Pindorama

Portugal e o escrivão Isaias Caminha

Christ Redeemer statue, Brazil

por Lourenço Cazarré // Setembro 19, 2024


Categoria: Cultura

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Um dos maiores escritores brasileiros, Afonso Henriques de Lima Barreto precisou recorrer a Portugal, em 1909, para dar início a sua vida literária porque não encontrou no Brasil quem quisesse publicar o seu primeiro, cáustico e corrosivo, romance: Recordações do escrivão Isaias Caminha.

Editada, a brochura de pouco mais de 300 páginas, de capa cor de vinho, atravessou o Atlântico e foi recebida em Pindorama pelo mais estrondoso silêncio. A recepção que teve dos jornais e críticos brasileiros – que viviam a exaltar toda e qualquer bobagem impressa, mas com forte preferência pelas rimadas – foi quase nenhuma.

Por que era maldito o tal livro? Porque, na verdade, era uma devastadora crítica à imprensa brasileira (carioca) daquele tempo. Era uma obra em que pessoas e eventos reais apareciam com nomes fictícios. Aliás, há uma expressão francesa para esse tipo de publicação, mas deixamos de reproduzi-la aqui porque soa mal em português.

LIma Barreto (1881-1922)

O livro conta a história de um jovem pobre, mestiço, interiorano, estudioso e inteligente, que acaba por ir trabalhar no principal jornal do País na época, O Globo. Nada a ver com a publicação que hoje tem este nome. O objetivo a ser torpedeado era, de fato, o Correio da Manhã, um dos principais veículos daquele tempo.

Todos os podres dos repórteres e redatores – suas trampolinagens, safadezas, espertezas, vigarices e patifarias – vêm à tona. Ficamos sabendo como uns e outros ganhavam um dinheirinho extra escrevendo – ou silenciando – sobre os ricos e poderosos. A mais rentável dessas falcatruas era a obtenção de cargos públicos bem-remunerados.

Muitos escritores reconhecidos aparecem com nomes alterados no relato do escrivão Caminha brasileiro. Os dois mais notórios deles são Coelho Neto, maior best-seller da época, que surge como Veiga Filho, e o cronista João do Rio, que aparece na pele de Raul Gusmão.

Há uma curiosa referência a Portugal no livro. Os maiores anunciantes nos jornais da Cidade Maravilhosa, naquela época, eram os lusitanos, que dominavam o comércio local. De repente, alguém, antecipando o inferno da cobrança politicamente correta, lembra que o Correio da Manhã não conta com um luso na sua redação.

O dono do jornal trata então de buscar na Terrinha um plumitivo que preencha a cota destinada a nascidos na península ibérica.

Seguem aqui uns recortes, editados por mim, do trecho em que se trata da importação desse panfletário alfacinha:

– Como poderíamos arranjar um português para redator, dize lá?

– Encomenda-se a Portugal.

Capa da edição original, publicada em Portugal em 1909. No Brasil foi publicada apenas em 1917, numa edição revista e aumentada.

E fui eu encarregado de levar o telegrama ao submarino. Não se tratava já de um redator; pedia-se a uma livraria de Lisboa um redator e dois correspondentes literários.

Os correspondentes já estavam arranjados, mas não havia quem quisesse vir.

– Cá está ele… Está arranjado.

Embarcaria no primeiro paquete. Era espirituoso, entendido em coisas portuguesas e queria setecentos mil réis fracos.

– Sabes, Pranzini, temos um homem… De Lisboa chegou-nos a resposta.

– É bom… Vocês sabem, sem português, nada aqui vai adiante. Os patrícios exigem, é justo; eles são talvez trezentos mil, pagam rios de dinheiro em anúncios – é justo.

Vale transcrever aqui outro texto divertido, que é o da conversa entre o dono do jornal e o Lobo, gramático encarregar de zelar pelo idioma camoniano.

– Ora, Lobo. Já vem você!

– Mas, doutor, a língua é uma coisa sagrada. O culto da língua é um pouco o culto da pátria. Então o senhor quer que seu jornal contribua para a corrupção desse idioma de Barros e Vieira…

– Qual Barros, qual Vieira! Isso é brasileiro – coisa muito diversa!

– Brasileiro, doutor – falou mansamente o gramático. – Isso que se fala aqui não é língua, não é nada; é um vazadouro de imundícies. Se frei Luís de Sousa ressuscitasse, não reconheceria a sua bela língua nessa amálgama, nessa mistura diabólica de galicismos, africanismos, indianismos, anglicismos, cacofonias, cacotenias, hiatos, colisões… Um inferno! Ah, doutor! Não se esqueça disso: os romanos desapareceram, mas a sua língua ainda é estudada.

brown canyon during golden hour

Fechemos com um pouco da vida de Lima Barreto, autor ainda de outros dois belos romances: Triste Fim de Policarpo Quaresma (para muitos sua maior obra) e Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.

Nascido no Rio de Janeiro, em 1881, morreu naquela mesma cidade em 1922. Embora de família pobre, teve educação esmerada. Ingressou na Escola Politécnica, mas jamais conclui o curso de engenharia. Tornou-se funcionário público por concurso. Órfão de mãe desde a infância, cuidou de seus irmãos e de seu pai, que padecia de doença mental. É autor de centenas de contos e crônicas nos quais – usando tanto de melancolia quanto de ironia – deixa claro o imenso amor que tinha por sua cidade natal, em especial por seus subúrbios, e pelos seus mais humildes habitantes.

Lourenço Cazarré é escritor


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