RUI ARAÚJO: CADERNO DOS MUNDOS

Pena suspensa: o homem que queria ser lavrador

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Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 20 de Agosto de 1988, sobre António, 34 anos, profissão desconhecida.


Foto: Rui Araújo

— Tem 34 anos e nunca trabalhou?

Trabalhei uma vez já lá vão muitos anos. Muito mais … já não me lembro.

— E como é que vive?

— Vivo mal. Não tenho alimentação e vivo mal.

— Como é que vai arranjando o suficiente para comer?

— Ando no… lixo. Tenho de apanhar umas coisas no lixo. Nos supermercados.

— E já alguma vez tentou arranjar emprego?

Não. Não me interessa derivado ao ponto que já tenho…

António, 34 anos, solteiro, profissão desconhecida — desde que veio ao mundo apenas trabalhou meia dúzia de dias na faina da pesca —, antecedentes criminais banais. Preso várias vezes por vadiagem, furto e agressão a tiro. Pelo menos estas. Desta vez, veio parar ao Tribunal de Polícia por estar a perturbar o trânsito. Quando o agente da PSP o interpelou, António, mal-encarado e porventura bem bebido, puxou de uma navalha e tentou sangrar o polícia como quem sangra um porco.

handcuff, black silver, caught

Ainda bastante «entorpecido» o rapaz conta a história.

Apanharam-me com um saco de lixo duas vezes e levaram-me à esquadra.

E desta vez qual á a história?

Desta vez? Ameacei o polícia. Estava assim um bocadinho bebido…

Quem é que estava bebido?

Eu.

E ameaçou-o com quê?

Com uma navalha.

Mas ameaçou o agente porquê?

— Estava um bocadinho bebido. Deu-me na vida… Deu-me na vida e ameacei.

E a seguir foi conduzido à esquadra?

— Fui.

O que é que aconteceu lá?

Deram-me pancada. Por onde calhou. Mas não me bateram muito… E depois trouxeram-me para aqui.

white painted wall

E qual é a moral desta história?

A moral desta história é derivado… Tenho mais coisas, mas não me rima contar.

Que coisas?

Coisas… Coisas que eu faço por aí na vida. Não me rima para falar desta maneira…

E agora? O que vai fazer?

Vou esperar até ver o que me vai acontecer.

E vai acontecer o quê?

Talvez ficar preso. Ou ir para a vida…

Qual é o seu sonho?

Ser lavrador!

Porquê?

Tem gente na vida. Tem gente na vida…

Não chegou a haver julgamento. Durante o interrogatório surgiram algumas dúvidas quanto à integridade mental do réu. O juiz decidiu restituir António à liberdade. Os autos vão agora ser remetidos para os juízos correccionais de Lisboa. Julgamento daqui a uns meses. Depois de António ser visto por um psiquiatra.


Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 20 de Agosto de 1988.


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