editorial

Gouveia e Melo, um almirante das casernas com um pensamento das cavernas

boy singing on microphone with pop filter

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 3, 2024


Categoria: Opinião

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Cerca de três anos após sair da coordenação da task force do processo de vacinação contra a covid-19, depois de integrar, durante alguns meses, uma equipa chefiada por um político pouco talhado para a função e uma escassez inicial de doses, Gouveia e Melo continua a ser um putativo candidato a Belém, transportado num andor sobretudo pela imprensa.

Ajudou, claro, a sua nomeação para o cargo de Chefe do Estado-Maior da Armada, e também muito uma espécie de salvo-conduto que lhe permite não sair beliscado em contratações públicas esquisitas – sendo mesmo ‘abençoado pelo Tribunal de Contas – ou em poder botar faladura até em assuntos políticos, violando leis e decência, como se verificou na recente entrevista à RTP, onde surgiu fardado a preceito. Aliás, e não por acaso, com a imaculada brancura da farda da Marinha, e não com o ‘braçal’ camuflado dos tempos da task force.

Para quem conhece o funcionamento da comunicação social – recordemos as palavras de Emídio Rangel, em 1997, que defendia a capacidade da SIC em vender tanto sabonetes como presidentes da República -, talvez não seja surpreendente que Gouveia e Melo se mantenha em boa posição para ocupar a cadeira de Belém, porque se continua numa lengalenga de endeusamento da sua persona.

Em abono da verdade, Gouveia e Melo destacou-se com um bom operacional de logística, mas de menor valia do que um director dos frescos da cadeia do Pingo (porque ele tinha um só produto a escoar, já “vendido”, enquanto o homem da Jerónimo Martins tem muitos fornecedores, muitos produtos perecíveis a distribuir por muitas lojas, e sem garantias de vendas). Mas o mérito de Gouveia e Melo foi saber surfar logo a onda do populismo, quando, por exemplo, desbloqueou, sem ter competências para tal, e contra uma norma da DGS, a vacinação dos médicos não-prioritários, e nada fez quando o então bastonário da Ordem dos Médicos, o actual deputado social-democrata Miguel Guimarães, lhe comunicou que um político tinha sido vacinado sem estar na lista por “necessidade e oportunidade“. Uma imoralidade e sobretudo uma ilegalidade a que Gouveia e Melo jamais poderia fechar os olhos. Mas fechou por lhe ter sido conveniente: foi recebendo elogios e ‘prebendas’ públicas.

O PÁGINA UM revelou muitas destas situações, depois de uma luta que envolveu o Tribunal Administrativo de Lisboa, mas o mais que se conseguiu foi o silêncio de uma imprensa cúmplice (e criadora de um herói) e um processo judicial do agora almirante por difamação.

Gouveia e Melo, um militar submarinista de quem jamais se saberia da sua existência física por nada se conhecer de relevante e edificante em termos da sua existência mental, teve, em todo o caso, o mérito de ser, além de bom operador de logística de um só produto, um especialista em marketing – ou, pelo menos, com bons ‘assessores’, alguns dos quais se encontram na imprensa, no activo, e/ ou em agências de comunicação.

Num país decente, com democracia amadurecida, um militar com funções civis jamais se deveria apresentar como um militar nem sequer ambicionar cargos políticos. Não por uma questão de legalidade, mas de decência. É de um servilismo ofensivo achar-se, como Gouveia e Melo acha, que um país só se endireita perante uma farda – é exactamente o contrário: a ‘desmilitarização’ das sociedades constitui um sinal de evolução civilizacional, de elevada democraticidade e de estabilidade social. Um militar decente deve perceber isso quando entra na carreira militar e, sobretudo, quando vai subindo até chegar à reforma em lugares de topo da hierarquia.

Mas Gouveia e Melo não mostra decência porque até usou intencionalmente uma farda militar para se aformar numa tarefa civil, mas não uma farda qualquer. Quando esteve na task force, usou um camuflado, que nem é propriamente a indumentária que se associa à Marinha. Quando esteve na televisão, na entrevista à RTP, usou indumentária branca com todas as insígnias e mais algumas.

A postura messiânica de Gouveia e Melo, auto-alimentada – e que teve o seu ‘momento Mário Soares‘ em Odivelas, numa versão soft, no decurso de uma estúpida e contraproducente manifestação contra a vacinação das crianças (não pelo sentido, mas porque assim o transformaram num mártir) – mostra-se bem patente numa entrevista em Junho de 2021 ao jornal Sol. É aqui que o agora putativo candidato a Belém melhor se dá a conhecer, e também onde consegue revelar o pior que tem, que é muito para o pouco que dá.

Disse ele que aceitou as funções de coordenador “porque o país precisava e eu tenho ‘skills’ que podiam ser úteis”, relembrando que considerava ser “serôdio” o letreiro nos submarinos que dizia: “A Pátria honrai que a Pátria vos contempla”. E é mais do que serôdio nos tempos que correm, é patético; mas Gouveia e Melo dizia na entrevista que evoluíra, e que como era militar, se fosse “necessário defender o meu país, não posso falhar”. Os ‘civis’ devem pensar o contrário, quando têm defronte de si tarefas civis, certo?

Aliás, no que toca à pandemia, somente um país obtuso poderia achar que questões de Epidemiologia e gestão de uma crise sanitária estava ao nível de uma guerra. Numa época em que se exigia racionalidade e Ciência sem peritos comprometidos, tivemos um vice-almirante a ditar bitates.

Veja-se este trecho sempre na primeira pessoa, como se fosse um John Ioannidis saído de um submarino: “Estou a fazer gráficos em que vejo a taxa de vacinação por concelho e a incidência por concelho. E olhando para os dados das últimas três semanas, a média acumulada em 14 dias por cem mil habitantes e a média acumulada da semana passada estão exatamente com o mesmo comportamento relativamente à percentagem de vacinação. Ou seja, a variante propaga-se mais mas é igualmente contida pela vacinação. Pelo menos, por enquanto não estou a notar isso. O que noto, à data de hoje e com os dados que tenho, é que em termos de mortalidade as vacinas continuam a proteger a população. O que acontece é que há pessoas que estão a apanhar porque só têm uma dose e uma dose protege pouco, sobretudo com a dose da AstraZeneca, e é isso que eu estou a acelerar agora a processo. E quando digo que protege pouco, é relativo. Protege muito, deixa é escapar alguns. Se tiverem as duas doses não deixa escapar nenhum.”

Ou este trecho, ainda: “Tenho concelhos com 70 por cento de vacinação já feita, concelhos muito pequeninos, e olhando para eles a incidência está a baixar imenso, está abaixo de 60. Quando olho para os 308 concelhos e vejo uns com maior incidência, vou  ver os dados e têm pouca vacinação. A maior incidência é nos concelhos mais populosos porque não há vacinas para avançar com o ritmo como desejávamos. De qualquer forma, estamos a 50 por cento de segundas doses. Metade da população portuguesa já recebeu uma dose. E 30 por cento, duas doses. Agora eu gostaria de poder acelerar mais. Aliás eu gostaria de ter podido acelerar mais atrás. Porque como foram adiando a entrega das vacinas, e isto foi constante, fez-me perder tempo para trás. Se me tivessem dado aquelas vacinas na altura que me estavam prometidas eu já estaria em 60 ou 65 por cento de vacinação”.

Visto à distância, um militar submarinista sem formação neste sector falar desta forma mostra-se tristemente anedótico; e somente comparável à patetice de termos tido uma directora-geral da Saúde, Graça Freitas, que parvamente se orgulhava de não saber trabalhar com computadores, e daí com conhecimentos zero em Epidemiologia e sem arcaboiço sequer para se assumir como Autoridade Nacional de Saúde durante uma crise sanitária de três anos.

Mas nessa entrevista, Gouveia e Melo lança mais pérolas sobre o seu pensamento, assumindo que olhava para a tarefa como se fosse “um submarino”, o que não deixa de ser uma excelente mas triste imagem da realidade, porquanto, de facto, ficámos reféns daquilo que foi dissertando, imiscuindo-se em temas que não controlava nem deveria controlar, promovendo a perseguição de quem optava por não se vacinar, não cuidando da prudência quando a AstraZeneca começou a dar problemas e até incentivando pais a vacinar filhos e a Direcção-Geral da Saúde a dar autorizações, pois o que ele queria era vacinar, vacinar, vacinar. O seu objectivo eram números.

Mas há afirmações e ‘teses’ ainda mais graves na entrevista ao Sol, e que revelam a sua faceta verdadeira, incompatível com um Chefe de Estado, mesmo se as funções presidenciais são já quase simbólicas. Com efeito, Gouveia e Melo chega a dar uma explicação verdadeiramente marialva e até misógina sobre o seu alegado sucesso na task force: “Por exemplo: eu sou alto, visto uniforme, tenho voz de comando e sou assertivo. Só essas quatro coisas ajudam logo o processo. Depois, tenho ideias, desenvolvo-as e sou obsessivo. Faço o que tiver de fazer e sou impiedoso com os malandros. Sou super piedoso para as pessoas que fazem bem, erram, mas deram tudo.” Presume-se assim que um homem baixo e sem uniforme, não terá hipóteses de ser líder, mesmo que tenha voz de trovão e discurso assertórico. Quanto às mulheres, enfim, presume-se que não entrem no ‘clube’ de Gouveia e Melo, homem cheio de “ideias”, mesmo que não saibamos quais são, excepto quanto à peregrina ideia de reinstalar o Serviço Militar Obrigatório para enfrentar a ameaça russa e o desemprego.

A entrevista de Gouveia e Melo ao jornal Sol em Junho de 2021 é antológica sobre quem é e o que pensa o putativo candidato a Belém.

Porém, a ‘melhor’ parte da entrevista ao Sol para percebermos a sua mentalidade é quando Gouveia e Melo fala no “snobismo” dos ingleses, nos franceses “chauvinistas” e mostra a pouca simpatia que nutre aos alemães porque tem “família judaica”. Pergunto ao ChatGPT como classifica alguém com este discurso. Respondeu-me prontamente a ‘inteligência artificial’:

A pessoa que fez essa declaração pode ser classificada como alguém com uma visão estereotipada e preconceituosa em relação a diferentes nacionalidades. A fala demonstra generalizações negativas e julgamentos sobre grupos inteiros com base em nacionalidade, associando características como ‘snobismo’, ‘chauvinismo’ e uma atitude punitiva contra alemães por causa de uma conexão pessoal com o passado histórico do povo judeu.

Esse tipo de discurso reflete xenofobia, que é a aversão ou preconceito contra pessoas de outras nacionalidades, e pode também revelar traços de etnocentrismo, que é a tendência de julgar outras culturas ou nações com base em padrões e valores próprios, colocando-os como inferiores. Além disso, a menção de vingança contra alemães pela história familiar judaica pode estar relacionada ao trauma histórico, mas o uso dessa justifica[ção] para generalizar uma atitude hostil a um povo também perpetua ciclos de ódio.

Em resumo, a fala revela um preconceito nacionalista e uma dificuldade de ver as pessoas como indivíduos, em vez de como representantes de estereótipos nacionais”.

Não querendo dizer mais, concluo que se o putativo candidato Gouveia e Melo, metido na liderança das sondagens (que sabe Deus como são feitas), surfando o populismo montado numa ‘imprensa favorável’, vier a suceder a Marcelo Rebelo de Sousa, garantido está que teremos um ‘presidente das casernas’ com um pensamento das cavernas.


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