Estátua da Liberdade

Protestantismo: a desgraça que (ainda hoje) se abate sobre nós

Statue of Liberty in New York City under blue and white skies

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Uma das maiores quimeras com as quais a Humanidade vive há séculos é a noção de que o Estado moderno foi erigido sobre os alicerces do famigerado Contrato Social. Os autores desta ideia totalmente disparatada, encontraram voz nos escritos de John Locke – iniciador do liberalismo clássico – e de Thomas Hobbes.

O primeiro, um paladino do Parlamento, defendia uma monarquia limitada pelo sagrado consentimento dos governados, enquanto o segundo, Thomas Hobbes, fervoroso adepto de Carlos II e apologista da monarquia absolutista, pregava que o poder deveria repousar, inabalável, nas mãos de um soberano vigoroso, sob a justificação nobre de evitar a anarquia!

Ambos partiram da premissa, cuja validade é, no mínimo, questionável, de que os homens existiram, outrora, num estado primitivo e solitário, anterior ao advento do convívio social. John Locke, com uma veia poética e romântica, própria dos sonhadores, pintava esse “estado de natureza” como uma utopia de liberdade absoluta e igualdade inata, onde cada indivíduo desfrutava do direito inalienável de usar a sua razão – supostamente infalível – para governar a sua vida segundo os seus mais íntimos desejos, sem se curvar ao arbítrio de outrem. Resta apenas o enigma sobre as razões da humanidade abandonar esse paraíso terreno!

Thomas Hobbes (1588-1679). D.R. ©National Trust Images

Por sua vez, Thomas Hobbes, com uma visão algo mais sombria, retratava o estado de natureza como um cenário de “guerra de todos contra todos”. Nessa condição, não havia qualquer autoridade comum ou leis para domesticar os ímpetos dos indivíduos, que agiam movidos pelos seus interesses e instintos mais primários. O resultado? Um espectáculo de carnificina incessante pela sobrevivência, onde os seres humanos se engalfinhavam por recursos escassos, conduzidos por uma lógica de violência, desconfiança mútua, egoísmo e agressão constante – quadro que nos leva a questionar como a humanidade sobreviveu a tal inferno!

E qual seria, então, a panaceia apontada por ambos para curar os males da condição humana? O tão celebrado contrato social. Para Locke, os cidadãos deveriam consentir em delegar a sua soberania a um governo que se legitimaria pelo consentimento dos governados – a democracia! No entanto, manteriam o inalienável direito de resistir a essa autoridade e substituí-la caso se tornasse tirânica ou ousasse violar os seus direitos naturais – como a vida, a liberdade e a propriedade. Parece que, ainda que decidissem abandonar o paraíso da liberdade absoluta, poderiam, em última instância, sempre voltar!

Já Hobbes, com o seu pessimismo característico, argumentava que os seres humanos, tomados pelo pavor de uma morte violenta e movidos pelo desejo de uma existência mais segura e ordenada – afinal, a sua descrição do inferno não era propriamente atraente –, concordaram em assinar um contrato social! Este contrato, naturalmente, implicaria a criação de um governo ou soberano com autoridade absoluta, um “Leviatã”, capaz de impor a paz e a segurança, regulando o comportamento dos indivíduos e protegendo-os da sua própria natureza violenta e competitiva – eis a justificação do Estado moderno, aquele ente magnânimo que nos protege de nós mesmos e de todos os nossos demónios internos!

Ambos, é claro, esqueceram-se de observar a realidade que os circundava – como bons protestantes, acreditavam que a razão que brotava das suas cabeças era ilimitada, dotada de uma infalibilidade divina. Ignoraram que as relações humanas, na sua essência, são voluntárias e mutuamente benéficas.

O surgimento da família, por exemplo, não passou de um acto de amor entre um homem e uma mulher, sendo o primeiro, por um capricho da natureza, fisicamente mais forte. Em vez de a mulher dedicar-se exclusivamente ao cuidado dos filhos do macho alfa, o homem, num gesto de altruísmo, passou a assumir as despesas do lar e a proteger tanto a esposa quanto as crianças – uma relação de benefício mútuo.

Em todas as relações humanas, há senhores e servos, independentes e dependentes. O trabalhador deseja associar-se a um empresário de sucesso para conseguir salários melhores; o paciente quer ser atendido por um médico competente; o aluno, por sua vez, aspira a ser ensinado por um bom professor; o soldado quer lutar ao lado de um grande general.

Os fracos sempre procuram beneficiar-se de uma aliança com os mais fortes. Após a queda do Império Romano, por exemplo, qual o camponês no seu perfeito juízo preferiria aliar-se a um líder militar fraco? Naturalmente, a resposta é óbvia: ao mais forte! As relações humanas, afinal, existem para o benefício mútuo das partes envolvidas.

Deus agraciou-nos com uma natureza e meios diversos: uns altos, outros fortes; uns brilhantes e sagazes, outros apenas atléticos. A ideia de que somos todos iguais é uma fantasia pueril, uma quimera digna de contos de fadas. A realidade é mais crua: quanto maior o número de dependentes, maior o sucesso de um indivíduo. Se um senhor feudal, por exemplo, consegue criar condições para que muitos se agreguem, é evidente que conquistou o direito de administrar a justiça nos seus domínios (lei privada). Afinal, o poder emana da propriedade privada. Se esta for mal gerida, se a justiça for negligenciada, se a segurança for um luxo inacessível, nada mais natural do que os dependentes do senhor feudal baterem em retirada.

O aumento da propriedade privada, portanto, é o indiscutível selo de qualidade das virtudes de um indivíduo. Príncipes, senhores feudais, ou mesmo Repúblicas, como Veneza ou Florença – associações de homens responsáveis por governar – nada mais eram do que formações naturais nas quais os fracos se agrupavam aos fortes na procura de benefícios mútuos. Em suma, o poder reside na habilidade de atrair e reter seguidores, onde a autoridade emerge como um direito nato, e não como um privilégio fabricado; algo tão natural quanto a gravidade, e não uma invenção artificial dos homens.

grayscale photo of boats near dock

Do mesmo modo, a Igreja Católica tinha e tem a autoridade inquestionável de interpretar as escrituras. Afinal, foi Cristo, com o auxílio dos seus discípulos, quem a fundou, estabelecendo igrejas e reunindo os fiéis; a sua autoridade é, portanto, auto-evidente e irrevogável. Não foram os fiéis que, num lampejo democrático, decidiram delegar aos seus representantes o poder de eleger bispos e Papas.

No entanto, como em todas as relações humanas, há sempre o risco de abuso por parte do mais forte, que, assim, deverá estar submetido à lei natural: não pode agredir, não pode coagir, não pode assassinar, não pode invadir a privacidade do outro, não pode impedir a liberdade de movimentação e não pode roubar. Durante a Idade Média, esse poder espiritual e de controlo de abusos foi desempenhado pela Igreja Católica, que, entre outras coisas, tinha a prerrogativa de depor tiranos. Por outro lado, existia e existe o direito à resistência, em que alguém insatisfeito pode procurar outra pessoa para obter, por exemplo, segurança.

Mas eis que essa ordem natural, em que apenas a lei privada e a lei natural coexistiam harmoniosamente, foi subitamente desafiada pelo famigerado contrato social e a lei pública, o que me leva a levantar uma série de perguntas. Primeiro, até hoje ninguém parece ter visto qualquer evidência de que tal contrato tenha sido, de facto, assinado. Quem seriam as partes contratantes? No mítico estado de natureza de Hobbes e Locke, onde todos eram, supostamente, soberanos e livres, estavam incluídas as mulheres e as crianças? Teriam também rubricado o acordo?

Nesse estado de natureza, cada homem tinha duas opções: continuar a defender-se sozinho ou associar-se ao mais forte; poderia, mais tarde, abandonar essa relação e procurar um novo aliado ou até mesmo retornar à sua auto-suficiência, à sua soberania. Este homem podia escolher, era verdadeiramente livre. Pois bem, nada disso acontece sob o tal contrato social, onde a protecção deste homem é decidida por outros, pelo tal “povo”. A bem da verdade, trata-se de uma tirania disfarçada, que em nada se assemelha a liberdade!

Se esse protector é escolhido pelo “povo”, pergunto: quem é exactamente esse “povo”? Todos os que comem e respiram, a população mundial? Ou vamos supor que existem diferentes povos, como traçamos as fronteiras? Por etnia, por cultura, por altura, por sexo? E, dado que cada dia pessoas morrem e outras nascem, não deveria o contrato ser renovado constantemente?

3 men playing golf on green grass field during daytime

Por fim, um mero locatário ou empresário deve submeter-me às vontades dos seus inquilinos ou empregados? Ou, colocando de outra forma, com que direito o “povo” ou os seus representantes decidem a parcela dos seus rendimentos a ser extorquida? Onde está a autoridade para tal? Pelo menos, nunca assinou qualquer contrato a dar essa prerrogativa ao “povo”.

A “Revolução Protestante” foi a precursora da implementação desta ficção chamada contrato social, ao ter promovido a subversão social e a desordem espiritual. A leitura privada das Escrituras fomentou a noção de igualdade entre os fiéis para todas as relações sociais. Esse fermento corrosivo deu à luz o liberalismo e, mais tarde, o marxismo, ambas as doutrinas centradas na premissa fatal de que as hierarquias naturais deveriam ser extintas em nome de uma ilusória igualdade.

Ao rejeitar a autoridade central da Igreja Católica e do Papa, o protestantismo lançou o mundo numa crise de autoridade que se estendeu para além da esfera religiosa. Primeiro, foi o senhor feudal, depois o monarca absoluto. A soberania individual pregada nas questões de fé evoluiu para a soberania popular nas questões de Estado, lançando as bases do temido contrato social — uma quimera em que a autoridade legítima emana não de Deus, mas do volúvel e caprichoso consenso popular.

Eis, então, que o protestantismo, na sua cruzada contra a hierarquia natural, promoveu uma sociedade onde todos são considerados iguais diante de Deus, esquecendo convenientemente que o próprio Criador nos fez diferentes, cada qual com os seus dons e propósitos. Esse veneno igualitário corroeu as bases das hierarquias sociais e políticas, pavimentando o caminho para o nascimento de um Estado moderno e secular, esse monstro centralizador que agora se arroga o direito de legislar sobre todas as esferas da vida, públicas e privadas, à custa de qualquer vestígio de autoridade tradicional e natural.

Para completar o golpe de mestre, o protestantismo foi prontamente instrumentalizado pelos príncipes e líderes seculares que, vendo uma oportunidade dourada de se livrarem das “opressivas” restrições da Igreja Católica, apressaram-se a usurpar terras, bens e poderes eclesiásticos. Estava, assim, aberto o caminho para o despotismo que hoje nos sufoca — um Estado tirânico e absoluto, moldado pela ficção de um governo baseado no consentimento dos governados, mas fundado, na verdade, na transferência descarada de poder para as mãos seculares ávidas de controlo.

a priest standing at a podium in front of a brick wall

O glorioso advento do protestantismo, a subverter a ordem divina para instaurar o secularismo triunfante, na sua cruzada para separar a fé e o poder, o protestantismo fez nada menos que acelerar a ascensão de um Estado secular, onde o divino e o sagrado foram jogados às malvas, substituídos por ideais igualitários e racionalistas.

O Estado moderno tem hoje poderes para confiscar os bens dos seus governados e imiscuir-se em todas as questões de justiça, até mesmo naquelas que dizem respeito aos mais íntimos segredos da vida privada.

Este Leviatã moderno, vestido com a capa da “soberania popular,” nada mais é do que uma astuta tirania que, sob o pretexto de corrigir todas as injustiças sociais, encontra sempre novos hospedeiros para parasitar — ora através da guerra, ora pela revolução. Que o digam os milhões de almas que pereceram sob as gloriosas bandeiras do Império Britânico ou da Revolução Francesa, todas em nome da igualdade!

Até a ciência económica não escapou a ser contaminada pelas ideias protestantes. Veja-se o caso de Adam Smith (o verdadeiro pioneiro foi Richard Cantillon), que distinguia entre bens produtivos e luxuosos, como se o moralismo devesse ditar o preço dos prazeres da vida. Ou a teoria do valor baseado no trabalho, essa perniciosa trilha que pavimentou o caminho para as falácias de Karl Marx.

Hoje, vemos a ciência económica reduzida a agregados, que podem ser manipulados como se fossem guiados pela física, onde o Estado pretende tudo corrigir através do planeamento central, sejam “desequilíbrios macroeconómicos” ou falhas de mercado, ignorando que todas as trocas são voluntárias, enquanto os sábios reguladores e burocratas ainda não conseguiram encontrar o Santo Graal da concorrência perfeita!

A ladainha continua: o Estado deve regular os salários para corrigir a “injustiça” contra as mulheres e minorias, como se a burocracia pudesse alterar a natureza humana. O Estado deve impor licenças para evitar a entrada dos “maus agentes” no mercado; deve fixar um salário mínimo para proteger os “explorados”; deve imprimir moeda para “estimular a economia,” mesmo enquanto encarceram os falsificadores de moeda por contrafacção, não reconhecendo que o seu Banco Central é o maior manipulador da moeda!

a statue of a man standing in front of a building

O Estado moderno até ousa confiscar a riqueza dos cidadãos em nome da redistribuição, impedindo que cada um desfrute do fruto de seu próprio trabalho; impede uma escolha livre, como contratar a reforma ou protecção. E, como corolário, o Estado arroga-se o direito de trancar-nos em casa em nome do “bem comum.”

A verdade é que, não fosse o conforto material proporcionado pela energia barata — aquela mesma energia que os políticos de hoje diligentemente se encarregam de destruir —, já teríamos percebido que este Estado nascido do protestantismo e do contrato social não é senão uma tirania sem paralelo na história da humanidade. Uma tirania disfarçada de razão, enquanto, na realidade, opera como um intrincado aparato de controlo, coerção e subjugação, de proporções nunca vista.

Luís Gomes é gestor (Faculdade de Economia de Coimbra) e empresário


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