EPIFANIA

A camélia no musgo

turned on headlight bulb

por Kellyne Laís // Outubro 3, 2024


Categoria: Cultura

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Uma mulher invisível. Viúva, metade de seus cinquenta e quatro anos de vida a trabalhar como zeladora de um condomínio de luxo, ela é pequena, feia e gorducha. Jamais frequentou os bancos acadêmicos – sua condição social e econômica não lhe abriu esse caminho – e manteve-se sempre pobre, discreta, insignificante. Embora não seja amável, porta-se de forma educada e trabalha com a precisão e a eficiência características das engrenagens que fazem girar a roda da vida em sociedade, o que é suficiente para que seja tolerada, mas não para que seja vista. Esse é o cenário inicial em que se desenrola a história de Renée Michel, personagem do romance A elegância do ouriço, de Muriel Barbery (L’élégance du hérisson, Éditions Gallimard, 2006), mas a narrativa deixa claro desde o princípio que, apesar de sua aparente trivialidade, Renée está muito distante de ser uma pessoa ordinária. Autodidata, construiu para si ao longo dos anos uma biblioteca secreta e, absorta pela literatura e pela arte, pela música e pelo cinema, pelas experiências gastronômicas locais e estrangeiras, camuflou-se nesse refúgio físico e espiritual encoberta pela força de preconceitos milenares que a permitiram jamais ser vista como mais do que uma mera serviçal. Ela é a personificação do ouriço que dá nome à obra: o exterior duro e espinhoso esconde um interior terno e sensível.

Muriel Barbery

O contraponto à figura de Renée é feito por Paloma Josse, uma adolescente de 12 anos que reside com a família em um dos apartamentos do condomínio em que Renée trabalha como zeladora. Nascida em uma família aristocrática, Paloma está certa de que, assim como seus pais e avós, também será rica e privilegiada, mas ter esse destino traçado, ao contrário de lhe trazer conforto e alegria, só faz gerar angústia. Para ela, a vida é absurda, a existência é vã e as pessoas, apesar da ilusão de que podem controlar o próprio destino, vivem retidas e submissas como peixes em um aquário.

 Os pensamentos mais profundos de Renée e Paloma se entrelaçam ao longo da obra em meio a uma diversidade riquíssima de referências à arte e à filosofia, mas apesar das diferenças de origem, de idade e de experiências, ambas apresentam uma visão pessimista da vida e do cotidiano social até o momento em que são transformadas pela chegada de um novo e gentil morador chamado Kakuro Ozu. Possuidor de entusiasmo e candura juvenis aliados a sabedoria e perspicácia da maturidade, Kakuro enxerga a essência das personagens e lhes confere a dignidade de serem vistas como pessoas para além do papel social predestinado a cada uma. Convidada a desnudar-se do véu de invisibilidade que a camuflava, Renée experimenta sentimentos que antes lhe eram reconhecidos em teoria, como a amizade e o amor. Paloma, como testemunha de toda essa transformação, vê-se também transformada e restaura a fé na beleza e nas possibilidades que a vida tem a oferecer. Il y a un toujours dans le jamais.

Em uma era marcada pela superexposição e superficialidade características das redes sociais, a leitura do belo romance de Muriel Barbery é inspiração e alento. Envolvente e profunda, a obra é capaz de encantar o leitor em inúmeros trechos através de suas elegantes descrições de obras de arte da pintura e do cinema ou colocá-lo para refletir em meio a diálogos filosóficos e análises complexas sobre as relações humanas e a vida em sociedade. Cada um desses momentos certamente mereceria incontáveis horas de reflexão e inumeráveis palavras de ponderação, mas há um aspecto em especial que parece digno de destaque: o lugar da (des)igualdade nas relações sociais e o papel do Estado na garantia de igual dignidade aos cidadãos.

Obra teve edição original em França em 2006 e em Portugal e no Brasil em 2008, respectivamente na Editorial Presença e na Companhia das Letras.

O pano de fundo no qual se desenvolve a história de Renée reflete com maestria a existência de grande parte das pessoas provenientes das classes trabalhadoras, que passam pela vida instrumentalizadas e sem serem notadas ou consideradas em sua singularidade – como o homem invisível de Ralph Elisson (Homem Invisível, Editora José Olympio, 2020). No caso da personagem, porém, é intrigante perceber que, a despeito de sua notável inteligência e erudição, Renée pareceu preferir uma vida sob o disfarce de zeladora comum a buscar alguma forma de ascensão social. A revelação dessa escolha se converte em um dos momentos mais comoventes da história: quando Renée compartilha suas tragédias familiares com Paloma, conclui que a miséria é uma ceifadora que colhe aptidões e sentimentos para deixar apenas o vazio necessário para enfrentar a dureza da vida; qualidades pessoais não seriam suficientes para superar as diferenças de classes sociais e, portanto, o silêncio e a clandestinidade seriam técnicas de sobrevivência.

A verdade é que as sociedades contemporâneas, a despeito da evolução na garantia de direitos fundamentais aos cidadãos, têm-se desenvolvido de forma favorecer a manutenção do status quo, assegurando que muitos nasçam destinados a perder para que poucos possam continuar sempre a ganhar. Apegados à perspectiva meritocrática, aqueles que ganham veem-se merecedores das próprias conquistas e, no mais das vezes, pensam que os perdedores não poderiam culpar ninguém além de si próprios. Seria, porém, a meritocracia o caminho justo e suficiente para garantir a redução das desigualdades sociais e proporcionar acesso aos melhores postos de educação e trabalho?

O termo “meritocracia” foi popularizado em meados do século passado através da distopia ficcional criada pelo sociólogo Michael Young na obra “A ascensão da meritocracia” (The rise of the meritocracy, Penguin Books, 1958). Ao contrário da tônica positiva que normalmente acompanha o termo nos dias atuais, a meritocracia era vista com desconfiança na obra de Young: se por um lado ela proporcionava a possibilidade de ascensão baseada na inteligência e no esforço pessoal, por outro lado tendia a formar uma elite arrogante, insensível aos problemas das classes inferiores e cada vez mais afastada da ideia de bem comum. Apesar dos maus presságios de Young, a meritocracia floresceu nas sociedades do pós-guerra como importante forma de acesso a vagas para educação e trabalho nas sociedades contemporâneas, ainda que temperada por políticas públicas criadas para garantia de maior igualdade de oportunidades. Décadas após, a despeito dos esforços meritocráticos, o problema da desigualdade social e a dificuldade em estabelecer consensos sobre o bem comum persistem.

man walking on street beside man pushing cart

Ao analisar essas questões que envolvem meritocracia e desigualdade no contexto atual, o filósofo Michael Sandel faz interessante diagnóstico: o problema reside no modo tecnocrático de conceber o bem público e de estabelecer o mérito que define ganhadores e perdedores (A tirania do mérito – o que aconteceu com o bem comum?, Editora Civilização Brasileira, 2021).

De acordo com Sandel, a concepção tecnocrática de política está alicerçada nos mecanismos de mercado como forma de alcançar o bem comum, levando a um esvaziamento de argumentos morais no discurso político e a uma crise de representatividade política; a concepção tecnocrática de meritocracia, por sua vez, interrompe a conexão entre mérito e julgamento moral e substitui o mérito natural – baseado em virtude cívica, talentos e sabedoria – pelo mérito artificial – fundamentado em riqueza e nascimento. A própria promessa de mobilidade social parece um sonho distante para os menos afortunados quando política e sociedade são governadas pelas leis do mercado sem a adoção de medidas consistentes e efetivas para acesso a bens e serviços públicos que garantam a redução da desigualdade social.

Essa mistura de clientelismo político com mérito artificial tem como consequência a arrogância dos ganhadores e o ressentimento dos perdedores, esgarçando os laços de cidadania e colocando em risco a própria democracia. É por isso que, na visão de Sandel, apenas uma renovação moral e cívica seria capaz de encontrar o caminho para uma política do bem comum, restaurando a dignidade do trabalho e a ideia de construção de um projeto democrático compartilhado.

a large group of people marching on the street

As vicissitudes da política e da meritocracia tecnocráticas são bem exemplificadas no enredo que une Renée, Paloma e Kakuro: independentemente dos méritos individuais de cada um, o acesso às posições sociais mais altas são naturalmente transferidos a estes, ao passo que somente poderiam ser alcançados por aquela com grau muito acentuado de dificuldade. Renée, na alegoria criada por ela própria, é a camélia no musgo do templo, a florescer ainda que na adversidade e afastada dos espaços de honra e poder.

Em um tempo de ebulição política e social, é necessário repensar o papel do Estado Democrático de Direito na elaboração de políticas de redução de desigualdade e de garantia de que, mesmo aqueles que não ascendam, possam sentir-se tratados com igual respeito e dignidade na sociedade em que se encontram. É tempo de garantir que mais camélias floresçam em condições de igualdade e dignidade com os frequentadores do templo, aproximando a realidade do futuro projetado e esperado pelo sistema de direitos fundamentais.

Kellyne Laís é advogada e professora universitária no Brasil


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