Ditaduras são reconhecíveis pela violência e o horror. Assim, nada mais justo que as descrevamos através de termos como “sombra”, “escuridão”, “trevas”. Cá entre nós: elas merecem. Mas serão só isso? Certamente, não. Na contraface do espectro fantasmagórico que projetam existe a burrice. Não raro uma ignorância miúda mas uma daquelas de espessura colossal. Vejamos o caso da ditadura que mais conheço – graças à infausta condição de nela viver durante 21 anos – que é a brasileira. E que, neste ano, completou os 60 anos de sua implantação. De 1964 a 1984 não apenas as pessoas mas a inteligência foi torturada. Apanhou na cara, foi pendurada no pau-de-arara, recebeu choques de alta voltagem. Vamos à casuística. Que é apenas exemplificativa mas jamais exaustiva:
Prendam o Feydeau
Corria 1966 e um coronel, de nome Washington Bermudez, esbravejou contra o elenco que encenava peça do dramaturgo francês George Feydeau em Porto Alegre, cidade do Sul do Brasil. Bermudez exigiu a presença de todos os envolvidos em seu gabinete, inclusive de Feydeau. Relataram-lhe que, entre seu desejo de interrogar Feydeau e o mundo real havia um Atlântico de distância e mesmo assim sua ordem chegara 45 anos após a morte do intimado.
O valor da polícia
Para não ficar atrás, outro coronel, Joaquim Gonçalves, de Minas Gerais, declarou que os jornalistas “deveriam apanhar da polícia não apenas durante a passeata, mas antes também”. Isto porque não reconheciam o valor dos agentes da lei e da ordem. E ilustrou: “Os fotógrafos, por exemplo, nunca fotografam os estudantes batendo no policial”.
Queremos o Sófocles!
Era 1965 e o Brasil se juntara aos marines norte-americanos na invasão da República Dominicana para entronizar outra ditadura. No Rio, os atores e atrizes da peça Electra, de Sófocles, queriam fazer alguma coisa. E a atriz Isolda Cresta, antes da função, leu um manifesto contra o papelão das tropas brasileiras no exterior. Foi presa. No dia seguinte, apareceu um agente da polícia política no teatro. Disse que todos ali eram “subversivos”. Mas queria mesmo saber “quem é esse tal de Sófocles? Onde ele está?” Contrafeito, teve que ouvir que o sujeito que queria prender habitava outro plano havia dois milênios.
Desvairados e vagabundos
Em janeiro de 1968, o general Juvêncio Façanha, diretor do Departamento de Polícia Federal, deu declaração autoexplicativa sobre a sofisticação dos quadros da ditadura que lidavam com a questão cultural. “A classe teatral só tem intelectuais, pés sujos, desvairados e vagabundos, que entendem de tudo menos de teatro”.
Xixi com censura
Para tornar ainda pior tudo o que já estava ruim, o Ato Institucional 5, expelido pelos generais em 1968, colocou censores-militares na redação do Correio da Manhã, no Rio. Suas tesouras eram infatigáveis. Qualquer possibilidade de crítica ao regime era sumariamente seccionada. Foi em uma dessas que o Papa Paulo VI levou a pior. Na tradicional mensagem natalina aos cristãos do mundo, o pontífice citava os “povos oprimidos”. Como “povos” e “oprimidos” separados já pareciam suspeitos, juntos eram algo simplesmente intolerável. E Paulo VI não escapou. Depois disso, alguém afixou um cartaz com uma recomendação de muito bom senso no banheiro masculino. Dizia: “Não faça xixi com os censores: eles cortam tudo”.
Torturas de amor.
“Hoje que a noite está calma/ E que minh’alma esperava por ti/ Apareceste afinal/ Torturando este ser que te adora”, são os versos iniciais de Torturas de amor, bolero de Waldick Soriano. Mas era 1974 e os censores entenderam que “tortura” e “bolero”, além de não rimarem, não tinham o direito de frequentar as mesmas notas. Portanto, a melosa canção foi proibida de tratar de torturas mesmo que fossem “de amor”. Curiosamente, o proscrito Soriano era bastante íntimo do estado de coisas que condenou sua letra. Em 1973, o cantor defendeu a ação dos grupos de extermínio. Achava também que Jesus Cristo era um “arruaceiro e enganador”.
Os hippies que vieram da URSS
Maioral do Centro de Informações do Exército, o general Milton Tavares de Souza palestrou na Escola Superior de Guerra para ensinar que “o movimento hippie foi criado em Moscou”. Já o ministro do Exército, Fernando Bethlem, vinculou a União Soviética às drogas “pelo interesse dos comunistas em corromper as mentes jovens”. Um terceiro general, Ferdinando de Carvalho, levou sua paranoia à literatura. Seu romance Os Sete Matizes do Rosa descreve as agruras de um pai cujo filho fora a um show de rock que desembocou em um “bacanal de nudismo”. O festival fora “organizado pelos comunistas”.
Julinho, o que foi sem nunca ter sido
Para um compositor que nunca existiu, Julinho da Adelaide foi muito bem sucedido. Em 1974, implantou duas músicas no ouvido do brasileiro: Acorda Amor e Jorge Maravilha. Nos jornais, apareceu uma entrevista sua falando mal de Chico Buarque. “Não tem voz”, sentenciou. Era uma época em que nenhuma das músicas de Chico sobrevivia à censura prévia. Enquanto isso, as canções de Julinho passavam incólumes. O que os censores não sabiam era que Julinho – cuja graça era Júlio César de Oliveira conforme constava no formulário da Censura – não fora nascido mas inventado. Era o modo matreiro que Chico Buarque encontrou para ludibriar suas tesouras.
Insulto, não!
Quando a peça Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams, foi interditada, a atriz Maria Fernanda apelou à sensibilidade do presidente da União Democrática Nacional que, confrontando o próprio nome de batismo, não era “união”, “nacional” e muito menos “democrática”, tanto que apoiara o golpe militar. Seu presidente era o deputado federal Ernani Sátiro. A conversa começou ruim e foi piorando até que, lá pelas tantas, a atriz inconformada bradou “Viva a Democracia!” E o deputado rebateu de pronto: “Insulto eu não tolero!”
Devassa na biblioteca
Quando o apartamento de Ferreira Gullar, no Rio, recebeu a visita da polícia política, o poeta ficou preocupado com a devassa na sua biblioteca e a quantidade de obras confiscadas. Em determinado momento, um livro de arte também acabou recolhido. Estranhou como um volume sobre pintura poderia ameaçar a segurança da pátria e perguntou ao agente qual o perigo que representava aquele tomo com o título de “Cubismo”. O policial explicou que a razão era óbvia e estava no próprio título. Ou seja, cubismo, para ele, só poderia ser algo ligado à Cuba.
Shakespeare amputado
O mundo festejava o quarto centenário de nascimento do pai de todos os dramaturgos, William Shakespeare. Mas era 1964 e o Brasil emitiu uma nota dissonante. Ninguém poderia imaginar que, a descansar sob a terra havia 348 anos, o autor de Macbeth, Romeu e Julieta, Otelo e mais 35 peças, pudesse irradiar suficiente potencial subversivo para afligir as autoridades abaixo da linha do equador. Mas foi o que aconteceu: nos 400 anos do bardo de Stratford-upon-Avon, a censura passou-lhe a faca nas falas que escreveu para A Megera Domada, então em cartaz.
Encontro com Kafka
Algumas das situações vividas na autocracia brasileira provém dos labirintos de Franz Kafka. Uma delas alcançou o empresário Fernando Gasparian, às vésperas do lançamento de seu semanário Opinião, em 1972. Chamado à Polícia Federal, ouviu do major que o atendeu que “no Brasil não existe censura prévia” e que poderia publicar “o que quisesse”. Em seguida, o major retirou da gaveta uma lista com 210 assuntos que ninguém poderia publicar mesmo que quisesse. Gasparian pediu-lhe uma cópia. Ouviu uma negativa e uma explicação: “A lista é secreta”.
Ayrton Centeno é jornalista e autor do livro ‘Dicionário da ditadura‘, volume com 530 verbetes que reproduzem factos, figuras e farsas do golpe militar no Brasil em 1964
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