O saldo migratório de 2023 foi o terceiro maior de sempre, apenas ultrapassado pelos anos de 1975 e 1976, no decurso de processo de Descolonização no pós-25 de Abril, segundo uma análise do PÁGINA UM a partir de dados demográficos desde 1887 até 2023. Mas se este recente fluxo de entradas marca o terceiro ciclo de saldo migratório positivo – num país que desde finais do século XIX se tem mostrado um país mais ‘convidativo’ para sair do que para entrar -, tem características especiais: o fluxo de saída (emigração) encontra-se também a níveis elevados; menos de metade das entradas constituem regressos (de portugueses); e o crescimento populacional coincide com um saldo natural negativo. O impacto destes fenómenos demográficos, bons ou maus, será inédito em Portugal.
São números oficiais – e imunes a orientações ideológicas. O fenómeno migratório em Portugal nos últimos anos aproxima-se do intenso fluxo de entrada de novos residentes no período da Descolonização em África. De acordo com a análise do PÁGINA UM aos saldos migratórios – a diferença entre imigração (entrada de residentes) e emigração (saída de residentes) – desde finais do século XIX, os últimos dois anos (2022 e 2023) juntam-se aos anos de 1975 e 1976, no restrito ‘clube’ dos que registaram valores positivos superiores a 100 mil pessoas.
Sendo certo que o ano de 2023 (com saldo migratório de 155.701 pessoas) e de 2022 (+136.144 pessoas) ficaram ainda bastante aquém do enorme fluxo decorrente da independência das antigas colónias africanas – em 1975, o saldo migratório foi superior a 257 mil e no ano seguinte superou os 177 mil –, a tendência nos anos mais recentes evidencia um fenómeno de contornos inéditos.
No último quinquénio, o somatório do saldo migratório – assente sobretudo na entrada de estrangeiros, que se aproximará dos 400 mil entre 2019 e 2023 – atingiu, oficialmente, os 488.816 indivíduos, mesmo contabilizando-se a saída para o estrangeiro de quase 144 mil pessoas nesse período. Estes valores confrontam com um somatório do saldo migratório de quase 530 mil pessoas entre 1974 e 1979, mas em circunstâncias políticas e sociais únicas e irrepetíveis, ou seja, resultaram na entrada sobretudo de portugueses das antigas colónias africanas, o que, aliás, veio a quebrar um ‘estrutural’ saldo migratório profundamente negativo durante o Estado Novo, que se prolongava desde 1948 até 1973.
Numa análise do PÁGINA UM aos dados demográficos – baseada nos saldos migratórios indicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) a partir de 1991 e, no período anterior, nos cálculos dessa variável a partir das estimativas demográficas da população e da mortalidade e nascimentos por ano a partir de 1886 –, mostra-se patente que o país assiste, nos últimos anos, ao terceiro ciclo no regime democrático com um saldo migratório positivo, e que tem permitido compensar um saldo natural negativo (mais mortes do que nascimentos).
Com efeito, antes da Revolução dos Cravos, a ‘porta da saída’ de Portugal foi muito mais aberta do que a ‘porta de entrada’. Entre 1887 e 1929, raros foram os anos com saldo migratório positivo. Contam-se apenas quatro anos em 43 anos, destacando-se 1918 com valores substanciais (78.395), que resultaram sobretudo do fim da Primeira Guerra Mundial. Porém, esse ano marcou também o auge da gripe espanhola em Portugal, que contribuiu para a morte de 4,2% da população do país. A título comparativo, no ano de 2021, em pleno auge da pandemia da covid-19, morreu 1,2% da população portuguesa.
A partir dos anos 30, e até ao período imediatamente a seguir ao fim da Segunda Guerra Mundial, o fluxo migratório foi ligeiramente favorável à entrada, sendo que o saldo foi genericamente positivo, embora mais marcante em 1940, no ano a seguir ao início da guerra mundial. Nesse ano, em que Portugal contava apenas uma população de cerca de 7,7 milhões de habitantes e um saldo natural extraordinariamente positivo (mais cerca de 67 mil nascimentos do que mortes em cada ano), o saldo migratório deu então um pulo de quase 60 mil pessoas.
O ciclo económico e político nas décadas de 50 e 60 do século passado levariam a uma ‘fuga’, em muitos casos literal, dos portugueses para o estrangeiro, numa primeira fase sobretudo para o Brasil e América do Norte, e a seguir para países europeus, com França e Alemanha à cabeça. Deste modo, de acordo com os dados do INE, contam-se 26 anos consecutivos, entre 1948 e 1973, sempre com saldo migratório negativos, ultrapassando mesmo a fasquia dos 150 mil nos anos de 1952, 1965, 1967, 1969 e 1970. Por causa desta ‘sangria’, e pese embora um saldo natural bastante positivo de cerca de um milhão de pessoas, na década de 60 contabilizou-se um decréscimo populacional em Portugal, por causa de um saldo migratório acumulado negativo de quase 1,3 milhões de pessoas.
Apesar de os anos da Primavera Marcelista terem marcado uma tendência de atenuação emigratória dos portugueses – em 1973, o saldo migratório continuou negativo, embora ‘apenas’ na ordem dos 74 mil, então o valor menos desfavorável desde 1963 –, foram os acontecimentos políticos de 1974 que inverteram por completo os fluxos de entrada e saída.
No ano da Revolução dos Cravos, o saldo migratório passou repentinamente para terreno positivo (+46.214), mas ‘disparou’ para os 257.393 no ano seguinte, descendo para 177.655 em 1976. Ou seja, em apenas três anos, o saldo migratório foi positivo em mais de 480 mil. Considerando o saldo natural então bastante positivo, entre 1974 e 1976, a população portuguesa aumentou nesse triénio mais de 722 mil pessoas, um crescimento inédito na História de Portugal. O impacte desse ‘êxodo’ vindo das antigas colónias africanas foi complexo, tanto a nível social como urbano. Uma parte bastante considerável dos imigrantes era de origem portuguesa e confluíram sobretudo para a Grande Lisboa, criando, em muitas zonas, aglomerados de barracas e bairros de génese ilegal sem condições mínimas de salubridade.
O saldo migratório positivo pós-25 de Abril manteve-se apenas até 1982. O ano seguinte, marcado uma intensa intervenção do Fundo Monetário Internacional (FMI) e uma inflação galopante, iniciou novo período de saída em massa para o estrangeiro, com o regresso do saldo migratório negativo, embora não tão baixo como nos anos 60. O ano de 1989 foi aquele que registou, neste período de mais saídas do que entradas – e que se prolongou por 10 anos, até 1992 –, o saldo migratório mais desfavorável (-37.350).
Com o crescimento económico resultante dos fluxos financeiros da entrada de Portugal na então Comunidade Económica Europeia (CEE), surgiu novo fluxo favorável no saldo migratório, em grande parte para o sector da construção civil. O ano de 1993 seria o início do mais longo, até agora, período de saldos migratórios positivos, que se prolongaria até 2010. O cume seria, contudo, atingido no ano 2000 (+67.108 indivíduos).
Com nova crise financeira, e a consequente entrada da ‘troika’ em Portugal, voltaram a sair mais do que aqueles que entravam. O saldo migratório manteve-se negativo entre 2011 e 2016, agravando assim o peso negativo do saldo natural, que desde 2009 passou a ser negativo. No sexénio 2011-2016, Portugal terá perdido mais de 216 mil habitantes, registos que apenas encontram paralelo na década de 60.
A partir de 2017, apesar do saldo natural continuar extremamente negativo – nos últimos sete anos contribuiu para uma ‘perda populacional’ de 231.774 –, a inversão dos fenómenos migratórios modificou drasticamente o cenário demográfico. E em 2019 o ganho populacional pelo saldo migratório (+67.163) começou a ‘compensar’ as perdas no saldo natural (-25.264). Nesse ano, o crescimento populacional foi assim de quase 42 mil pessoas.
Embora o triénio da pandemia (2020-2022) tenha refreado temporariamente o saldo migratório, e agravado o saldo natural – tanto por via da redução dos nascimentos como pela elevada mortalidade –, mesmo assim o nível de ‘entradas’ manteve-se elevado. Em 2020, de acordo com os dados do INE, contabilizaram-se 83.654 imigrantes contra 25.886 emigrantes, resultando num saldo migratório positivo de 57.768 indivíduos. No ano seguinte, em plena pandemia, mesmo assim entraram 97.110 imigrantes, tendo saído de Portugal mais 25.079 pessoas, significando, deste modo, um saldo migratório positivo de cerca de 72 mil.
No ano de 2022 ultrapassou-se pela primeira vez desde 1975 a fasquia dos 100 mil para o saldo migratório, fruto da entrada de 167.098 imigrantes e da saída de 30.954 emigrantes. Por fim, no ano passado, o saldo migratório chegou aos 155.701, por via de uma entrada de perto de 190 mil emigrantes e da saída de 33.666 pessoas para o estrangeiro. Note-se que a emigração de 2023 constitui o valor mais elevado desde 2016, embora a proporção se tenha modificado bastante. Se em 2017 por cada 100 pessoas que emigravam para o estrangeiro se contabilizavam 147 entradas de emigrantes, no ano passado esse rácio subiu para 562.
Apesar de o INE ainda não ter revelado o número de estrangeiros entre os emigrantes em 2023, mostra-se muito provável que atinja os níveis de 2022, quando apenas um terço (cerca de 57 mil de entre 168 mil) das entradas foi de cidadãos portugueses. Se a proporção de emigrantes estrangeiros em 2023 tiver sido similar à de 2022, então terão entrado em Portugal nos últimos cinco anos 379 mil estrangeiros.
Estes valores devem ser, contudo, observados com precaução, não apenas porque estes números não contabilizam situações de imigração ilegal, como uma parte pode ter, entretanto, saído para outros países. Por outro lado, no grupo de nacionais que entraram em Portugal estará também um número indeterminado de portugueses que adquiriram a cidadania por razões familiares, mesmo nunca tendo aqui residido.
No entanto, constata-se uma evidência: o último quinquénio, e especialmente os últimos três anos, está a ser marcado por uma dinâmica demográfica inédita: a população aumenta num cenário com saldo natural fortemente negativo, com uma emigração ainda intensa mas com um saldo migratório bastante elevado por via de uma imigração crescente. O rápido crescimento demográfico de curto prazo (três anos) observado em 2023 tem similitudes com o da segunda metade dos anos 70 e meados dos anos 90 do século passado, mas baseia-se em fenómenos sociais bastante distintos.
Com efeito, o crescimento actual assenta somente na imigração de estrangeiros, algo que exige – mais do que sucedeu durante o período da Descolonização, onde o aumento populacional radicou numa natalidade elevada em migrantes portugueses não completamente ‘desenraizados’ – uma intervenção específica de integração social e de planeamento urbanístico. Estará a ser feita, ou a ser bem feita?
A resposta pode começar a desenhar-se no facto de o Governo ter agora em mãos a regularização de 400.000 pessoas que estão em Portugal, e sobre as quais o próprio Governo desconhece “quem são, onde estão, onde trabalham”, como até já confessou recentemente o secretário de Estado Adjunto da Presidência, Rui Freitas.
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