— Tu é que escolheste o restaurante.
— Eu sei disso, pá. Ou achas que estou senil? Mas isto hoje está horrível. Que queres que te faça? É irritante atirares-me isso à cara. Isto era o meu cantinho favorito. Hoje, é o pior restaurante em que já estive. Além disso, está aqui um cheiro…
Puxei os meus ombros para a frente, aproximei a minha cara da cara do meu amigo, fixei um olhar trespassante nos seus olhos e disse-lhe:
— Meu, tu hoje dizes mal de tudo. Do cheiro a cão no teu elevador, dos fones que compraste, do Trump, do Biden, do riso da Kamala, do Maduro, do Irão, do Netanyahu, do Hamas, dos senhorios, dos inquilinos, do SNS, da medicina privada, das obras dos teus vizinhos que não te deixam dormir… Até com o empregado já implicaste.
— Mas discordas do que disse? Explica-me lá em que é que estou errado, então. E demonstra-me porque é que estou errado. Diz lá. Quanto ao Mário que trabalha aqui, não sei o que lhe deu hoje. O gajo é que está nitidamente a querer implicar.
— Não é isso. É que só puxas assuntos para dizer mal. E falas com tanta, tanta ira. Repara só nisto: conseguiste criticar tanto quem fala das alterações climáticas como conseguiste criticar tanto não se fazer nada contra as alterações climáticas. Não sei como queres combater algo que dizes não existir. É, no mínimo, muito confuso.
— Eu tinha-te como um gajo informado. Se achas que o mundo está bem, vou ter de reconsiderar a tua inteligência.
Fechou os olhos, levou a mão direita à testa e disse:
— Este cheiro dá cabo de mim.
— Não queres ir para a esplanada?
— Já te disse que não.
— Então, não sei.
— Que cheiro tão intenso. Que agonia, pá. Não te cheira a nada?
— Não.
— Só podes estar com problemas de olfacto. Tens de ir ao médico. Estou a falar a sério.
Em dado momento, o meu amigo teve um clarão:
— Isto é naftalina!
Levantou-se e deu uns passos para inspeccionar o restaurante com o nariz, executando inspirações muito rápidas e audíveis. Por instantes, o movimento frenético do seu nariz fez-me representar mentalmente um cão com um metro e setenta e oito centímetros. Algumas cabeças de outras mesas moviam-se para o fitar, e um vetusto senhor interrompeu a sopa e mexeu involuntariamente os lábios perplexos, numa manifestação bucal de quem fita um indivíduo a falar sozinho na rua, proclamando ser Jesus Cristo.
Quando regressou à nossa mesa, decretou com uma expressão facial de detective:
— Isto é naftalina misturada com outra coisa.
Como não comentei, por não sentir nenhum odor estranho, acrescentou:
— Que esterco, pá. Que nojo, pá. Não bastava já o estado da comida.
— Meu, estás com a telha hoje. Falas de tudo com uma fúria. Olha, esta massa está muito boa.
— Eles estragam isto tudo com os molhos, designadamente a massa. A gastronomia nunca foi a tua especialidade.
— Pois não.
— Este cheiro é uma coisa…
— Ó meu, aquele senhor de bigode branco já olhou para ti como se fosses um maluquinho quando te puseste a farejar.
— Eu quero lá saber. Dás muita importância ao que os outros pensam. Não é admissível comer com este cheiro.
— Ainda bem que sou desprovido de olfacto, apesar de sentir o cheiro da comida.
— É porque a comida estragada tem um cheiro mais forte.
O meu amigo pegava nervosamente no telemóvel a todo o instante, suspirando e bufando. Olhei para o seu relógio de pulso e comecei a ver o movimento dos segundos. Prometi a mim mesmo fazer contas.
— Não paras de mexer no telemóvel e de olhar para todos os lados depois. Já contei: em média, de sete em sete segundos, consultas o telemóvel. A seguir, olhas para a frente, para a esquerda e para a direita, para trás. Estás neste ritual desde que chegámos.
— É para me abstrair desta comida putrefacta. Tenho a certeza de que vou ficar doente.
— Então, não comas mais.
— Tanto faz. Se for para ficar doente, já comi o suficiente. Só esta pestilência dá cabo da saúde de qualquer um.
Em dada altura, o meu amigo gritou:
— Porra, olha para esta merda! Vou chamar o empregado.
— Deixa ver.
— É um cabelo. Foda-se, só faltava cabelo no meio desta carne podre. Que bosta, pá! Foda-se.
Analisei o putativo cabelo, enquanto o meu amigo consultava o telemóvel e praguejava.
— Meu, isto é um fiozinho de roupa. Acho que é da tua camisa.
— É um cabelo.
— É esverdeado.
— Há quem tenha o cabelo verde.
— Isto não é um cabelo em parte nenhuma do mundo.
— É. E não é verde. Além do olfacto, tens de ver também esse problema de daltonismo. Tu não estás bem. É o olfacto, é a visão. Olha que isso pode ser neurológico.
— Meu Deus, dai-me paciência para o aturar.
— E a mim dá-me o triplo da paciência.
— Está tudo mal, menos tu. Ao menos, coopera com quem te ajuda.
— Vou mas é pedir ao empregado que me troque o prato. Vou pedir outra coisa, que isto está uma bela merda. E agora até cabelos tem. Estou com a nítida sensação de comida estragada na boca. E este cheiro não sai… Aposto que vou passar mal a noite. É hoje que peço o livro de reclamações. A ASAE tem de vir cá. Por muito menos, já fecharam outros estabelecimentos. Isto hoje é de mais, caralho.
O telemóvel do meu amigo sussurrou um chilreio por um instante.
Agitou-se na mesa e, ao agarrar no telemóvel, deixou cair o garfo. No meio da dança de braços e objectos, ficou com bastante molho a destoar no verde da camisa e no dedo mindinho da mão esquerda, que pingava. Submerso no telemóvel, não deu conta da subtracção de um objecto da mesa nem do molho. Decidi levantar-me, peguei no garfo e passei o guardanapo pelo talher muitas vezes, até o repor na mesa. O meu amigo não deu conta de nada, e eu ouvia-o murmurar uns sons imperceptíveis.
— Estás a gemer?
Ele continuava com os olhos presos ao telemóvel.
Esperei largos momentos, enquanto observava uma metamorfose facial.
— Até os teus dedos dos pés e os botões da tua camisa sorriem.
Ele nada disse, e eu olhei para o círculo de molho na camisa, mas decidi calar-me. Um sorriso ocupava-lhe toda a largura da cara.
Quando voltou a si, o meu amigo pediu-me desculpa pela demora.
— Não ias pedir outro prato?
— Ah. Não. Isto come-se. Vou pedir uma sobremesa.
Acabou de comer a carne num ápice, chamou o empregado e pediu «o de sempre».
— Estas farófias são óptimas. Acho que vou pedir outras. Não queres provar?
— Não gosto muito de farófias.
— É porque não provaste estas.
Os suspiros davam agora lugar a murmúrios de prazer quase sexual.
— Que coisa tão boa.
Peguei numa colher e saboreei umas farófias medianas.
— Também tens uma baba-de-camelo que é uma maravilha. Posso dividir contigo.
O meu amigo pediu baba-de-camelo ao empregado com quem discutira.
— Ó Mário…
Repetiu o nome com suavidade e doçura:
— Ó Mário… somos amigos desde que havia dinossauros. Há bocado, fui parvo contigo. Não faças caso.
O empregado deu-lhe uma palmada amiga no cocuruto e perguntou-lhe se ele queria um tira-nódoas, mas o meu amigo disse que não. Pareceu-me não ter percebido que tinha uma grande mancha na camisa.
— Já não te cheira a naftalina?
A sua cabeça absorta inclinava-se de novo sobre o telemóvel, como se o destino pendesse do que ali morava. Era a fácies de quem examinava e reexaminava até ter a certeza de que a sentença de morte fora, afinal, uma troca de nomes.
Esperei uns momentos e repeti a pergunta num tom alto e grosso:
— Ouve lá: já não te cheira a naftalina?
— Já passou.
Os seus olhos moviam-se da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, como se desenhassem linhas.
Quando veio a conta, decidiu que me pagava o almoço. Sendo a forretice, de longe, o seu pior defeito, disse-lhe que não, imaginando o que lhe doeria.
— Quem convida é quem paga.
— Isso nunca foi regra entre nós.
Agarrou na conta, puxou de um cartão e acenou ao empregado.
— Se quiseres, dá-lhe uma gorjeta.
Pus todas as moedas de todas as cores que tinha em cima da mesa.
— Fazes bem. O Mário é muito porreiro.
— Tu é que estavas danado com ele.
— O gajo é seis estrelas. Este restaurante só tem empregados muito bacanos. E come-se maravilhosamente aqui. Não achas?
— O meu prato estava muito bom.
— Esta vista é uma coisa incrível. Olha lá…
Aquiesci.
— Por este preço, comer assim, ser tão bem atendido e ainda ver este rio ao fundo… Não conheço restaurante melhor. E tem as melhores farófias e a melhor baba-de-camelo do mundo.
— Gostaste, então?
— Já comi melhor aqui, mas gosto sempre.
— Voltarei de bom grado. Ouve lá: ainda achas que há oitenta por cento de probabilidades de haver uma III Guerra Mundial nos próximos cinco anos?
— Como assim?
— Estou a citar ipsis verbis o que disseste no início do almoço. Disseste que íamos os dois respirar poeira atómica brevemente.
— Oh… isso foi metafórico.
— Metafórico?
— Não vai haver guerra nenhuma. Vamos dar um passeio pelo rio e fazer a digestão?
Levantámo-nos e caminhámos pelo rio.
— Já viste o luxo que é andarmos aqui a ver este azul com este sol depois de uma refeição destas?
— O poder que elas têm sobre ti é tremendo, não é?
O meu amigo passou o braço por trás do meu pescoço e pousou a mão no meu ombro direito.
— A vida é bela, amigo. Somos todos perecíveis, o importante é encher a vida de coisas belas e com significado. Nós é que complicamos, porque contabilizamos sempre o que nos falta e não o que temos. Celebremos a nossa amizade, mas é. Tinha saudades de estar contigo, pá.
Manuel Matos Monteiro é escritor e director da Escola da Língua
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