Pindorama

A luz do abajur desafiando a escuridão

Christ Redeemer statue, Brazil

por Lourenço Cazarré // Outubro 3, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes


– A casa agora será tua – a voz muito fraca.

Não se preocupe com coisas materiais, eu deveria ter dito. Não fale, apenas se deixe morrer.

– Quero que mores lá.

Preciso dizer qualquer coisa para que ele se cale.

– Sim.

– Promete que não vais vender, nunca?

Demoro a responder. Será que devo prometer alguma coisa a um homem que está pesando pouco mais de quarenta quilos?

– Quero que me dês a tua palavra – insiste.

É a voz que eu estou acostumado a ouvir desde sempre: autoritária, imperiosa, inflexível. Embora enfraquecida pela doença e pela morte próxima, é a mesma voz que nunca admitiu réplica.

– Está bem. Eu juro.

Fecha os olhos. Agora que está tudo acertado ele pode morrer. Sabe que não voltarei atrás. Quando empenhamos a palavra, ele ou eu, não há força que nos faça descumpri-la.

Cedi mais uma vez. Sempre me acovardei diante desse homem que soube carregar sem aparente sacrifício a mais pesada de todas as pequenas palavras: pai.

Eu deveria observá-lo com atenção, pois esta será certamente a última imagem que me ficará dele, mas mantenho os olhos fitos na janela entreaberta pela qual entra o sol do fim da tarde. Não. Esse corpo magro e alquebrado não pertence ao meu pai. O meu velho morreu bem antes, morreu no dia em que não pode vestir-se para ir ao trabalho.

Era um homem maciço – pescoço taurino, ombros largos, peito amplo – que parecia ter sido fundido em metal. Era uma certeza que jamais vacilava.

Vou até a janela.

Ainda bem que a mãe se foi antes.

A mãe sofreria muito vendo aquele corpo devastado sobre a cama. Aquele não é mais o homem que abria a porta do carro para ela.

O sol morrente incendeia as casas, as calçadas, o leito da rua. Atrás de mim estão a obscuridade, o frescor e o silêncio do hospital.

full moon and gray clouds during nighttime

Ele nunca pode ou quis ser nada além de meu pai. Seria ridículo se tentasse fingir que havia entre nós algo como amizade, companheirismo ou camaradagem. Éramos pai e filho.

Ficava feliz quando conhecia um homem às antigas, como ele.

– Hoje encontrei um cavalheiro – dizia.

Apagou-se em três meses. Sabia que a doença era irreversível. Como estava com setenta e oito anos, decidiu aceitar o fim. Entregou-se porque decidiu que havia chegado ao final da linha. Não creio que tivesse medo de enfrentar a dor.

Não recusava o alimento. Comia de olhos fechados umas poucas colheradas do que a enfermeira lhe dava e depois, quando ela deixava o quarto, levava o dedo à garganta.

– Descobri que ele não tem enjoo coisa nenhuma – disse a enfermeira, e persignou-se. – O que ele faz é pecado.

O médico bateu as mãos espalmadas nos joelhos e se levantou.

– O senhor, que é o filho, tem de resolver. Ou continuamos assim, e ele morre de inanição, ou começamos a alimentá-lo por sonda, mesmo correndo o risco…

– Que risco?

– Em caso de vômito, o alimento pode parar no pulmão. É morte certa.

– A morte é sempre certa – eu disse. – Escolha o senhor.

– Não posso lhe assegurar nada, mas, com a alimentação pela sonda. ele talvez permaneça mais tempo conosco.

– Não sei se ele faz questão de permanecer mais tempo na nossa companhia – retruquei.

Aliás, eu nunca soube se ele quis algum dia estar ao lado de alguém que não fosse a mãe.

Era um homem calado, extremamente reservado.

– Não gosto de gente derramada – dizia.

Penso que gostava de mim apenas porque eu era o filho da mulher que ele amava com um fervor religioso.

Reflexivo, o médico passou o indicador pelo lábio inferior. Era um técnico, precisava tomar uma decisão séria, que veio em seguida.

– Vamos à sonda nasogástrica! – disse e, seguido pela enfermeira, se encaminhou para o quarto.

O pai morreu dois dias depois de ter me arrancado aquela promessa.

black and gray cement tombs

*

– Hoje tu vais me acompanhar – disse a voz que não admitia contradita.

– Posso ir de bicicleta?

– Não. Vamos a pé. De pés descalços! Choveu muito nesta noite.

Parado na escadaria que descia ao pátio, de costas para mim, as mãos cravadas na cintura, vestindo apenas calção, o pai lembrava a figura de um boxeador que eu vira numa enciclopédia.

Recalcitrante, encostei na parede do alpendre a bicicleta que havia encontrado minutos antes ao lado da árvore de Natal. Sentei-me na laje úmida e tirei as sandálias. Eu não havia dado nem vinte pedaladas no brinquedo tão aguardado. Pedaladas silenciosas para não acordar a mãe, que gostava de dormir até mais tarde.

Quando me pus de pé, e me arrepiou o contato com a laje fria, o pai estava já com o portão aberto. Ao correr até ele, eu me voltei para olhar mais uma vez a bicicleta.

Tomara que a gente não demore muito, pensei.

Era o meu primeiro passeio na praia com o pai.

Saímos para a manhã úmida. As ruas sem calçamento estavam encharcadas, com muitas poças de água barrenta.

Não entendi quando nos encaminhamos para o interior do balneário, em vez de irmos para a orla. Eu esperava que o pai me levasse para caminhar à beira da lagoa. A gente poderia ir até o trapiche dos pescadores, chutando as ondas, molhando os pés e as canelas.

Só anos depois compreendi por que o pai me levou a zanzar pelas ruas da zona mais rica da praia. Ele se orgulhava de ter construído muitos daqueles casarões.

De quando em quando, apontando discretamente, me chamava a atenção para detalhes dos jardins, dos muros, dos portões, dos telhados. Sabia quanto aquilo tudo havia custado. Entremeava a citação de valores com relatos resumidos de episódios dramáticos da construção: paredes derrubadas pelo vento, pedreiros despencando de andaimes, alicerces que cediam misteriosamente. Se havia um automóvel na garagem, me informava da marca, modelo e ano de fabricação. Por fim, o pai me dizia o nome do proprietário e se ele tinha filhos ou netos.

– É preciso aprender a ler o que está escrito nas ruas.

Naquela manhã ele não parou de falar. Em casa, raramente abria a boca para pronunciar uma daquelas suas frases curtas, secas.

Quando voltávamos, já bem próximos de casa, de repente o pai parou.

– Isso aqui é greda – disse ele.

– O quê?

– Greda – repetiu, como que se deliciando com a palavra. – É boa para fazer tijolos.

O pai enterrava com gosto o pé descalço na argila macia, amarelada, que lhe subia por entre os dedos e cobria-lhe o peito do pé.

Depois, agachou-se.

– Faz como eu. Mete as mãos no barro.

Embora sentindo nojo, esmigalhei uns torrões daquela matéria pastosa. Pensei na mãe. Se ela me visse ali, colocando as mãos naquela sujeira, ficaria muito braba.

– É gostoso, não é?

– Sim, é bom – menti.

O pai estendeu a mão embarrada até uma caixinha de fósforos, vazia, que estava sobre a relva que nascia junto à calçada. Abriu a caixa e encheu com barro a parte em que ficavam os palitos.

– Vamos levar isso com a gente.

– Para quê?

– Tu vais saber depois.

Em casa, antes de correr para o tanque a fim de me lavar, vi o pai colocar a caixinha cheia de argila em cima da mureta do pátio. Com as mãos e os pés ainda úmidos, peguei a bicicleta e saí para pedalar na rua.

a man holding a lantern in the dark

*

O pai esperava que eu cursasse engenharia, como ele. A mãe gostaria mesmo que eu fosse advogado, como o pai e o avô dela, mas bem que se contentaria com engenharia.

Não conseguiram esconder o desapontamento quando eu anunciei que faria o vestibular para arquitetura.

O certo é que um dia, cinco anos depois, pendurei um diploma na parede da saleta que o pai alugou para que nela eu montasse o meu primeiro escritório. Comecei com modestíssimas encomendas de gente remediada, como se chamava a classe média de então.

– Um nome se constrói com trabalho – dizia o pai.

Ele jamais me convidou para atuar em nenhuma das obras que tocava sem parar, uma atrás da outra, às vezes duas ou três simultaneamente. Tinha seus arquitetos, engenheiros, mestres de obra e pedreiros, gente que trabalhava para ele há décadas.

– Meu time é só de pessoas de extrema confiança.

Nunca me pediu que projetasse sequer uma casa de cachorro. Pelo meu lado, nunca lhe pedi um trabalho, nem mesmo no penoso início da carreira.

Como nunca trabalhamos juntos, jamais brigamos.

*

No domingo seguinte, antes de sairmos a passear, o pai apanhou de cima do muro a caixa de fósforos e de dentro dela retirou um pequenino retângulo de barro seco, que me entregou.

– Um tijolinho para construíres tua primeira casa.

Ele passava a semana na cidade. Só chegava à casa da praia pelo meio das tardes de sábado. Nas segundas-feiras, bem cedo, embarcava no automóvel e retornava às obras.

Nosso passeio dominical nas manhãs de verão durou oito anos. Na semana em que completei catorze anos, ele me dispensou.

– Se quiseres, a partir de hoje, podes passear sozinho. Tu agora és um homem.

Comemorei a libertação correndo para o clube. Naquele dia cheguei a tempo de entrar na escolha dos jogadores para a primeira partida de futebol de salão. Antes, por causa do passeio obrigatório, eu era obrigado a entrar só na terceira partida, a que reunia os pernas-de-pau recusados para os jogos anteriores.

Aqueles passeios – que por muitos anos foram uma tortura para mim – são hoje uma das minhas melhores lembranças.

O pai passava os domingos de verão no alpendre, acomodado na cadeira de balanço, sempre com um livro ou jornal nas mãos. De olhos fechados, como se estivesse dormindo, estirada na espreguiçadeira, a mãe escutava a música que vinha do toca-discos da sala.

Na casa da praia, aos domingos, eles reproduziam as noites sempre iguais da nossa casa na cidade. Música e leitura. A mãe gostava de tangos e boleros, mas também ouvia óperas. O pai só queria saber de jornais, revistas e livros de engenharia.

Desde que me lembro, eles sempre estiveram sentados, próximos, lendo e escutando música, na praia ou na cidade, raramente trocando umas palavras em voz baixa.

person in black jacket walking on pathway between trees during daytime

*

Vamos agora ao que realmente interessa.

Ao final do terceiro passeio, quando passávamos pelo portão, eu peguei o pai pela mão. Ele me olhou surpreso. Gaguejante, mal controlando uns risinhos tolos, eu o conduzi até o fundo do pátio.

Paramos debaixo da figueira.

– Olhe o que eu fiz – apontei, sorridente.

O pai ficou um tempão calado, só olhando. Vi muitas coisas no rosto dele naquele momento. Um sorriso largo, de espanto e orgulho. Depois, comoção. Percebi até um cintilo prenunciador de lágrimas. Mas aqueles sentimentos delicados se apagaram logo.

Então ele se agachou diante da casinha que eu havia construído com tijolinhos de barro.

– Esta parede aqui não está cem por cento. Tu poderias ter caprichado mais.

A tarefa de montar aquela casa me tomara a semana inteira. Eu havia fabricado centenas de tijolinhos. Perdera muito tempo percorrendo os bares à procura de caixas de fósforos vazias e tivera que descobrir outra mina de greda numa rua próxima.

Pensei em retrucar. Poderia ter dito: não, pai, a parede está perfeita porque eu usei prumo e esquadro. Mas permaneci calado.

O rosto do pai tinha voltado a ser o que era sempre: uma indecifrável máscara de traços fortes.

Aquela foi a primeira e única vez em que mentiu para mim. Deve ter custado muito a ele.

– Mentira é cor que não sai da minha paleta – dizia.

Só bem mais tarde, já adulto, fui compreender por que motivo ele havia dito que a tal parede estava torta. Ele julgou que eu me acomodaria se dissesse que a casinha estava bem-feita. Para ele, as pessoas tinham de ser permanentemente chicoteadas e esporeadas para que buscassem a perfeição.

woman holding string lights

*

Cumpri meu juramento.

Depois de trinta anos morando em apartamentos pequenos, voltei para este casarão imenso, que está sempre reclamando algum cuidado. Não falo pelo dinheiro. O problema é que uma casa deste tamanho exige atenção, tempo.

Sinto-me um estranho, embora tenha vivido aqui até os vinte e cinco anos. As muitas peças, amplas, de pé direito elevado, fazem com que eu me sinta de novo pequeno. O silêncio às vezes é opressivo.

À noite, antes de me deitar, venho para cá, e me sento nesta poltrona que foi do pai para assistir aos noticiários dos canais internacionais. Sempre gostei de estudar línguas estrangeiras. Vou de um telejornal a outro: espanhol, italiano ou francês. As notícias são idênticas em todos os canais do mundo, as emissoras usam as mesmas imagens. A leitura não me atrai, nunca me interessei por música.

Às vezes sou tocado por uma estranha sensação. É como se algo leve como um sopro atravessasse a sala. Eu me arrepio.

Eu sentia o mesmo quando era pequeno. De noite, já de pijama, eu me deitava de bruços no tapete para folhear livros infantis ilustrados. Mesmo protegido pela presença dos meus pais, de vez em quando eu espichava olhares para os cantos mais escuros e sentia medo.

Agora, quando projeto uma casa, começo da sala. É como se eu quisesse reconstruir as noites tranquilas da minha infância. A música suave, o crepitar das páginas de um livro e a luz do abajur desafiando a escuridão lá fora.

Sim, sou parecido com meu pai.

Agora, exatamente como ele queria, eu consigo ler o que está escrito nas ruas.

Lourenço Cazarré é escritor


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