Recensão: O dia que mudou Israel

Maniqueísmos, ou o Médio Oriente sob viés

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 17, 2024


Categoria: Cultura

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Título

O dia que mudou Israel

Autora

HELENA FERRO DE GOUVEIA

Editora

Oficina do Livro (Setembro de 2024)

Cotação

6/20

Recensão

Este livro deve começar a ser lido a partir das duas últimas páginas de texto, excluindo as derradeiras, onde consta uma bibliografia de ‘trazer por casa’, sob a forma de fontes (listagem de órgãos de comunicação social) e de ‘Estudos’, com uma dezena de referências bibliográficas de obras, todas, sem excepção, publicadas entre 2020 e 2023.

Bom, em abono da verdade, perante essa imagem de pedantismo – elencar fontes que, pela exiguidade, mostram afinal uma parca investigação por parte do(a) autor(a) –, talvez bastassem essas duas páginas de bibliografia para nos decidirmos a ler (ou não) este ‘O dia que mudou Israel’, de Helena Ferro de Gouveia.

Mas peguemos no texto das tais últimas duas páginas desta obra, que tem a grande vantagem de ser curta. Helena Ferro de Gouveia termina escrevendo: “Israel não é culpado de tentar obstinadamente sobreviver”. E isto depois de, em parágrafos anteriores, já ter manifestado que “a indignidade humana alcançou os israelitas ali, na sua fronteira, sem fuga possível” e que o conflito do Médio Oriente “também é a dor dos palestinianos”, mas para logo a seguir, de uma forma simplista, e ao melhor estilo do ‘Omo lava mais branco’, acrescentar, em português algo macarrónico: “As crianças inocentes de Gaza, também elas vítimas do Hamas.”

Livros como este, o de Helena Ferro de Gouveia, ‘nascem’ não para informar ou esclarecer, ou ainda para reflectir, mas sim para emocionar, expondo o sofrimento de uma das partes no conflito do Médio Oriente, e assim justificar acções ou reacções. É a tradicional obra de propaganda de um dos lados com uma visão maniqueísta, algo problemático para quem se orgulha dos anos de jornalista e de uma suposta mundividência por já se ter trabalhado “em mais de cinquenta países em quatro continentes”. Esta visão, em que se retrata um lado como vítima absoluta e o outro como opressor incontornável, é pouco compatível com a complexidade histórica e política do conflito israelita-palestiniano, um dos mais longos e intrincados do Mundo contemporâneo, mas sobre o qual a autora passa intencionalmente ao lado.

Mostra-se inegável que o ataque do Hamas em 7 de Outubro do ano passado foi de uma brutalidade atroz, e os relatos de Helena Ferro de Gouveia captam essa crueldade através de uma linguagem carregada de adjetivos fortes, descrevendo a dor dos sobreviventes e a desolação dos familiares das vítimas. Esses detalhes crus e directos até poderiam ser relevantes como testemunho, mas não aparenta ser essa a intenção. Helena Ferro de Gouveia usa as páginas do livro para, expondo a dor, justificar uma retaliação insana. O princípio judaico de "olho por olho", que muitos já consideram desumano, tem estado rapidamente a ser ultrapassado por uma espiral de vingança, onde a resposta israelita se traduziu numa carnificina contínua, atingindo alvos civis, e ampliando ainda mais o ciclo de violência.

Não se pode ignorar o sofrimento do povo israelita, especialmente daqueles que foram alvo de ataques terroristas, assim como é impossível olhar para a realidade dos palestinianos sem reconhecer as suas décadas de marginalização, perda de território e direitos básicos. Quando se descreve apenas uma parte da equação, seja ela qual for, perde-se a capacidade de promover uma verdadeira reflexão sobre a coabitação desejável entre povos, culturas e religiões em tempos que não se querem obscuros. E é exactamente aqui que o discurso de Helena Ferro de Gouveia se torna limitado. A sua liberdade para expor a dor israelita, com uma clareza indiscutível, mostra-se necessária, mas, sem a contrapartida de uma análise profunda das razões que alimentam o ódio do outro lado, o resultado acaba por ser um texto enviesado.

No seu prisma sectário, 'O dia que mudou Israle' apenas cumpre, lamentavelmente, uma única função: alimenta as narrativas de uma das facções, ‘massajando’ os seus argumentos e fornecendo combustível para se ver como vítima absoluta ou herói inquestionável. E isso nunca foi bom para a paz. Nem este livro é bom sequer para ser lido, excepto para quem apreciar a visão de Helena Ferro de Gouveia. Para esses sim, recomenda-se a leitura, assumindo-se que, para esses, à classificação atribuída nesta recensão até se deverá acrescentar um 1 na posição das dezenas.  

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