correio mercantil

Francisco, que subiu a partir do berço pensando ser do braço

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Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. Pareceu assim oportuno ao PÁGINA UM, no contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais. Desta vez, o piparote de Brás Cubas vai para Francisco Pedro Balsemão, no decurso da sua entrevista na SIC.


As senhoras leitoras e os senhores leitores certamente já se depararam com figuras de incomum bravura, invulgar destreza e inabalável audácia, e que, sagazes e bem capazes, superam as agruras mais terríficas e os mais temíveis obstáculos, contrariando a má sina que sempre os quis arredar do sucesso.

Está esse vosso mundo pejado desses heróis, alguns aqui ao meu lado, que, arremessados contra o rochedo da adversidade, se soergueram, depois, altivos e, claro, triunfantes.

Não me é agora mister enaltecer tais personagens dignas dos versos de Camões, porque, recentemente, na ocidental praia Lusitana, ali nos arredores da Quinta da Marinha, se agigantou um espécime mui nobre de fauna humana que coloca rasteiros os voos das águias.

“De parcas vestes e incomuns percursos”, poderá algum ingrato murmurar à entrada, “será, porventura, este seu, ou nosso, herói oriundo de estirpe modesta?”. Ah, se tal fosse o caso, a história seria menos trágico-cómica e somente heróica!

Não. Nem sempre as proezas se medem pela superação do braço; também há o capricho do berço, embora o nosso herói, que já agora posso anunciar-vos a nominata – Francisco –, se arraste mais hoje cavalgando um império, outrora brilhante nos fastos da imprensa nacional, em espasmos de uma falência semi-escondida por cortinas de retórica.

Mas que importa o sol, a treva, a sombra – como clamava o meu patrício Augusto dos Anjos, que se finou aos 30 anos.

Ou então, como gritava o Álvaro de Campos, alias Fernando Pessoa, na sua Ode Triunfal:

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto

Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,

Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?

Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,

O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,

O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,

O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes

Interessa sim saber que Francisco, meu caro leitor, nasceu envolto nas alvas sedas de uma cuna que não soube senão exalar opulência. Desde a mais tenra idade, o rebento do grande barão dos media lusos, fugaz primeiro líder de um governo da Nação, teve a primazia de comungar com o mundo através de cruzeiros exóticos e outras viagens oníricas que lhe moldaram, por certo, um espírito cosmopolita. “Ainda me lembro de Gilbraltar, do Estreito de Messina e de Corfu”, recorda-nos o jovem herdeiro, qual Ulisses lusitano, parafraseando Homero e a encher o peito com reminiscências dos seis anos de idade, quando a Ryanair, a EasyJet e a Vuelling não faziam ainda voos ao preço da uva mijona, e ainda nos tempos em que havia gentes de Trás-os-Montes que nunca tinham visto o mar.

Disso, porém, convenhamos, não é já atributo invejável, nem guardar berlindes em casa, mas, digam-me, desafio-vos: que outras empresas têm a ventura de acolher um líder tão sabiamente lapidado pelo oráculo das MTV Awards, e que, aos treze anitos, desfaleceu ante a imagem mitológica de Kurt Cobain? Não percebi bem se foi por essas alturas que teve ele uma epifania, não para dedilhar guitarra, ou snifar coca, mas para ser jornalista, iludido por testes psicotécnicos. Ah, inocente embriaguez dos infantes!

Mas a vida, meus amigos, qual senhora austera, encarregou-se de lhe mostrar outros caminhos – “mais pragmáticos”, como assim descreve o infante Dom Francisco. Na verdade, os tais pragmáticos descaminhos levaram-no até à liderança de um império que, tal qual o de D. Sebastião, há muito se perdeu na neblina do infortúnio. Em que, pois, se distingue este CEO de outros tantos figurões cuja presença é requerida em jantares de gala e conferências desinteressantes?

Em nada. O segredo, revelado na entrevista ao seu canal televisivo, com o pudor de uma aparente confissão, é uma a rara combinação entre a ‘privilegiatura honesta’ e a ‘humildade aristocrática’, atributo daqueles que, alcandorados à torre de marfim, acreditam piamente que o fizeram pelo seu valor e não pelos genes.

O meu leitor mais perspicaz poderia aqui questionar-se: “Mas como, caro Brás Cubas, se explica este divórcio entre vocação e realidade? Como se passa de um sonhado jornalista, que nunca se exercitou, para a liderança de um grupo de media outrora imponente, regido ao som de violinos para abafar o afundanço?”.

Aí reside o espírito trágico-cómico, que, convenhamos, até engrandece a narrativa do CEO Francisco: é que ele, na sua irremediável cegueira, nunca verdadeiramente se afastou da verve jornalística. “Sempre quis ser jornalista”, insiste, qual mantra de um desejo inatingível por malignas forças, como se as marés do destino, guiadas pelo sopro paternal, o houvessem deitado à deriva numa inóspita e hostil praia, ou na carreira 1706 que sai de Alfornelos às 04h56 em direcção à Avenida da Liberdade para limpar escritórios, tendo ainda de permeio que mudar para a 746, sem esquecer o tempo para preparar o aconchego de mantimentos na marmita para a criançada dejejuar no Agrupamento de Escolas Fernando Namora, na Brandoa.

Enfim, em vez da pena afiada do jornalista, coube ao Francisco a desgraça do Excel e da acta, do lay-off e da alienação de activos, da negociação de ‘media partners’ e de contratos comerciais de mercantilização do jornalismo, como quem, a meio de uma peça shakespeariana, se vê obrigado a trocar a falange do herói pela figura patética do bufão.

Ah, loucura! Na verdade, o nosso herói há muito deixou de se ver ao espelho, enredado que está numa presunção tão ridiculamente inflada que o leva a citar antepassados remotos e fábulas dinásticas. “Não foi por ser filho de quem sou que cheguei a presidente”, reitera o pobre diabo com ar grave e punhos cerrados – estou claramente a exagerar na pose, que um herói sempre é contido –, como quem ousa desafiar o bom senso e a evidência.

Seria risível se não fosse absolutamente patético. Não fosse, de facto, filho do outro Francisco, e este nosso Francisco nunca teria ao seu dispor a confortável poltrona da falência para vergar as costas.

Ah, mas não são apenas a desmesura e a soberba que iluminam os nossos risos irónicos; há também a ignorância de um mérito desmerecido, um despudor próprio dos filhos de património que, julgando ter alçado o trono por força de braço, não se enxergam como caricaturas do privilégio. Tem ele agora o Expresso, esse emblema de outra era, subjugado agora ao vil e viscoso prato de lentilhas – vendendo a primogenitura do jornalismo por lugar em comendas menores, por contratos publicitários de conteúdo fabricado, e, sempre, com uma genuflexão reverente ao poder. E tem ele agora a SIC, a nau errante a vagar no pantanoso oceano das audiências, mal distinguindo a esfera do entretenimento do abismo do sensacionalismo rasteiro.

Francisco, qual moderno Polichinelo, a quem nada é vetado, fez-se grande em bravatas menores; acariciou o ego com os louros do pai; gabou-se de conquistas que nunca suas foram. No fim, toda a ruína, todo o desconcerto, toda a falência, serão justificadas, por certo, com as palavras certas – um léxico arranjado para iludir o senso comum, uma retórica de negação contínua que só poderia exalar de um homem que aprendeu desde cedo a brincar fora de casa, alheio à dura realidade.

Mas isso sou eu a dizer, porque, entretanto, a mãozinha do Estado está aí para adiar a queda deste decadente império, e para dar oportunidade a que Francisco, embevecido com o reflexo distorcido de virtudes que nunca verdadeiramente teve, ainda se mantenha por alguns anos mais como um Romeu provinciano, crendo-se cosmopolita por ter provado os ralos prazeres de uma discoteca londrina em tempos de juventude.

Triste fim se anuncia, porém, nesta tragicomédia: veremos, um dia, Francisco, o príncipe herdeiro, filho de deuses, sentado numa casa em ruínas, feito CEO por desígnio de sangue e não por tino, cair com estrondo das alturas – não porque tenha tentado alcançar as estrelas, mas porque acreditou, em sua infinita vaidade, que lá residia.

Até breve, e um piparote.

Brás Cubas


N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM em processo de aprovação de registo no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. Quanto ao nome do autor (Brás Cubas), será o pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira nestas crónicas, constituindo apenas uma humilde homenagem a Machado de Assis e ao seu personagem. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou sarcástico.


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