Em Portugal, surge o calor, surgem os incêndios; surgem os incêndios, surgem as acusações de incendiarismo. Por mais que se conheçam as causas e o regime dos fogos devastadores em Portugal, todos os anos aos primeiros fogos com alguma dimensão, além do pânico cada vez maior, sobretudo após as mortandades de 2017, aparece uma miríade de «comentadores de bancada» apontando quase exclusivamente o dedo ao São Pedro (leia-se, clima mediterrânico, com os seus Verões quentes e secos, por vezes ventosos) e aos malévolos incendiários, como se os fogos de grande dimensão, e só esses, tivessem um ADN próprio.
Viu-se isto esta semana, não pela boca apenas de um bombeiro mais extenuado ou de um autarca mais estouvado, mas do próprio primeiro-ministro, Luís Montenegro, que prometeu “ir atrás” dos criminosos e dos “interesses que sobrevoam” os incêndios florestais. Encontrar um ‘inimigo’ vago, mas que apela à emoção popular, é uma típica estratégia da ‘falácia do espantalho’, que servia, aliás, na perfeição para não discutir como foi possível não se ter encerrado a tempo a A1. Foi um milagre não ter ocorrido uma tragédia pior do que a de Pedrógão Grande em 2017.
No meio disto, culpa-se sempre a floresta “desregrada”, mas as mudanças espoletadas pelos Governos, desde os anos 90, quando se agravou a incidência destrutiva, e sobretudo desde os trágicos anos de 2003, 2005 e 2017, são pouco mais do que incipientes e conjunturais. Nada se muda de estrutural, nada se modifica. É tudo para fazer de conta, como os “pechisbeques” dos kits de protecção anti-fogos comprados a uma empresa de turismo, e que afinal eram os primeiros a arder – uma situação tão ridícula que até causa vergonha alheia.
Infelizmente, esta irritante tendência dos políticos de “fazer que fazem”, e dos portugueses em geral a culpar entes diabólicos ou a opinar com base na ignorância – vulgo, a dar bitaites –, constituem os principais factores sociopolíticos para não se mudar o paradigma de gestão da floresta e dos espaços florestais.
Afinal, porquê mudar se tudo estaria bem sem os incendiários a colocar fogos? Não bastaria apanhá-los todos e metê-los na prisão? E não bastava que os proprietários “limpassem” os matos? Infelizmente, a resposta é não.
Procurarei, em traços muitos breves, neste texto, apresentar algumas reflexões.
Comecemos, assim, por «desculpabilizar», desde já, o clima mediterrânico. Na verdade, a Natureza é como é. Em termos de risco, o clima mediterrânico está para Portugal como os terramotos estão para o Japão. Não quer isto dizer que são situações similares, mas apenas que o Japão soube ao longo do tempo minimizar os riscos (através da construção anti-sísmica e planos de prevenção e acção). O Japão não se queixa dos deuses por causa dos terramotos e, apesar de quando em vez serem graves, não causam agora as mortandades que se registavam até ao início do século XX.
A analogia nem sequer é muito feliz, porque o clima mediterrânico tem inegáveis vantagens que os terramotos obviamente não têm. Além de nos beneficiar com uma meteorologia que inveja meio mundo, e que fornece matéria-prima para o turismo, o clima mediterrânico concede à nossa floresta – e à vegetação em geral – condições quase únicas para um elevado crescimento, e portanto um elevado potencial económico, se bem gerido.
De acordo com um recente estudo internacional, Portugal é o país mediterrânico que, potencialmente, maior riqueza no sector florestal pode extrair por hectare (344 euros por ano). Por exemplo, França regista 292 euros e Espanha apenas 90 euros. Devíamos agradecer à Natureza este clima; não “amaldiçoá-la”.
Sendo incontornável que haverá sempre incêndios, porque o mundo não é perfeito, vejamos onde está o cerne do problema em Portugal. Sobretudo nas últimas três décadas, o regime do fogo tem estado sobretudo associado a dinâmicas antropogénicas, tanto ao nível de acções danosas (negligência à cabeça, e algum dolo) e da (in)capacidade de supressão de incêndios, como ao nível da gestão de combustíveis e de planeamento territorial.
No entanto, embora exista uma forte correlação entre número de ignições e a densidade populacional em regiões mediterrânicas – por exemplo, o distrito do Porto é historicamente aquele que regista mais ignições –, tal já não se verifica entre o número de ignições e área ardida. Com efeito, são factores como a orografia, a precipitação fora da época de estiagem e a percentagem de área inculta que apresentam maiores correlações positivas com a área ardida total.
Os efeitos dos incêndios apresentam-se assim, numa base regional, como problemas de distinta intensidade e dimensão. Mais população significa maior número de ignições, mas a maior área ardida observa-se sobretudo em regiões de menor densidade demográfica. Exemplo paradigmático dessa “dualidade” regional observa-se num dos períodos de recrudescimento dos incêndios florestais, entre 1996 e 2005, período sobre o qual me debrucei com detalhe quando escrevi o ensaio Portugal: O Vermelho e o Negro‘, publicado em 2006, mas que ainda hoje, retirando a parte estatística mais ‘datada’ mantém uma infeliz actualidade.
Tendo sido contabilizadas, neste intervalo, cerca de 284 mil ignições e uma área ardida de quase 1,64 milhões de hectares, a distribuição foi a seguinte: 39,2% do total das ignições (cerca de 111 mil) concentraram-se em apenas 25 concelhos (quase todos do litoral, mais densamente povoado), mas ardeu aí apenas 10,3% do total nacional (menos de 170 mil hectares); e nos 25 concelhos com menor número de ignições (todos do interior despovoado) registaram-se apenas 10,7% do total (pouco mais de 30 mil) mas contribuíram em 39,0% (cerca de 640 mil hectares) para o total da área ardida.
O êxodo rural em Portugal, iniciado nos anos 60 e agravado significativamente a partir de meados da década de 1980, mostra-se, sem dúvida, como uma das principais causas para o surgimento de fogos devastadores. Um dos efeitos da perda demográfica especialmente sentida nas aldeias, após a implementação da Política Agrícola Comum, foi a eliminação quase total e imediata de práticas e usos tradicionais associados à agricultura, pastorícia e silvicultura, que contrariavam a ocorrência e a propagação dos incêndios.
A sociedade rural, imagem de marca de Portugal durante séculos, modificou-se de forma abrupta em poucas décadas, levando simplesmente ao abandono de vastas áreas agrícolas e florestais, sem a ocorrência de qualquer transferência relevante de direitos de propriedade para quem não seguiu esse êxodo para as cidades e litoral. A população empregada no denominado sector primário tradicional passou de expressivos 47,6% em 1950 para apenas 2,8% em 2011.
Como reverso dessa “moeda de modernidade”, foi colossal a redução de actividades permanentes no espaço rural: em 2011 eram apenas 120 mil pessoas com emprego no sector primário, enquanto em 1950 suplantavam 1,5 milhões. Paradoxalmente, apesar dessa evolução, e por via de planos directores municipais demasiado permissivos, aumentaram as habitações em espaço florestal ou contíguo, sobretudo de segunda residência, levando não só a uma maior probabilidade de procedimentos negligentes causadores de fogos como também a um agravamento da complexidade do combate.
Efectivamente, muitos dos grandes incêndios tomaram proporções incontroláveis porque o sistema de combate, bem como os investimentos de prevenção, tem tido como prioridade a defesa de bens (habitações e equipamentos) em detrimento da protecção da floresta. O problema desta estratégia é de aumentar a probabilidade de incêndios devastadores, que assim destroem mais floresta e, provavelmente, mais casas.
O aparente paradoxo patente na ocorrência de uma maior destruição pelos incêndios onde mais se reduziu a quantidade de pessoas – sabendo-se serem estas que causam os fogos –, explica-se facilmente. O surgimento de incêndios devastadores sobretudo desde o início do século XXI decorre do incremento muito significativo da biomassa vegetal nos espaços florestais, tanto horizontal como verticalmente, em virtude das mudanças socioeconómicas – que levaram ao desaproveitamento de subprodutos florestais (e.g., lenha, matos, etc.) – e do forte abandono agrícola e florestal.
Em 2010 a área agrícola era a menor desde o início do século XX e a área e mato (com pastagens) estava em vias de ultrapassar a área florestal, algo que não acontecia desde a década de 1940. Entre 1950 e 2010, a área de matos e pastagens quase quadruplicou, passando de 885 mil hectares para um pouco acima de três milhões de hectares, o valor mais elevado desde a década de 1920.
Por outro lado, a política florestal a partir dos anos 80 – que coincidiu com o agravamento do problema dos incêndios – privilegiou sobretudo a substituição de áreas de pinhal, algumas afectadas pelos fogos, por eucaliptais (ambas espécies altamente combustíveis), mantendo-se na generalidade dos casos uma deficiente gestão antrópica, enquanto ao redor desses espaços florestais medraram matagais.
Para agravar a situação, aumentaram os fenómenos meteorológicos extremos, bem patentes no ano de 2017, com dois devastadores períodos a ocorrerem fora do Verão (Junho e Outubro). As condições meteorológicas do mês de Setembro deste ano foram também muto agressivas, e localizadas em regiões restritas, bem patente em destruições que, por vezes, ultrapassam meia centena de milhar de hectares, ou mesmo mais, em apenas um dia. Isso é uma consequência não apenas meteorológica. Com uma floresta mesclada com matagais e densos estratos vegetais, por vezes intransponíveis, também pela orografia, e sem o “obstáculo” das outrora zonas agrícolas – que serviam de zonas-tampão –, os fogos encontram agora extenso e contínuo combustível para galgarem milhares e milhares de hectares.
Outro aspecto particularmente grave, que se tem vindo a intensificar, é a recorrência do fogo, i.e., a maior susceptibilidade de determinadas regiões a serem percorridas ciclicamente por incêndios, retirando-lhes assim qualquer possibilidade de rentabilidade económica, o que incentiva a manutenção deste status quo.
Por exemplo, um estudo desenvolvido pelo Instituto Superior de Agronomia para um período de 16 anos (entre 1990 e 2005) apurou que quase 300 mil hectares arderam duas vezes, cerca de 83 mil hectares três vezes e uma área de 28 mil hectares foram afectados pelo menos quatro vezes, estando essa recorrência associada a queimadas para pastagens. Torna-se assim absurdo, com tamanhas recorrências, tentar encontrar interesses, urbanísticos ou mineiros, como causa para os fogos. Até porque a eliminação das árvores não traz sequer vantagens, a não ser em zonas periurbanas, para a construção, além de que, no caso de explorações mineiras, a autorização nunca estará condicionada à existência ou não de cobertura arbórea na zona a licenciar.
Nas análises sobre os incêndios florestais em Portugal um outro factor que sempre surge é o alegado contributo do regime de propriedade, marcadamente de minifúndio sobretudo a norte do rio Tejo e no Algarve. Embora os dados oficiais sejam pouco precisos sobre o cadastro e a propriedade rústica em Portugal, e sobretudo em relação às propriedades com uso silvícola, sabe-se que Portugal está, segundo a FAO, entre os 10 países do mundo com maior percentagem de área florestal privada, ocupando a primeira posição a nível europeu.
Os valores geralmente apontados para caracterizar o regime fundiário na floresta portuguesa baseiam-se em estimativas ou em amostragens, ou também em informação dos recenseamentos agrícolas. Por esse motivo, embora a Autoridade Tributária e Aduaneira indique a existência de 11.578.124 prédios rústicos no ano de 2015, ignora-se os que são ocupados por floresta, e nem se sabe se este número corresponde à realidade, uma vez que nem existe coincidência entre os registos do Cadastro Predial, da Matriz das Finanças e do Registo Predial. Esta ignorância é também demonstrativa do desleixo geral do país relativamente a um problema crucial. A criação do Balcão Único do Prédio (BUPi) tem contribuído para inverter esta situação, mas também tem revelado uma tenebrosa realidade: há uma parte substancial dos prédios rústicos sobre os quais ninguém reivindica a propriedade. Ou seja, estão ao abandono, são ‘pasto de chamas’, e se arderem levam muitas outras áreas atrás.
Em todo o caso, grosso modo estima-se que as propriedades públicas, incluindo os baldios (com gestão conjunta do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas), agrega cerca de 540 mil hectares, estando assim a restante área ocupada por proprietários privados.
Na região a norte do Tejo, onde se localiza a esmagadora maioria da área de pinheiro e eucalipto, e se concentra o minifúndio, cerca de 54% da área florestal encontra-se distribuída por povoamentos com menos de 10 hectares. No caso do pinheiro, 63% dos povoamentos têm áreas inferiores a 10 hectares e 25% áreas inferiores a dois hectares, enquanto no caso do eucalipto cerca de metade dos povoamentos têm dimensão inferior a 10 hectares.
Há cerca de uma década, aquando da elaboração da Estratégia Nacional para as Florestas, estimou-se que cerca de 61% do total dos proprietários florestais possuíam parcelas com menos de cinco hectares, embora apenas detivessem cerca de 26% da área florestal do país, dando assim uma ideia clara da predominância do regime de minifúndio.
Com efeito, cerca de 10% da área florestal era formada por parcelas com menos de um hectare e 16% por parcelas entre um e cinco hectares, significando isto ser muito frequente um proprietário possuir, de forma disseminada, um elevado número de parcelas de reduzidíssima dimensão.
Para agravar a situação, grande parte das propriedades com área inferior a cinco hectares possuíam povoamentos dominados por pinheiro, dimensão onde impera geralmente ausência de investimento, e também pouca expectativa de obtenção de rendimento. Numa postura optimista, estas minúsculas parcelas florestais – que podem representar, em manchas contínuas, centenas de milhar de hectares – constituem, individualmente, meros fundos de poupança para satisfação de necessidades económicas conjunturais. No caso das propriedades inferiores a um hectare não existia mesmo qualquer produção, tanto mais que numa percentagem significativa os proprietários nem sequer sabem identificar nos terrenos as suas parcelas.
Nas ciências económicas, a denominada Teoria dos Jogos mostra, infelizmente, que a melhor decisão de um qualquer agente numa parcela de “floresta” rodeada por proprietários absentistas é não fazer qualquer gestão, porque a probabilidade de arder gastando ou não dinheiro é praticamente a mesma, e assim optando por não fazer gestão, pelo menos “poupa-se” nesses custos.
Ou seja, não há receitas mas também não há custos, logo não há prejuízo. Claro, o prejuízo vem para a sociedade, através da destruição dos incêndios, i.e., de uma externalidade negativa. Esta é a triste realidade portuguesa: face à ausência de associativismo florestal, a inacção de diversos agentes causa uma generalizada inacção, porquanto o risco de um investimento se “esfumar” com um incêndio, proveniente da ausência de gestão em redor, acaba por determinar, como estratégia dominante, ninguém fazer gestão.
No caso do eucalipto, a situação era um pouco melhor, tendo em consideração que grande parte da sua área se situava em propriedades com dimensão entre os cinco e os 20 hectares (12% do total da área florestal) e entre os 20 e os 100 hectares (7% do total). Nestes casos verificava-se já uma presença de investimento e gestão, tendo a exploração um rendimento relevante para os proprietários. A restante área (55%), agregando 15% dos proprietários, possuía uma dimensão superior a 100 hectares, embora dominada por sobreiros e azinheiras, portanto sobretudo localizadas a sul do Tejo e em herdades do distrito de Santarém.
Porém, este cenário, que desde 2007 não se terá alterado, pode induzir a uma conclusão precipitada. Sendo certo que uma estrutura de minifúndio pode conduzir mais rapidamente à ineficiência económica, será imprudente generalizar e determinar uma correlação imediata entre incêndios e minifúndios. De facto, mostra-se conveniente investigar antes esta questão por duas novas perspectivas, complementares.
Primeiro, deve analisar-se diacronicamente o regime fundiário português para determinar se ocorreu algum fenómeno que tenha alterado a estrutura da propriedade típica e que per si justifique um agravamento dos incêndios florestais a partir da década de 1980.
Segundo, comparar a afectação das áreas ardidas em função da tipologia dos proprietários, ou seja, pôr em paralelo o grau de destruição das áreas de gestão pública, de gestão pelas empresas de celulose (que gerem áreas de maior dimensão) e as restantes áreas privadas que incluem o minifúndio.
No primeiro caso, analisando a informação disponível em diversas fontes, verifica-se que o fraccionamento da propriedade rústica é um fenómeno antigo e já bastante estabilizado. Com efeito, a génese do minifúndio surge no decurso de um processo político iniciado nos anos 30 do século XIX, com a instauração da Monarquia Constitucional, que resultou na desamortização de grandes propriedades então pertencentes à nobreza e à Igreja.
Posteriormente, teve ainda um maior impulso com a definitiva abolição dos morgados e a entrada em vigor do Código Civil de 1867, quando estabeleceram sem excepção direitos de herança a todos os filhos. Uma década depois existiam cerca de 5,05 milhões de prédios rústicos, manifestando-se já nesse período excessiva fragmentação, sobretudo na região do Noroeste, com efeitos perniciosos em termos de desenvolvimento agrícola.
Apesar de várias tentativas políticas para evitar o contínuo fraccionamento por via das heranças, somente nos anos 20 do século XX, quando o número de prédios rústicos já ultrapassara os 10,7 milhões, se criou legislação para o estancar, através do Decreto nº 16731 (vd. artigo 107º) que decretou a nulidade de qualquer partilha de prédios com menos de um hectare ou que daí resultassem parcelas inferiores a meio hectare. Esta medida travou fortemente o fracionamento, embora não o impedisse na totalidade.
Se até 1930, em comparação com o último quartel do século XIX, numa parte considerável dos distritos a norte do Tejo mais que duplicou o número de prédios rústicos, a partir dessa década o ritmo estancou. Em 1960 verificou-se até um decréscimo de cerca de 2% em relação ao início do Estado Novo.
A partir dessa década registou-se um novo crescimento no fracionamento, mas mesmo assim suave, atingindo-se um máximo de 11,17 milhões de prédios em 1971. A partir da instauração da democracia, em 1974, o acréscimo foi ligeiro, da ordem dos 0,12% por ano até 2015, estando nessa data contabilizados cerca de 11,58 milhões de prédios rústicos.
Sendo assim, outros factores, e não (apenas) o minifúndio, terão determinado a perda de interesse económico da floresta nas pequenas parcelas e a eclosão de incêndios catastróficos. Uma explicação encontra-se por via sociológica. Durante o Estado Novo, com uma sociedade marcadamente rural, as vivências sociais permitiam um uso comum das propriedades florestais privadas. Ou seja, de modo informal mas cooperativo, os proprietários concediam livre acesso aos não-proprietários para estes, graciosamente, recolherem alguns produtos (e.g., lenha, caruma, matos, etc.), para uso doméstico e agropecuário, «recebendo» em troca uma gestão de combustíveis.
A presença de pessoas nas florestas constituía também uma vigilância quase contínua e dissuasora de comportamentos dolosos ou negligentes por parte de terceiros. Além disso, tendo presente que, durante o Estado Novo, a produção de resina constituía um importante suplemento económico dos pinhais, fica-se com uma ideia clara dos motivos muito prováveis para que, neste período, mesmo os minifúndios florestais fossem rentáveis e estivessem longe de constituir um factor de risco de incêndios. Na verdade, as condições sociais e de cooperação tradicional, que então se viviam nas zonas rurais portuguesas, parecem ter constituído um sistema benigno de interligação entre regime privado e comunal por via da cooperação entre agentes que visam a um equilíbrio sustentável.
Deixando de existir esse ténue equilíbrio, por força do êxodo rural e da perda económica dos pinhais, a gestão de combustíveis foi desaparecendo, redundando num aumento do risco de incêndio, desincentivador de investimentos e promotor de absentismo.
Na análise desta evolução não podem dissociar-se as reestruturações neste sector pela Administração Pública a partir dos anos 80, que contribuíram decisivamente para retrocessos na prevenção silvícola e na eficácia e eficiência do sistema de combate aos incêndios.
Nesse aspecto convém destacar o diagnóstico traçado em 2012 na Estratégia para a Gestão das Matas Nacionais, promovida por técnicos da própria Administração Pública onde se apontam os principais factores que contribuíram para a degradação da protecção das florestas e espaços florestais: a diminuição dos condicionamentos de acesso às matas nacionais e da fiscalização dos guardas florestais (a partir de 1974), a transferência do combate aos incêndios dos Serviços Florestais para as corporações de bombeiros voluntários (a partir de 1981), o encerramento das administrações florestais a nível regional (a partir de 1996), bem como, mais recentemente, o desligamento das tarefas de gestão do corpo de guardas e mestres florestais, e a transferência da competência de análise e decisão dos projectos florestais para o actual Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas (IFAP) e outros organismos sem vocação nem técnicos nas áreas silvícolas.
O esvaziamento dos Serviços Florestais (com distintas denominações), criados no início do século XX, intensificou-se desde a década de 1990, passando em poucos anos de cerca de quatro mil funcionários para menos de mil. Inclui-se neste lote o Corpo Nacional de Guardas Florestais – que tradicionalmente viviam no interior dos espaços florestais em cerca de mil casas de função –, cuja estrutura foi extinta em 2006, tendo sido integrados os trezentos elementos remanescentes nos Serviços de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da Guarda Nacional Republicana.
Estas alterações políticas resultaram, sem dúvida, num aumento do risco de incêndio e da susceptibilidade das florestas e dos espaços florestais em geral, mas também particularmente das matas nacionais e perímetros florestais (que integram os baldios), geridas pelos Serviços Florestais. Essa situação mostra-se evidente quando se comparam os registos da área ardida das florestas sujeitas a regime público até à década de 1970 e posteriores à década de 1980.
A situação apresenta contornos catastróficos nos últimos anos. Por exemplo, nos anos de 2016 e 2017 cerca de 20% da área sob gestão pública foi afectada por fogos, sendo que em 18 perímetros e matas nacionais se registaram destruições superiores a 70% das respectivas áreas, estando aqui incluído o secular Pinhal de Leiria.
Lamentavelmente, a destruição das florestas públicas desde 2001 (4,62% em média por ano) ultrapassa largamente os valores das propriedades das celuloses (2,33%) e mesmo da restante área privada (2,28%), que inclui o minifúndio.
Por todos estes motivos, a análise da perda de sustentabilidade da floresta portuguesa e os prejuízos recorrentes das externalidades negativas, encabeçadas pelos incêndios, não deve ser feita de forma simplista face à complexa teia de factores: a quebra dos vínculos sociais informais nos meios rurais, o abandono de actividades agroflorestais tradicionais, a emigração e êxodo rural, a perda da sustentabilidade da agricultura de minifúndio, etc.. Porém, quando se recomendaria que o Estado, perante estas variáveis, tivesse uma intervenção determinante para corrigir falhas de mercado, sucedeu o oposto: um desinvestimento no sector florestal. O único sector com orçamento reforçado foi o do combate aos incêndios.
As autoridades nacionais portuguesas somente a partir de meados da década passada começaram a contabilizar os custos directos e prejuízos resultantes dos incêndios, incluindo uma parte das externalidades, embora recorrendo a métodos muito simplistas, que requerem alguma reserva. Antes desse período, a Universidade Católica de Lovaina, no âmbito da Emergency Disasters Database, estimara que os prejuízos dos fogos de 2003, que destruíram cerca de 425 mil hectares, ascendiam aos 1,5 mil milhões de euros.
Nos trabalhos preparatórios realizados em 2006 para a Estratégia Nacional para as Florestas estimou-se que os incêndios representavam uma externalidade negativa de cerca de 380 milhões de euros por ano, reduzindo em 30% a riqueza anual produzida pelas florestas. E, de acordo com dados oficiais, os incêndios rurais entre 2000 e 2016 provocaram perdas da ordem dos 5.232 milhões de euros. No ano de 2017, o pior desde a existência de registos estatísticos, os prejuízos ter-se-ão aproximado dos mil milhões de euros.
Até recentemente estes aspectos eram ignorados pelas autoridades oficiais, e mesmo os custos de supressão – associados às infraestruturas e equipamentos, aluguer de aeronaves e pagamentos aos bombeiros – eram vistos como investimento, e um Governo considerava ser-lhe favorável politicamente conceder acréscimos sucessivos à componente de combate.
Contudo, a realidade demonstra, infelizmente, que os gastos públicos na vigilância e supressão dos incêndios florestais têm estabilizado em torno dos 100 milhões de euros por ano, mas sem quaisquer efeitos positivos. Os prejuízos dos incêndios mostram variações aleatórias sem relação com os gastos em combate. Esse cenário demonstra que, na verdade, os gastos na prevenção e em equipamentos e meios humanos para controlar os incêndios (supressão) não têm um efeito determinante na área ardida e, portanto, nos prejuízos, evidenciando-se que o actual modelo de gestão se mostra insustentável.
A solução para este grave problema económico, social e ambiental, que já se mostra tragicamente crónico, terá de passar, na minha opinião, pela assumpção da defesa da floresta como um bem público (no conceito das ciências económicas), implementando, a partir daí, uma reforma administrativa intersectorial já defendida por diversos especialistas.
No entanto, considero que, ao contrário daquilo que têm sido os recentes sinais de política económica para este sector, o Estado deveria deixar de desempenhar apenas um papel de mero coordenador, regulador e redistribuidor de recursos financeiros; antes sim deveria passar a exercer uma função interventora de gestão directa dos espaços florestais, incluindo obviamente, até para dar exemplos de boas práticas, as florestas de regime público.
Isto não significa a privatização das florestas, antes sim assumir-se que o Estado é indubitavelmente a única entidade com capacidade de intervenção global para implementar, gerir e executar um modelo centralizador para a gestão dos espaços florestais. Note-se que existe uma distinção entre floresta – bens privados – e os espaços florestais – conjunto de parcelas que fornecem externalidades positivas, como ar limpo, paisagem e outros benefícios para a sociedade, e por isso são bens públicos, na visão económica do termo –, e daí necessitam de abordagens distintas.
Distinguir estes dois bens que, na verdade, coexistem – e, por vezes, se confundem por «comungarem» do mesmo espaço físico – serve sobretudo para colocar, de um lado, um bem sobretudo privado (floresta) que, por razões complexas, tem vindo a criar externalidades negativas (incêndios); e, do outro lado, um bem público (espaços florestais) que criam benefícios para a sociedade.
Ora, actualmente, porque estes benefícios não são convenientemente remunerados (ou compensados) acabam por ser «lesivos» para todos. Com efeito, o conjunto de proprietários que produz esse benefício para a sociedade nada recebe, e, em alguns casos, até tem de suportar mais encargos para proteger bens alheios.
Face ao carácter de minifúndio das propriedades, a ausência de uma compensação aos proprietários florestais por essa externalidade positiva para a sociedade contribui para o agravamento da sustentabilidade económica dessas parcelas e induz a um maior absentismo. Ou seja, a existência de uma externalidade positiva (porque um serviço ambiental não é pago pela sociedade) pode estar na origem de uma externalidade negativa (os incêndios). E havendo incêndios, não apenas ocorrem danos económicos e sociais directos como se perdem os benefícios fornecidos pelos espaços florestais. Daí a necessidade de intervenção directa do Estado, bem diferente daquela que até agora tem sido, para equilibrar aquilo que se chama uma “falha de mercado”.
Justifique-se, com um simples mas elucidativo exemplo, as razões para se defender uma intervenção directa do Estado, e não apenas reguladora e distribuidora de fundos. Quando, como actualmente sucede, o Governo determina administrativamente (e sem critério técnico, por vezes) que sejam os proprietários das florestas a proceder e a assumir os custos da desmatação e desarborização em redor de habitações (das quais, por vezes, nem são os proprietários), não está a seguir princípios de eficácia, de eficiência e de equidade.
Por um lado, porque essa obrigação quase nunca é eficaz nem eficiente, uma vez que não se baseia em estratégias de prevenção nem em estudos que definam adequadamente faixas de gestão de combustíveis, nem existe a garantia, face ao absentismo de muitos proprietários, de que essas operações sejam executadas. Por outro lado, obrigando apenas certos proprietários a assumir esse ónus, o Estado beneficia free-riders, i.e., os proprietários das habitações em redor (muitas das quais autorizadas após a existência da floresta) e os vizinhos florestais isentos dessas operações.
E mesmo que este controlo de vegetação fosse eficaz para eliminar a externalidade negativa (incêndios), manter-se-ia a iniquidade, porquanto o proprietário responsável pela operação de limpeza não fora compensado por esse serviço – i.e., a criação de uma externalidade positiva – com a agravante de ainda ter uma perda de rendimento potencial por redução de biomassa florestal.
Não se está a advogar um Estado a gerir as florestas privadas, mas sim a exercer a gestão dos espaços florestais, podendo eventualmente «entrar» em áreas privadas, como já sucede em outros casos, através de servidões administrativas, de modo a corrigir externalidades, sempre também com uma visão nas funções de redistribuição e mesmo de estabilização.
Assim, de uma forma muito sucinta, por via de um reforço da Administração Pública do sector florestal, proporia a criação de um denominado Sistema de Gestão de Espaços Florestais (SIGEF) numa instituição estatal autónoma que deveria agregar equipas de técnicos, vigilantes e sapadores florestais, com a missão de executar no terreno as operações necessárias de gestão de combustíveis (biomassa), de vigilância e controlo de acessos, e ainda supressão de incêndios. Por outro lado, no âmbito deste modelo, deveria ser criado um mecanismo de compensação económica ou fiscal, através de um sistema de perequação, para benefício dos proprietários dos terrenos florestais onde se fizessem intervenções de controlo de vegetação.
No sentido de o Estado financiar este sistema como uma provisão de um bem público – e sem necessidade de contabilizar os rendimentos de um previsível aumento das receitas dos impostos (IRC e IRS) associados à melhoria da produtividade das actividades silvícolas por eliminação das externalidades – poder-se-ia apostar em três fluxos financeiros: separando-o do mastodóntico Fundo Ambiental, um reforço no Fundo Florestal Permanente (cujas receitas, para além do actual adicional ao ISP, poderiam ser provenientes de um «imposto» específico similar a aplicar aos produtos de origem silvícola, sendo assim uma forma de internalização pela sociedade das externalidades positivas concedidas pelos espaços florestais); um adicional ao Imposto Municipal sobre Imóveis rústicos (aplicando uma taxa regressiva por prédio rústico em função da área, também como incentivo ao emparcelamento e/ou como penalidade à manutenção de áreas improdutivas); e uma denominada Taxa de Protecção de Espaços Florestais (sob a forma de taxa fixa por prédio urbano e veículo).
Um sistema deste género implicaria elevados investimentos, mas esse montante será incomensuravelmente menor do que as externalidades negativas existentes.
A versão original, sem a actualização agora realizada, foi publicada na revista PONTO – revista do mediotejo.net, em 2021, acessível aqui. O PÁGINA UM apresenta os agradecimentos à directora do Médio Tejo, Patrícia Fonseca, e ao fotógrafo Paulo Jorge de Sousa.
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