WHITE BLACK MIRROR

Bill, o Profeta

por Ruy Otero // Setembro 19, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

O homem acordou, mas aquilo não era bem um despertar.

Pôs os óculos e levantou-se, mas o seu corpo não respondia como de costume.

Bill sentiu-se assustado. Não estava habituado a esse tipo de sensação. Mas do que é que poderia ter medo? Se nem da própria morte tinha. Esse assunto fora resolvido há muito, tendo mesmo superado essa vertigem ainda adolescente, adquirindo o conhecimento tanto metafísico como esotérico com a ajuda do seu pai, para que pudesse andar descansado, minimizando-a, tornando mesmo a sua morte num não assunto.

Até aí tratava-se de uma vitória sem dúvida.

Mas por que razão então acordara tão assustado o filantropo mais filantropo do mundo? Andaria com medo de si mesmo?

Andaria com medo da filantropia?

Era culto e perspicaz o suficiente para saber que muitas vezes somos nós mesmos os nossos maiores inimigos, mas não era esse o caso.

Ilustração: Bruno Rama

Mesmo ainda criança, o seu pai tinha-lhe passado o conhecimento suficiente para abortar de imediato mal viesse a ser invadido por más sensações que se apresentassem sem consentimento e licença para massacrar-lhe o espírito, ou a carne ou mesmo os ossos.

Aprendeu que seria preciso ter sempre um “bisturi” à mão e nunca haver contemplações para com os invasores, cortando o mal pela raiz. Bill cresceu com um pai não-ausente, um tutor, um criador de morte.

Tinha passado ao longo da vida por momentos muito mais conturbados e esse sentimento nunca o havia atingido, pondo em prática esses sábios ensinamentos. Não seria agora que iria ter medo fosse do que fosse. Estava aparentemente bastante treinado e era importante e valioso demais para ser invadido por essa vulgaridade mórbida chamada dor. Ou não se chamasse Bill Gates e fosse o grande profeta do nosso tempo.

Quantas pessoas eram ouvidas e tidas em conta acerca do curso do mundo?

Sabia também da artificialidade em que o estado actual do estranho planeta se encontrava, e da importância que isso tinha para os seus “negócios”.

Seria essa a razão da sua angústia?

Em principio nada lhe escapava. Estava sempre a par de todas as novidades. Haveria afinal mais marés que marinheiros? Por norma controlava tanto uns como outros. 

Estariam lá por cima a esconder-lhe alguma coisa? Sabia que alguma casta o achava um totó, embora nunca ninguém tenha tido a frontalidade de o dizer, muito menos o desprezível Elon Musk.

Mal pensou nisso, foi imediatamente invadido por um suor, ainda mais frio que a sua casa. Não estava a conseguir aplicar a filosofia habitual para contrariar a aproximação da dor.

Mas a verdade é que alguma coisa se estava a apoderar cada vez mais de si, começando até a ofegar. Chegou mesmo a questionar-se se teria oxigénio suficiente para mais um dia de árduo trabalho que se avizinhava na Fundação.

Qual fundação? Seria a própria fundação mais um holograma, uma mentira, uma historieta

montada para iludir o terceiro mundo? Gracejou para com os seus botões de pijama. Estaria a perder o tino?

Demasiadas dúvidas estavam a deixá-lo deveras angustiado.

Ilustração: Ruy Otero

Levantou-se e foi beber da sua água, uma água a que muito pouca gente tinha acesso no mundo, era cristalina o suficiente para que, só de olhar, acalmasse qualquer um, como que por magia. Era uma água que não vinha de uma nascente qualquer. Nem ele mesmo conhecia a sua proveniência.  

Mas não, a água mágica não teve o efeito desejado. Nem pelo olhar, nem pela ingestão.

Chamou por Melinda, embora soubesse que ela não estava. Já não estava há muito tempo. Talvez nunca tenha estado mesmo.

Estaria Bill sozinho no mundo e não o sabia?

Lembrou-se do enorme Charles Dickens e da necessidade da moral e sentido nas histórias. Estaria isto tudo a querer dizer alguma coisa? Demasiadas perguntas sem resposta estavam a deixá-lo cada vez mais fora de si.

Pensou em telefonar ao Doutor Johnson, médico amigo de uma vida e que sabia de muitas coisas que Bill também sabia, mas ultimamente achava que o Doutor Johnson também andava esquisito, mas de uma forma esquisita.

Ainda mais esquisita.

Na última vez que estiveram juntos falou de Saturno desnecessariamente, facto a que ninguém ficou alheio na última reunião secreta.

O Doutor Johnson estava a ficar velho e não percebia os novos contextos, a nova inteligência, as novas atmosferas que estavam a ser desenhadas, tinha qualquer coisa de bafiento, não entendia esta recente filantropia, embora fosse ou tivesse sido um grande médico, sem dúvida, mas Bill não confiava em quase ninguém.

Estaria a ficar velho, e como acontecia a toda a gente, isso começava a perturbar-lhe o sistema nervoso de certa maneira?

Mas Bill não era toda a gente.

De morte percebia ele, isso estava bem estudado, agora quanto à morte de células já tinha mais dúvidas, sabia por intuição que as células muitas vezes desenvolviam comportamentos poéticos. Tomava os químicos certos para contornar esse problema ou essa vicissitude. Nunca duvidara disso, pelo menos até àquele dia.

Bill tinha medo da poética.

Era o seu maior medo.

Não gostava de não ter controle sobre si, sobre o que fosse. Nascera para mandar.

Andaria Bill porventura enganado?

Apenas por estar a questionar-se desta forma, já se sentia doente. Era como se coabitassem dois Gates num mesmo Bill, ao ponto de começar a sentir tonturas e náuseas.

Ilustração: Ruy Otero

Sabia que tinha uma casa inteligente, mas não assim tanto, ainda havia muito para evoluir e não seria certamente a sua casa com as suas casas-de-banho hiper inteligentes e sustentáveis das quais se orgulhava muito, que lhe resolveriam o problema das tonturas. De que serviria uma casa daquelas se o espírito baqueasse…

Lembrou-se do Steve que também foi desta para melhor fora de tempo, sim desse Steve que ele tanto odiara e invejara ao longo da vida, desse Steve que tinha melhor gosto que ele, que era adorado como se fosse uma rock star e que não tinha medo de calçar Asics Tiger de corrida hiper coloridas, contrastando com o minimalismo Calvin Klein. O mesmo Steve que o tinha ofendido directa ou indirectamente vezes sem conta, ao ponto de o fazer chorar nalgumas situações.

Não estava a perceber bem porquê, mas devido à fraqueza momentânea daquele despertar violento e anormal, lembrava-se agora do Steve que muito trabalho lhe havia dado. O que é que aprendera com Jobs que lhe valesse agora? 

Nada, concluiu e isso até lhe trouxe algum conforto momentâneo.

De que lhe serviria o cinismo astuto que aprendera com o homem da maçã num momento tão fora de controle como aquele?

De nada.

Teve de sentar-se no sofá para não sucumbir ao desmaio eminente. Estava sozinho e não encontrava a porta do quarto devido às tonturas que apareciam como se fossem o prato principal do dia. 

Uma semana antes tinha dado várias entrevistas a umas cadeias de televisão que estavam “ingenuamente” loucas para saber o que o filantropo mais filantropo do mundo achava da terceira guerra mundial que o mesmo previra, da nova pandemia que o mesmo anunciara e quais os seus prognósticos que imaginavam grande prejuízos para as consequências das alterações climáticas que já por aí andavam e que o próprio também previra, tendo no entanto sempre uma solução.

E agora estava ali na cama, como que abandonado a si próprio, entregue à sorte.

Algo não estava a encaixar no guião.

Seria culpa dos guionistas? Seria ele apenas o produtor, sabendo que qualquer Goldwyn Mayer tinha o seu fim como toda a gente. O pai não lhe ensinara isso.

Questionou-se.

Ora, um profeta não pode ter dúvidas nem tonturas…. Pensou.

Estava o mundo a sofrer com as suas sábias previsões, portanto, não seria possível estar assim de rastos. Um profeta não hesita. Mas então que fazer?

Ilustração: Ruy Otero

Seria Bill um profeta a sério? Teria o mundo a possibilidade real de ter profetas, ou estaria o planeta a ficar refém da estupidez generalizada?

Estaria a bola-mundo às voltas sem rumo, assim como o seu estômago? A Inteligência Artificial estava a fazer raccord com a estupidez natural?

Encontrou finalmente a porta certa e Bill voltou para a cama. Ao fim de uns terríveis minutos sem segundos voltou a adormecer, cheio de dúvidas.

Sonhou com flamingos a saltitar com graça e em harmonia sobre verdes pradarias em croma, invadidas pela luz suave do amanhecer californiano. 

Quando acordou novamente, percebeu que alguma coisa continuava errada.

Já não se sentia tonto, nem agoniado, mas sentia-se anormalmente leve.

Leve demais, como se não tivesse peso.

Talvez tivesse o peso de uma conspiração.

Talvez o mundo fosse só e unicamente uma grande conspiração contra o próprio mundo. Uma auto-conspiração. Parecia que alguma coisa estava a chegar ao fim mas desta vez, Bill não tinha solução para o que aí vinha. Até parecia que já não estava cá.

Era esquisito mesmo, (os americanos dizem weird. Toda a gente diz weird).

Já na casa de banho percebeu que o espelho desaparecera do sítio, mas da janela continuava a ver-se uma imensa pradaria cheia de pássaros e árvores ainda sem denominação, de uma beleza refrescante e acolhedora, embora não tivessem uma forma comum e reconhecível pela biologia.

Bill Gates imaginou-se a voar, mas depois voltou a si e conseguiu encontrar a espuma da barba.

E depois desmaiou novamente.

Não se percebia bem. Tudo começava a ter a forma de um pesadelo.

Ruy Otero é artista media

Ilustrações de Manuel Silva


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