corrente ano no Brasil, designadamente o Seminário “A Liberdade é Terapêutica”, realizado nos dias 20 e 21 de Junho pela Fundação Oswaldo Cruz, na Escola Nacional de Saúde Pública (para comemorar o cinquentenário do primeiro congresso da Psiquiatria Democrática, em Gorizia), entre os dias 19 a 21 de Setembro de 2024, vai realizar-se em Barbacena o 28.º Congresso Brasileiro de História da Medicina, tendo entre os seus organizadores o psiquiatra Jairo Toledo.
José Melo Alexandrino é professor universitário
N. D. Pode ler AQUI a conferência proferida por Franco Basaglia em Belo Horizonte, no Brasil, no âmbito do III Congresso Mineiro de Psiquiatria, na sede da Associação Médica de Minas Gerais, em 21 de Novembro de 1979.
A tradução portuguesa, segundo a norma anterior ao Acordo Ortográfico de 1990, é da autoria de José Melo Alexandrino (Direitos de tradução: ©PÁGINA UM), tomando como referência o texto da primeira edição italiana das 14 conferências de Franco Basaglia, na obra organizada por Franca Ongaro Basaglia e Maria Grazia Giannichedda, Conferenze brasiliane, Raffaello Cortina Editore, Milano, 2000 (também disponível, num outro formato, aqui).
Além dos agradecimentos devidos às editoras da referida versão italiana das Conferenze brasiliane (de que existe uma nova edição revista de 2018), Franca Ongaro Basaglia e Maria Grazia Giannichedda, o tradutor e o PÁGINA UM desejam igualmente exprimir e reiterar os seus agradecimentos a todos quantos tornaram possível a divulgação da obra mais famosa de Franco Basaglia fora de Itália, as pessoas como tal expressamente referidas na Nota introdutória de Franca Ongaro Basaglia, a saber: Fernanda Nicácio, Paulo Amarante, Denise Dias Barros, Antônio Soares Simone, Giampero Demori, Chiara Lesti, Paulo Vendinha, Claudia Ehrenfreund, Letizia Cesarini Sforza e Pier Aldo Rovatti.
[1] Acompanhada, como por certo ele faria questão que fosse, da transcrição dos debates com a assistência.
[2] Não só é esta a designação mais correcta para enquadrar o pensamento e a prática de Franco Basaglia [entre muitos, Maria Stella Brandão Goulart, De profissionais a militantes: a luta antimanicomial dos psiquiatras italianos nos anos 60 e 70, tese de doutoramento na Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2004, pp. 241 ss., acessível aqui; por último, Tom Burns/John Foots (eds.), Basaglia’s International Legacy: From Asylum to Community (e-book), Oxford, Oxford University Press, 2020, pp. 147 ss., 205 ss.], como é a única na qual o próprio Basaglia se reconhecia, na medida em que sempre contestou a integração na Anti-Psiquiatria (segundo a recente entrevista de Paulo Amarante ao Brasil de Fato).
[3] Bastando para o efeito atentar, por exemplo, no Encontro Internacional (International meeting “Franco Basaglia’s vision: mental health and the complexity of real life. Practice and research”) que, em Dezembro de 2014, reuniu durante quatro dias em Trieste, na Escola Internacional Franca e Franco Basaglia, mais de 250 participantes de 25 países, para uma conferência centrada na definição das actividades e objectivos do Plano de Acção 2014-2018 do Centro associado à OMS de Investigação e de Treino em Saúde Mental de Trieste.
[4] Francesco Parmegiani/Michele Zanetti, Basaglia. Una biografia, Trieste, Lint Editoriale, 2007; Oreste Pivetta, Franco Basaglia, il dottore dei matti: una biografia, Milano, Dalai, 2012; Rinaldo Conde Bueno, O pensamento de Franco Basaglia: dos caminhos da saúde mental italiana a uma vivência prática em Trieste, São Paulo, Dialética, 2020.
[5] No plano da história transnacional dos debates e da prática psiquiátrica, Tom Burns/John Foots (eds.), Basaglia’s International Legacy…, cit; em especial, sobre as transformações na prática psiquiátrica, Pietro Cipriano, Basaglia e le metamorfose della psichiatria, Milano, Elèuthera, 2018; Mario Colucci/Pierangelo Di Vittorio, Franco Basaglia: un intellettuale nelle pratiche, Milano, Feltrinelli, 2024.
[6] Neste aspecto, sobre a defesa radical dos direitos humanos, Wolfgang Jantzen, «Franco Basaglia und die Freiheit eines jeden. Oder: Die Suche nach der verlorenen Psychiatrie», in Jahrbuch der Luria-Gesellschaft, 2015, pp. 66-75 (disponível em <http://basaglia.de/Artikel/Basaglia%202015.korr.pdf>); Roberto Mezzina, «Basaglia after Basaglia: Recovery, human rights, and Trieste today», in Tom Burns/John Foots, Basaglia’s International Legacy…, cit., pp. 43-68.
[7] Para algumas das vozes italianas dissonantes de Basaglia – aí apresentadas como “relutantes” inventores de novas práticas de saúde mental –, vejam-se, por exemplo, os contributos aí reunidos por Pietro Cipriano (cfr. Basaglia e le metamorfose…, cit., Seconda Parte, pp. 197 ss.).
[8] Para os interessados e para o aprofundamento do tema, Pietro Cipriano, Basaglia e le metamorfose…, cit., pp. 22 ss., 41 ss., 93 ss.
[9] Cujas declarações vieram aliás a ser censuradas, na parte em que se referira ao orgasmo feminino.
[10] Como foi abundantemente noticiado na altura.
[11] A lei mais radical até hoje aprovada no mundo sobre a matéria.
[12] Como se refere no episódio 6 do podcast Tutta colpa di Basaglia, citado no texto de 22 de Agosto.
[13] Como recorda o psiquiatra Paulo Amarante, em entrevista recente: «[lembro-me] muito da forma afetiva, carinhosa e carismática com que ele lidava com as perguntas mais provocativas. Ele respondia à altura, mas sempre com muita dignidade e respeito»; aliás, como já dissera antes: «Basaglia criou um vínculo e uma relação específica com o movimento brasileiro, porque ele tinha essa tendência a pensar que o processo da reforma psiquiátrica não era um movimento técnico, só de leis (ele mesmo fazia críticas à lei italiana), mas um processo de transformação social, cultura e política, que devia ser feito cotidianamente por atores engajados na construção de novas formas de relação com a diversidade, a loucura, a diferença» (in Brasil de Fato, de 19 de Junho de 2024, actualizada a 4 de Julho, disponível aqui).
[14] Paulo Duarte de Carvalho Amarante (coord.), Autobiografia de um movimento: quatro décadas de Reforma Psiquiátrica no Brasil (1976-2016), Rio de Janeiro, CAPES, 2020, p. 33 (disponível aqui).
[15] Como titulou a revista Veja, na entrevista a Franco Basaglia publicada a 1 de Novembro de 1979, ou como recentemente lembrado por Silvano Agosti, na entrevista «Basaglia, come Cristo, disse: sono venuto a dare scandalo», in Pietro Cipriano, Basaglia e le metamorfose…, cit., pp. 288 ss.
[16] A dar lugar à censura de Brasília (ver a notícia «Psiquiatra denuncia e por isso é censurado», in Jornal do Brasil, de 22 de Novembro de 1979, p. 17).
[17] Designadamente (além das edições italianas de 2000 e de 2018): Franco Basaglia, Psychiatrie et démocratie conférences brésiliennes, trad. francesa de Patrick Faugeras [com Prefácio de Mario Colucci/Pierangelo Di Vittorio e Posfácio de vários], Toulouse, Erès, 2007; Franco Basaglia, Conferencias brasileñas, tradución de Florencia de Molina e Volia, Valladolid, La Revolución Delirante [com Prólogo de Laura Martín], 2021.
[18] Antônio Soares Simone, na obra organizada por Jair Furtado Toledo, (colônia: uma tragédia silenciosa), cit., p. 29.
[19] Na abertura do capítulo relativo às Conferências em Belo Horizonte, na obra Conferenze brasiliane.
[20] Realidade a que mais tarde chamaria “o Terceiro Mundo do Terceiro Mundo” (cfr. Jornal do Brasil, de 19 de Dezembro de 1979, caderno B, p. 6).
[21] As palavras do director foram estas: «Diante de um doente, sobre o qual se sabe que não têm efeito nem os fármacos nem qualquer outro tratamento, a solução é o método medieval: atá-lo de mãos e pés e deixá-lo apodrecer numa cela, acaso não chegue o neurocirurgião que transforma esta pessoa num vegetal, tirando-lhe vontade e emoções».
[22] Só em 21 de Novembro de 1979, o Governo viria a ditar a proibição a Basaglia de visitar qualquer outro manicómio no Brasil (cfr. Jornal do Brasil, de 22 de Novembro de 1979, p. 17).
[23] Cfr. Antônio Soares Simone, na obra organizada por Jair Furtado Toledo, (colônia: uma tragédia silenciosa), cit., p. 29.
[24] Relatório Final do Congresso, pág. 3.
[25] Do ponto de vista legal, ao nível federal, a reforma psiquiátrica só veio a ser aprovada no ano de 2001; porém, outros números falam por si: se, em 1980, havia no Brasil 95 000 pessoas internadas em hospitais psiquiátricos (a maioria das quais sem diagnóstico), actualmente, estão internadas apenas 6 000 pessoas; se, em 1980, os manicómios no Brasil eram os locais de morte e abandono que os documentos referidos neste texto testemunham, actualmente, o Brasil conta com mais de 150 centros de saúde mental.
[26] Assim, o depoimento do Secretário de Estado de Saúde de Minas Gerais, Marcus Vinícius da Silva, na obra organizada por Jair Furtado Toledo, (colônia: uma tragédia silenciosa), cit., p. 17.
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