correio mercantil

Que restará das literárias flatulências quando tudo arder?

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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai o prefácio de Valter Hugo Mãe na edição de ‘Os Lusíadas’ em comemoração aos 500 anos de Luís de Camões.


Ah, vaidade! Essa busca pela validação externa, que nos infla o peito, como se fôssemos balões subindo como Ícaro, embora a terra e seus torrões, e também o ridículo, e não o abrasador sol, nos puxe sempre, nestes acasos e preparos, pela ponta dos pés, cruel e irremediavelmente. Razão tinha Matias Aires, com o seu olhar perspicaz, quando desnudou a Humanidade, não poupando um único felicíssimo vaidoso. Por mais que nos embelezemos, com as roupas mais finas, com as cortesias mais elegantes, com as palavras mais eruditas, somos, no fundo, pouco mais que pavões sem plumas, cacarejando orgulhosos no meio de um chavascal charco.

Bem sei que, a muitos, é a vaidade que os move, que os faz crer no reconhecimento dos seus conterrâneos e na imortalidade quando estiverem na terra, ou em cinzas. Homem sábio, esse Matias Aires que, apesar de nascido na entediante capitania de São Paulo, já pressentia as risadas que damos diante do espelho, nos ensinou que buscamos incessantemente o aplauso, como se o aplauso dos outros nos convertesse em alguma coisa mais nobre do que o pó ao qual regressaremos. O homem, afinal, é vaidoso até quando finge ser modesto, tal como eu mesmo, que agora declamo sobre vaidade, fingindo estar acima dela – e, no entanto, me comprazendo do exercício da palavra.

close up photography of blue peacock painting

Mas se até eu – um escriba póstumo que só se deu a conhecer quando morto – não estou imune à vaidade, pelo menos jamais poderei ser acusado de superciliosa empáfia, porque já se me tinha ido as sobrancelhas quando à estampa deram as minhas póstumas memórias.

Ah, mas os escribas vivos! Esses, esses sempre ávidos, esses rastejantes que, não satisfeitos em tropeçar nas próprias pernas, ainda insistem em escalar os ombros dos cadáveres alheios. São criaturas, isso admito, afáveis mas petulantes, quase comoventes, não fosse o espectáculo tão grotesco, tão patético, que nos oferecerem, e que se assemelham àquele bufão de feira insistindo em piruetas para um público que nem sequer é de maus costumes.

Enfim, eu, que morto estou, sim, meus senhores e senhoras donzelas, defunto com todas as letras e os pingos nos is, vejo-me agora compelido a escrever sobre os vivos que tentam parasitar a fama dos mortos, quais carraças literárias agarradas ao osso do sucesso póstumo.

Eu, Brás Cubas, que só permiti a minha própria escrita sobre mim mesmo após a conveniente travessia do Aqueronte, ergo-me agora do túmulo, depois de muito capim ter já comido pela raiz, para emitir um aviso. Cuidai-vos, vivos!, cuidai-vos e não vos atreveis jamais a tomar o meu brilho literário para iluminar as vossas estreitas existências, incluindo literárias. E ouso dizer-vos: aquele que se arriscar a tal ofício, receberá mais que um simples peteleco deste espectro insolente que daqui vos fala. Ah, sim! Ficará esse impertinente desditoso com verrugas nos pés, que nem o Miguel Vila Pouca, por muito que José Gabriel Quaresma interceda, será capaz de as arrancar com cinzel, espátula ou qualquer engenhoca do século XXI. Ficará o malandro a coçar os pés enquanto tenta, em desespero, alinhar meia dúzia de ideias que valham a tinta que nelas se gastará.

Convenhamos, porém, haver algo mais trágico que um simples escritor medíocre: é o bajulador que, com ar grave, tenta elevar-se ao fazer encómios aos maiores gigantes mortos. Ah, como é risível a figura de quem se espreme em exaltações banais, na esperança vã de que, ao tecer loas ao imortal, consiga ele próprio imortalizar-se. Estes medíocres são incapazes do silêncio, de aceitarem ser varridos pelo esquecimento de um modo discreto. Não! Antes, querem empoleirar-se nas costas de um Camões, esperando que o grande Luís, já também sem o olho que lhe restou, os veja, e que, ao contrário do Herberto Helder (poeta pouco dado a abrir uma porta), grite da janela: só aceito o Valter Hugo Mãe a dar-me a mão para eu deixar de ser anão!

[devo antes escrever valter hugo mãe?]

Valter Hugo Mãe, vestido e com barbas, antes de prefaciar ‘Os Lusíadas’.

Ah, dizem-me que o bom do senhor Lemos, valter hugo de nominata, antes de se apodar da mãe (ou do mãe) é escritor de renome, premiado mesmo com o Prémio Saramago – uma láurea que, presumo, serve para enfeitar prateleiras e envaidecer almas pequenas –, e tornou-se famosos por terras de Pindorama desde que, em 2011, chorou em Paraty e causou cachoeira de lágrimas numa plateia. Ainda pensei, de início, que ele tinha cantado, mas afinal, não, só leu mesmo uma carta.

Confesso-vos que eu, defunto curioso, ou curioso defunto, ainda tentei mas não consegui passar da terceira página de qualquer obra por ele parida. Não foi sequer por estilo, mas por paciência. As suas palavras deslizam diante das minhas desidratadas órbitas, e tudo aquilo me parece um exercício de banalidades. Armado em original, forçando uma profundidade que mal passa de um poço seco, onde nem a mais mísera gota de talento faz eco.

E o que dizer da sua pose estudada, daquele culto da auto-imagem tão próprio de quem se acha enigmático e especial? O homem fotografa-se em todas as posições possíveis e imaginárias: ora encarando o infinito, ora deitado no chão como um mártir moderno, ora – pasme-se! – nu. Sim, nu, como se a nudez lhe trouxesse alguma dignidade literária. Ainda que prefira a nudez à roupa que o cobre de clichés, nem nu lhe encontro graça. O que hei-de inventar?

Mas o ridículo (ou a estupidez, tanto faz), como dizia Einstein, segue no infinito, e gostava de saber quem foi a besta que julgou que valter hugo mãe deveria prefaciar a edição comemorativa de ‘Os Lusíadas’ a pretexto dos 500 anos do nascimento do Camões. Ah, só esta ideia bastaria para o grande épico arrancar o segundo olho e atirar-se ao Tejo, em desespero. Como pôde a Porto Editora, em sua suposta sapiência, permitir tamanho desaforo? Leio o dito prefácio, em sete parágrafos – imaginem se fosse em dez cantos – e nem sei por onde começar.

Estátua de Luís de Camões no Gabinete Real Gabinete Português de Leitura, no Rio de Janeiro.

Com toda a sua pose, vem ele nos falar de um “espaço imaterial” que nos implica profundamente. Ora, senhor mãe, eu pergunto: quem, neste reino dos vivos e dos mortos, pode levar a sério tamanha verborragia? Espaço imaterial, sim, e o que mais? A nuvem dos sonhos? O sopro etéreo da existência? Tantas palavras ocas, soltas ao vento, que não se agarram a nada, mas que, no entanto, aspiram a ser algo profundo, algo “inesgotável”, segundo o próprio.

Ah, prezado valter hugo mãe, sois um hábil artífice de frases de efeito, um ourives de máximas ocas, um filósofo das grandiosas metáforas vazias, um alquimista de balofas paremias, um maestro na sinfonia de ampulosas inanidades! Nem sei se a tua pena desliza sobre o papel ou se, de facto, pensas que alças voos tão altos que nós, reles mortais, nos contentamos em admirar a tua sombra.

Vejamos: escreves que “domar o Adamastor e contar como se domou o Adamastor podem ser grandezas semelhantes.” Ah, sim, claro! Domar monstros míticos e tagarelar sobre isso devem, sem dúvida, estar no mesmo patamar de grandeza! Afinal, nada mais audaz do que vencer uma tempestade atlântica e, logo em seguida, puxar uma cadeira e narrar o feito como quem descreve uma tranquila manhã de domingo no parque. Senti-me quase tentado a domar o meu Adamastor pessoal – quem sabe aquela conta de padaria que nunca quitei.

E, sobre a arte, esse cofre de tesouros que “quanto por mais gentes se distribui, mais rica se torna”! Oh, valter, valter, que prodigiosa economia inventaste! E eu que, por ignorância, acreditava que o valor da arte residia na sua singularidade, na sua beleza, na sua raridade, sou agora educado por ti! Que fortuna maior há do que ver a arte convertida em moeda corrente, que circula entre os dedos de todos, multiplicando-se como os pães da fábula bíblica? A cada novo olhar, eis uma pepita de ouro a surgir, como por mágica!

Camões, coitado, que o diga – a sua epopeia já deve estar mais rica do que qualquer baú de tesouros do Ali Babá, embora tenha ele morrido na penúria. Ai, Portugal, como bem gritou o Almada Negreiros, a pátria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões! E assim eis-te, valter, prestes a sacar uns cobres por um reles prefácio de sete parágrafos sobre quem escreveu dez cantos em perfeitos versos decassílabos heróicos com oitavas-rimas. Meu sacripanta!

Valter Hugo Mãe, vestido e sem barbas, antes de prefaciar ‘Os Lusíadas’.

Só te perdoo porque, enfim, nos ofereces pérolas de basófia: “É preciso amar Camões como um diamante que nasce a partir das carnes vivas e mortas, do que floriu e do que se viu deitado a escombros.” Ah, que imagem pungente! Um diamante brotando de carnes mortas e vivas, um verdadeiro milagre da Natureza! Talvez seja um novo ramo da Geologia, que desconheço, em que as pedras preciosas emergem não de minas profundas ou de riachas obscuros, mas de necrotérios e de jardins floridos, ou de um talho e de um curral de bácoros.

Quem diria! Afinal, amar Camões está já longe de ser uma questão de gosto literário, mas antes um exercício de espeleologia emocional, onde escavamos os escombros do passado em busca da jóia perdida entre cadáveres poéticos. Só me pergunto, ainda, se o Camões, o bom do zarolho, lá nas suas eternas Ilhas dos Amores, ao ouvir tudo isso, solta um riso sarcástico ou um suspiro cansado. Enfim, valter hugo mãe, tu que julgas domar a língua do Vate com a mesma leveza com que outros controlam mostrengos, escreves como quem monta fogos de artifício: brilhas por instantes, deixas o rastro no ar, mas depois, ah, depois, parafraseando Sá de Miranda, que farei das tuas literárias flatulências quando tudo arder?

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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