Pena suspensa: o homem que queria ser lavrador

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Rui Araújo|03/10/2024

Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 20 de Agosto de 1988, sobre António, 34 anos, profissão desconhecida.


Foto: Rui Araújo

— Tem 34 anos e nunca trabalhou?

Trabalhei uma vez já lá vão muitos anos. Muito mais … já não me lembro.

— E como é que vive?

— Vivo mal. Não tenho alimentação e vivo mal.

— Como é que vai arranjando o suficiente para comer?

— Ando no… lixo. Tenho de apanhar umas coisas no lixo. Nos supermercados.

— E já alguma vez tentou arranjar emprego?

Não. Não me interessa derivado ao ponto que já tenho…

António, 34 anos, solteiro, profissão desconhecida — desde que veio ao mundo apenas trabalhou meia dúzia de dias na faina da pesca —, antecedentes criminais banais. Preso várias vezes por vadiagem, furto e agressão a tiro. Pelo menos estas. Desta vez, veio parar ao Tribunal de Polícia por estar a perturbar o trânsito. Quando o agente da PSP o interpelou, António, mal-encarado e porventura bem bebido, puxou de uma navalha e tentou sangrar o polícia como quem sangra um porco.

handcuff, black silver, caught

Ainda bastante «entorpecido» o rapaz conta a história.

Apanharam-me com um saco de lixo duas vezes e levaram-me à esquadra.

E desta vez qual á a história?

Desta vez? Ameacei o polícia. Estava assim um bocadinho bebido…

Quem é que estava bebido?

Eu.

E ameaçou-o com quê?

Com uma navalha.

Mas ameaçou o agente porquê?

— Estava um bocadinho bebido. Deu-me na vida… Deu-me na vida e ameacei.

E a seguir foi conduzido à esquadra?

— Fui.

O que é que aconteceu lá?

Deram-me pancada. Por onde calhou. Mas não me bateram muito… E depois trouxeram-me para aqui.

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E qual é a moral desta história?

A moral desta história é derivado… Tenho mais coisas, mas não me rima contar.

Que coisas?

Coisas… Coisas que eu faço por aí na vida. Não me rima para falar desta maneira…

E agora? O que vai fazer?

Vou esperar até ver o que me vai acontecer.

E vai acontecer o quê?

Talvez ficar preso. Ou ir para a vida…

Qual é o seu sonho?

Ser lavrador!

Porquê?

Tem gente na vida. Tem gente na vida…

Não chegou a haver julgamento. Durante o interrogatório surgiram algumas dúvidas quanto à integridade mental do réu. O juiz decidiu restituir António à liberdade. Os autos vão agora ser remetidos para os juízos correccionais de Lisboa. Julgamento daqui a uns meses. Depois de António ser visto por um psiquiatra.


Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 20 de Agosto de 1988.


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