Restos de colecção

O (quase) holocausto de Isaac, ou Abraão a emprenhar pelos ouvidos

red and white floral window curtain

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 3, 2024


Categoria: Cultura

minuto/s restantes

― Meu Deus!, bem te dizia que esta família de badernas e turgimões não cessava os malfazeres… Deixa-me passar para avisar o Senhor! É urgente, uma calamidade está prestes a suceder…

― Continuas impertinente, como sempre. Já te avisei que não se invoca o Senhor em vão. E não o vais avocar agora. Hoje é sábado e Ele está a descansar… Que se passa?!

― Abraão, outra vez; mais as urdimaças dos seus patrícios… Vi-o agora a subir ao monte Moriá.

― E qual o problema? Vai adorar o Senhor…

― Vai, vai… Deixou o jumento e dois servos no sopé. Só o acompanha o seu filho Isaac. E não lhe vi nenhum cordeiro ou animália que se parecesse.

― Seguirá para simples adoração…

― Pois, pois… levando na mão utensílios de fogo e um cutelo, mais Isaac arcando com um carrego de lenha às costas.

― De facto, é estranho…

scenery of white clouds

― Estranho e muito mais que isso. O pequeno também quis saber onde estava a vítima para o holocausto… Abraão respondeu-lhe que Deus o proviria no cimo do monte. E que eu saiba não fomos mandatados hoje para enviar um qualquer animal até Moriá.

―Deus conhecerá, por certo, aquilo que segue no interior do coração de Abraão… Descansa que amanhã o Senhor, na sua omnisciência e omnipotência, esclarecerá isto…

―Não há tempo. Temo uma tragédia… Lembras-te do caso do poço de Bercheba?

― Daquela querela entre Abraão e os servos de Abimélec, rei de Guerar?

― Sim…

― Ficou resolvido. O rei deu razão a Abraão e entregou-lhe o poço. E tanto ficou esse rei satisfeito que com ele estabeleceu uma aliança, depois de Abraão lhe ter oferecido sete cordeiros.

― Aquilo pareceu-me mais um suborno… Ou uma coacção. Abimeléc até disse que nunca soubera de poço algum escavado por Abraão… Desde o episódio com Sara que este rei lhe tem um temor de morte.

― O rapto da mulher de Abraão clamava castigo…

― Qual rapto?! Abimeléc apenas a recolheu no seu palácio. Abraão é que lhe mentiu, ao dizer que Sara era apenas sua irmã. O rei nem sequer a desonrou… Também, quem é que deseja uma mulher de cem anos?

― Abraão não mentiu: Sara também é sua meia-irmã.

― Eu já nem quero discutir essa nojosa questão da consanguinidade. Sei apenas que foi a segunda vez que Abraão usou esse expediente em seu proveito. E, tal como já sucedera no Egipto, Deus andou depois a mandar castigos, e Abraão a encher-se de prebendas à laia de indemnizações. Com Abimeléc recebeu ovelhas, bois, servos e servas, mais ainda mil moedas de prata. E do faraó também muito amealhou com essa trampolinice.

mountain cliff photography

― Manténs a tua impertinência… Mas afinal que têm a ver esses casos com a subida de Abraão ao monte acompanhado do seu filho?

― Tem tudo. Lembras-te também de Ismael e de Agar?

― Tiras-me a paciência…

― Paciente sou eu… padecente diria mesmo, que nos últimos anos rodopio numa fona à conta desta disfuncional família que caiu no goto do Senhor… Quem é que andou à procura de Agar, por campos espinhosos e desertos rochosos, depois de ter sido humilhada por Sara? Quem teve de arrazoar para convencê-la a regressar? Tive de lhe jurar que o seu futuro rebento seria como um cavalo selvagem entre os homens, e que a sua mão erguer-se-ia contra todos, que a mão de todos erguer-se-ia contra ele, mas que ele colocaria a sua tenda em frente de todos os seus irmãos… Enfim…

― Essa escrava egípcia foi insolente com a sua senhora, olhando-a com desdém após engravidar de Abraão. Mereceu a reprimenda.

― Ainda hoje penso que razão teve Deus para não ter curado a esterilidade de Sara mais cedo… Tinha nascido apenas Isaac; e Ismael, não existindo, não era tratado como foi.

―São insondáveis os desígnios do Senhor…

―Tão insondáveis são que nem Ele os entende… Acho patética aquela nossa viagem, com Ele, até ao Carvalho de Mambré, para anunciar que Sara geraria um filho de Abraão… Salvaram-se os pães, a manteiga, o leite e o vitelo que nos ofertaram, que de facto estavam uma delícia…

― A nossa missão era outra, se bem sabes: descer até Sodoma e Gomorra para conhecer in loco se a conduta indecorosa daqueles povos correspondia ao brado que chegara aos ouvidos do Senhor. E para salvar Lot, o sobrinho de Abraão, e sua família…

― E que rica missão a nossa… Se Deus é omnisciente, bem saberia que era tudo verdade. Evitava-nos aqueles apertos. Não fossem as nossas artes para cegar aquela turbamulta que estava arrombando a porta da casa de Lot e andaríamos agora escarranchados…  E aquilo que Deus fez à mulher de Lot, nas portas do Sodoma, não se compreende…

the sun is shining through the clouds in the sky

― Eu avisei todos para que não olhassem para trás quando começasse a cair a chuva de enxofre e fogo. Deus viu que ela não cumpriu e transformou-a em estátua de sal. A sua decisão é soberana e inapelável.

― Castigou severamente uma mera curiosidade, tão típica da mente feminina. E depois nada fez quando as duas filhas de Lot, vendo o pai viúvo, o embriagaram duas noites seguidas para, cada uma, engravidar dele. Isto não cabe na cabeça de ninguém… Coitados dos moabitas e dos amonitas que nasceram de tão maquiavélico incesto.

― Já te avisei para não usares expressões que só fazem sentido daqui a uns milhares de anos. Niccolo Machiavelli apenas nascerá ao décimo quinto século depois da ida do filho de Deus à Terra, e a sua obra «O Príncipe» somente verá a luz do dia no ano de 1532 dessa era… E continuas a tergiversar: afinal que ligação há entre os filisteus que perderam o poço, Agar e Ismael, e os teus receios sobre a ida de Abraão e Isaac ao monte Moriá?

― Tudo, como já te disse… As injustiças fermentaram uma união para a vingança. Depois de Deus ter autorizado a expulsão definitiva de Agar e do seu filho, por capricho de Sara durante aquele banquete em honra de Isaac, alguns filisteus têm visitado o jovem Ismael no deserto de Paran… Ficaram chocados por Abraão ter abandonado aquele filho à sua sorte, apenas com um pão e um odre de água.

― Deus foi compassivo com Agar e Ismael. Deu-lhes água uns dias depois… Protegeu o menino e prometeu fazer dele um grande povo.

―De promessas divinas já ando eu cheio. Quantas vezes já Ele prometeu a Abraão mundos e fundos? E, ao mesmo tempo, anuncia-lhe desgraças sem fim, castiga a torto e a direito, provoca infaustos sucessos, completamente evitáveis.

― Continuas assim e ainda vais fazer companhia a Lúcifer… A tua sorte é ser a tua queda a minha queda, porque por ti pus as minhas asas no fogo. E agora já receio vir a ser chamuscado… Ainda bem que Deus só perscruta as vozes e pensamentos humanos, se não estávamos feitos… Mas agora deixaste-me apreensivo: que andaram os filisteus a maquinar com Ismael?!

― Isso não sei, porque quando me abeirei deles por algumas vezes, cessaram sempre as conversações. Ignoro se Ismael estava disposto para uma qualquer conjura. Mas, já quanto aos filisteus, ontem à noite, ao passear pela brisa da noite, encontrei alguns à janela do quarto de Abraão…

‘O sacrifício de Isaac’, pintura de Caravaggio exposta na Galleria degli Uffizi, em Florença.

― E que faziam lá?! Diz-me!

―Ah! Finalmente ouves-me, não é?… Estavam malvestidos com uns trapos brancos e umas rudimentares álulas… Penso que se queriam parecer connosco… Ouvi-os sussurrar várias vezes para dentro: «Abraão, Abraão: pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à região de Moriá, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que Eu te indicar».

― O quê???!!! Estás a mofar…

― Antes fosse. Ontem não liguei àquela palhaçada… Nem pensei que Abraão os tivesse ouvido. Só agora, quando o vi a subir o Moriá com o filho, é que fiquei temeroso.

― Credo! Meu Deus, que fazemos agora?

― Pois, era mesmo para isso que eu vinha aqui. Para Lhe perguntar: «Meu Deus, que fazemos agora?»

―Não O vou incomodar. Ele tem mau acordar… Deixa-me ver uma coisa…

― Abrenúncio!!! O jovem Isaac está já preso sobre o altar, com lenha por debaixo… Benza-deus, Abraão brande um cutelo… Rápido, agarra naquele carneiro, voa até ali e prende-o pelos chifres ao silvado… Abraão! Abraão! Que fazes?!


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