Não sei se cometo algum crime de violação de segredo de justiça, mas, se assim for, que estas palavras sejam enquadradas no artigo 32º do Código Penal, que estatui que “constitui legítima defesa o facto praticado como meio necessário para repelir a agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro”.
Esta quinta-feira, dia 26 de Setembro, vou mais uma vez prestar depoimento (ou manter-me em silêncio nesta fase) por uma queixa judicial. Se a memória não me falha, esta será a sexta vez em menos de três anos. Em dois dos processos, houve desistência, três vão avançar para julgamento até porque eu não quis abertura de instrução, que poderia levar ao arquivamento. Estou tão convicto do rigor e justeza do meu trabalho que quero provar esse rigor num tribunal através de uma absolvição.
Mas há limites para a paciência – e para dar a face. O processo agora em causa resulta, pelo que apurei, de uma queixa da Apifarma (Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica), da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Farmacêuticos, e deverá estar relacionada com artigos que fui escrevendo desde Dezembro de 2022 sobre uma famigerada campanha de solidariedade denominada ‘Todos por quem cuida’.
A dita campanha teve como principais mentores três pessoas em concreto: Ana Paula Martins – então bastonária da Ordem dos Farmacêuticos e actual ministra da Saúde –, Miguel Guimarães – então bastonário da Ordem dos Médicos e actual deputado e vice-presidente da bancada parlamentar do PSD – e ainda Eurico Castro Alves – actual presidente da secção do Norte da Ordem dos Médicos e, entre outras funções, ‘anfitrião’ nas recentes férias brasileiras do primeiro-ministro Luís Montenegro.
As notícias originaram-se de uma investigação jornalística do PÁGINA UM que inclui a necessidade de uma intimação no Tribunal Administrativo de Lisboa, uma vez que as entidades envolvidas quiseram esconder os documentos operacionais e contabilísticos. Na análise dessa documentação, acedida por ordem de um tribunal, foi possível apurar que os três envolvidos abriram uma conta pessoal (e não institucional) para gerir os dinheiros da campanha (cerca de 1,3 milhões de euros provenientes de sócios da Apifarma), enganaram o Ministério da Administração Interna sobre a titularidade dessa conta, não pagaram imposto de selo (10% dos montantes acima dos 500 euros), houve facturas falsas em nome da Ordem dos Médicos (a facturação foi feita em nome da Ordem dos Médicos, mas os pagamentos não saíram de lá, mas sim da conta particular, havendo assim condições para a criação de um ‘sazo azul’) e houve ainda declarações falsas para obtenção indevida de benefícios fiscais.
Uma vez que os três envolvidos (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves) são profissionais de saúde, deveria ter havido declarações dos montantes recebidos das farmacêuticas no Portal da Transparência e Publicidade, gerido pelo Infarmed; mas tal nunca sucedeu nem o presidente do regulador se mostrou interessado em abrir um processo. A verba amealhada também serviu para um pagamento de serviços do Hospital das Forças Armadas como retribuição da administração de doses de vacinas contra a covid-19 a médicos não-prioritários, contra a norma em vigor da DGS e com o beneplácito activo de Gouveia e Melo.
Uma súmula deste caso escansaloso pode ser lido nesta notícia recente, embora as primeiras tenham sido publicadas em Dezembro de 2022.
Durante meses, procurei saber se o Ministério Público abrira qualquer processo. No ano passado, enviei quatro e-mails; este ano foram mais dois. Fiz entretanto, uma denúncia informal. Nada. Silêncio absoluto. O Ministério Público nada fez, pelo menos que seja do meu conhecimento.
Mas vai fazer agora, mas ao contrário, tal como já fez com as acusações de Gouveia e Melo, e de mais outra da Ordem dos Médicos (em ‘parceria’ com Miguel Guimarães, Filipe Froes e Luís Varanda) e ainda outra do médico e ‘humanitarian doctor’ Gustavo Carona. Porque, nesses casos, achou por bem acompanhar as acusações, porque é muito mais fácil: basta em meia-dúzia de linha seguir o que dizem os queixosos. Aliás, num dos processos, a magistrada até escreve que o PÁGINA UM é um jornal de se vende em banca, o que exemplifica o grau e qualidade da investigação do Ministério Público…
Tendo em conta a dimensão do PÁGINA UM, e o facto de eu ser um ‘outsider’ – e não visto com particular simpatia pelos colegas de profissão, até pela minha postura crítica sobre as promiscuidades e erros dos media –, sou um alvo apetecível para aquilo que se denomina SLAPP – acrónimo, que faz lembrar estalo (slap), para Strategic Lawsuit Against Public Participation. Consiste isto em processos de intimidação, perseguição e silenciamento, quase sempre recorrendo a processos judiciais ou similares, não apenas para desacreditar vozes independentes como para lhes causar danos patrimoniais.
Na verdade, arrisco-me a que, dentro de pouco tempo, a minha vida seja andar de tribunal em tribunal, de julgamento em julgamento, ainda por cima porque, em abono da verdade, como o Ministério Público não investiga sobre muitos dos ‘casos de política’ que o PÁGINA UM revela (e a outra imprensa intencionalmente não os expande), dá sinais aos infractores para me tentarem silenciar.
Pois bem, a minha estratégia vai mudar, e existem condições para o anunciar. Embora o papel do jornalismo (e do jornalista) não seja o de ter uma intervenção directa sobre os casos que denuncia – significando assim que, por princípio, um jornalista não deve ser o ‘denunciante’ junto do Ministério Público –, a partir de agora vou começar a apresentar, em casos concretos, denúncias formais junto da Procuradoria-Geral da República. Há, na forja, uma dezena de casos concretos, que serão, em breves anunciados, até porque revelaremos as queixas formais na Procuradoria-Geral da República.
Deste modo, casos como os da campanha ‘Todos por quem cuida’, envolvendo figuras gradas, podem sempre resultar em investigações contra mim por alegada difamação, mas terão também de resultar em investigações formais do Ministério Público contra os visados.
Mostra-se intolerável que, de entre as largas dezenas de ‘casos de polícia’ que o PÁGINA UM tem noticiado em quase três anos, não haja nenhum (com o meu conhecimento) que tenha levado a uma investigação séria da polícia criminal (e do Ministério Público), enquanto eu, à conta disto, tenha já quatro (ou mais) processos judiciais à perna. E tenho a consciência de ter cumprido todos os preceitos de rigor e isenção como jornalista.
Em suma, a partir de agora, estou pronto para muitas e mais mordidelas nas canelas; mas não posso é aceitar que o Ministério Público cruze os braços quando o PÁGINA UM escreve. Vai ter de descruzar.
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