Ordem dos Médicos assume contabilidade paralela em campanha solidária durante a pandemia

Ministra da Saúde e deputado do PSD foram “fiéis depositários” de donativos de farmacêuticas

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por Pedro Almeida Vieira // Outubro 17, 2024


Categoria: Exame

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Os dois últimos relatórios e contas da Ordem dos Médicos, recentemente divulgados, revelam que a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e um dos vice-presidentes da bancada parlamentar do PSD, Miguel Guimarães, agiram como “fiéis depositários” de uma conta solidária durante a pandemia que envolveu 1,4 milhões de euros, ‘engrossada’ quase na sua totalidade com dinheiros de farmacêuticas. Os dois políticos agiram durante os respectivos mandatos na Ordem dos Farmacêuticos e dos Médicos, respectivamente, sobretudo entre 2020 e 2022. Além de ficar, assim, assumido que houve contabilidade paralela, com fugas ao Fisco de permeio, o expediente de “fiel depositário” é completamente desajustado à gestão de donativos e coloca mesmo sérias suspeitas de fraude com eventuais responsabilidades civis e criminais, uma vez que inexistem sequer documentos formais que mandatassem Ana Paula Martins e Miguel Guimarães para essa função. Além da actual ministra e do deputado, um terceiro titular da conta foi Eurico Castro Alves, como representante das farmacêuticas (APIFARMA), que recentemente foi anfitrião das férias de Luís Montenegro no Brasil.


A Ordem dos Médicos assume, nos seus dois últimos relatórios e contas, que houve contabilidade paralela na campanha ‘Todos por quem cuida’, uma polémica iniciativa de solidariedade durante a pandemia, protagonizada pela actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, e pelo vice-presidente do Grupo Parlamentar do PSD Miguel Guimarães. Então bastonários da Ordem dos Farmacêuticos e dos Médicos, respectivamente, Martins e Guimarães abriram pessoalmente uma conta bancária, com Eurico Castro Alves – actual presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos e ‘anfitrião’ das recentes férias de Luís Montenegro no Brasil –, para gerir donativos de cerca de 1,4 milhões de euros, com a quase totalidade da verba a ser proveniente de empresas farmacêuticas. A esmagadora maioria destas verbas não foi sequer comunicada no Portal da Transparência e Publicidade, gerida pelo Infarmed, e não foi pago Imposto do Selo, como determina a lei.

Numa longa investigação do PÁGINA UM – apenas possível após o Tribunal Administrativo de Lisboa ter permitido o acesso aos documentos operacionais e contabilísticos desta campanha que visava distribuir sobretudo equipamentos de protecção individual –, já se tinha detectado que a conta aberta não era titulada por nenhuma das duas ordens profissionais, mas sim por Miguel Guimarães (primeiro titular), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. E, além de não terem pagado Imposto do Selo – ou seja, cometeu-se uma fuga ao Fisco, no valor estimado de cerca de 125 mil euros, 10% das doações acima de 500 euros –, também permitiram que uma parte substancial das facturas dessem entrada na Ordem dos Médicos, embora os pagamentos tivessem sido consumados através da conta particular, indiciando assim possibilidades de criação de um ‘saco azul’. Houve, além disso, um vasto conjunto de declarações falsas para obtenção de benefícios fiscais ilegítimos por parte de diversas farmacêuticas.

Ana Paula Martins e Migue Guimarães foram co-fiéis depositários em campanha solidária com contabilidade paralela com donativos provenientes sobretudo de farmacêuticas.

Mas agora, e somente com a revelação pública dos relatórios e contas da Ordem dos Médicos dos últimos anos – uma iniciativa reveladora de uma louvável transparência por parte do actual bastonário Carlos Cortes, em contraste com a postura do seu antecessor Miguel Guimarães –, confirmou-se não apenas a existência de contabilidade paralela na campanha ‘Todos por quem cuida’ como terá havido recurso a uma figura jurídica ilegítima e que configura desvio de função com responsabilidade civil e mesmo criminal.

Com efeito, se nos relatórios e contas de 2020 e 2021 – elaborados ainda com Miguel Guimarães como bastonário –, nenhuma referência consta nos anexos sobre a campanha ‘Todos por quem cuida’, não havendo assim sequer sinais da entrada de donativos nas receitas desses anos, já nos relatórios e contas de 2022 e 2023 (da responsabilidade de Carlos Cortes) há uma justificação. E é essa justificação acaba por revelar uma relevante ilegalidade por parte dos ‘gestores’ da conta solidária: Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

De facto, tanto nas contas de 2022 como nas de 2023, já assinadas por Carlos Cortes como bastonário, é apresentada uma nota às demonstrações financeiras, referindo que, depois da abertura da conta da campanha, em Março de 2020, em nome de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Castro Alves, estes “ficaram fiéis depositári[o]s de contribuições financeiras para que, no uso criterioso desses fundos, pudessem, de acordo com as necessidades e prioridades, canalizar para as instituições, profissionais e doentes, material ou bens que consider[assem] essenciais”.

Ora, além desta nota consubstanciar uma contabilidade paralela numa iniciativa que envolveu mais de 1,4 milhões de euros – mesmo sem jamais explicar as razões de terem entrado na Ordem dos Médicos mais de 950 mil euros de facturas, que acabarem por ser pagas por essa conta pessoal, não havendo assim qualquer fluxo de caixa perante a assumpção de gastos –, a figura de “fiel depositário” jamais poderia ser usada nestas circunstâncias.

Trecho da nota sobre a conta solidária nas demonstrações financeiras da Ordem dos Médicos constante no relatório e contas do ano de 2023. Essa nota surge também no relatório e contas de 2022, esta semana disponibilizado no site desta entidade, mas não surge nos relatórios e conta de 2020 e 2021, sob responsabilidade de Miguel Guimarães.

De acordo com vários juristas consultados pelo PÁGINA UM, um ‘fiel depositário” é alguém que, sob superintendência de um tribunal, fica na posse temporária de determinados bens ou objectos que, perante alguma controvérsia ou medida judicial, estejam assim, de alguma forma, sob tutela judicial. Nessas circunstâncias, o “fiel depositário” tem de ser expressamente investido, até para que tome conhecimento, estabelecendo-se os seus deveres, obrigações e direitos no decurso dessa função. Ora, a opção por escolher “fiéis depositários” é temerária para uma simples campanha de solidariedade que envolve a entrada de donativos, que necessita até de autorizações governamentais. No pedido prévio feito ao Ministério da Administração Interna, as duas ordens indicaram a conta solidária criada, mas omitem que os titulares eram pessoas singulares, e nem sequer fazem qualquer menção à existência de quaisquer “fiéis depositários”.

Além disto, aquando da consulta da documentação da campanha ‘Todos por quem cuida’ pelo PÁGINA UM, nunca se detectou qualquer documento que sustente juridicamente a gestão de avultadas verbas, recebidas sobretudo de farmacêuticas, através de “fiéis depositários”. Nem tão-pouco seria tal expectável, porquanto nunca houve qualquer intervenção judicial, mas sim a mera gestão de donativos para a compra de equipamentos para o combate à covid-19. De uma forma prática, a única ‘vantagem’ terá sido criar uma contabilidade paralela.

Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves não poderiam assim assumir as funções de “fiéis depositários” nem tão-pouco de depositários convencionais, previsto no Código Civil, ou mercantis, porque isso também pressupõe um contrato específico em que uma das partes entrega à outra uma coisa móvel ou imóvel, para que a guarde, e a restitua quando for exigida.

Uma das fontes jurídicas do PÁGINA UM diz que, no contexto da gestão da campanha ‘Todos por quem cuida’, para além de outras vantagens ilegítimas, como a do não pagamento de impostos, o expediente do “fiel depositário” poderá configurar uma simulação e uma “fraude à lei, geradora da nulidade”, mesmo que tenha havido um “negócio jurídico”.

Eurico Castro Alves, actual presidente da Secção Regional do Norte da Ordem dos Médicos, foi um dos três co-fiéis depositários que geriu, em contabilidade paralela, 1,4 milhões de euros. O médico, que foi este Verão anfitrião das férias brasileiras de Luís Montenegro, era o representante da APIFARMA, o principal ‘municiador’ dos donativos.

Porém, não há sequer provas de ter havido qualquer “negócio jurídico” – nem se vislumbra de que tipo poderia ser, no âmbito estrito de uma campanha solidária – e, deste modo, a referência aos “fiéis depositários” nos relatórios e contas de 2022 e de 2023 da Ordem dos Médicos aparenta ser um expediente do actual bastonário Carlos Cortes para se afastar das decisões do seu antecessor, Miguel Guimarães.

O PÁGINA UM questionou Carlos Cortes sobre se houve ou não algum documento, designadamente do Conselho Nacional da Ordem dos Médicos, a sancionar a constituição de uma equipa de “fiéis depositários”. A resposta mostra-se elucidativa quanto à legítima vontade do bastonário se descartar das decisões tomadas por Miguel Guimarães. “Os juristas/advogados actualmente afetos” ao Departamento Jurídico da Ordem dos Médicos “não acompanharam o Protocolo então celebrado entre a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA), a Ordem dos Médicos (OM) e a Ordem dos Farmacêuticos (OF) não tendo, como tal, na sua posse informação que permita responder ao solicitado no prazo indicado”, referiu ao PÁGINA UM fonte oficial do gabinete de Carlos Cortes. E a mesma fonte remete ainda para uma auditoria feita pela consultora BDO, que, como já salientou o PÁGINA UM, nem sequer identifica que a conta solidária como pertencente a Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eduardo Castro Alves.

De igual modo, o PÁGINA UM remeteu questões à ministra da Saúde, Ana Paula Martins, sobre o seu papel no grupo de “fiéis depositários” de dinheiros provenientes de farmacêuticas. Não respondeu.

Também colocou questões a Miguel Guimarães, que afirmara ao Correio da Manhã, aquando do início da investigação do PÁGINA UM, que a campanha ‘Tudo por quem cuida’ era “à prova de bala”. Não respondeu.

Também se colocaram questões a Eurico Castro Alves. Não respondeu.

E também se colocaram questões ao actual bastonário da Ordem dos Farmacêuticos, Helder Filipe Mota. Não respondeu.

O PÁGINA UM também questionou, pela quinta vez, a Procuradoria-Geral da República sobre se estava em curso algum procedimento sobre a gestão financeira da campanha ‘Todos por quem cuida’. A PGR nunca respondeu a qualquer das missivas colocadas sobre esta matéria.

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Recorde-se que a campanha “Todos por Quem Cuida” teve por base um protocolo assinado em 26 de Março de 2020 entre as Ordens dos Médicos e dos Farmacêuticos e a Apifarma, que apresentava toda a aparência de um fundo solidário com bons propósitos, e que serviria numa primeira fase apenas para canalizar “contributos monetários (…) ou em espécie” de farmacêuticas para “o apoio à aquisição de equipamentos hospitalares, equipamentos de protecção individual e outros materiais necessários aos profissionais de saúde que se encontra[ssem] a trabalhar nas instituições de saúde”.

Porém, no início do mês de Abril de 2020 – e também por via de um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais que alargava a possibilidade de benefícios fiscais por donativos aos hospitais –, as três entidades decidiram alargar o âmbito da campanha para um “fundo solidário” público, nomeando, de acordo com os documentos consultados pelo PÁGINA UM, Manuel Luís Goucha como “embaixador da iniciativa”.

E foi aqui que começaram as irregularidades. Ao invés da conta solidária ser assumida pelas duas ordens profissionais – ou apenas por aquela com maior protagonismo, a Ordem dos Médicos – foi decidido que a conta com o NIB 003506460001766293021, aberta no balcão da Caixa Geral de Depósitos na Portela de Sacavém seria titulada por três pessoas: José Miguel Castro Guimarães, Ana Paula Martins Silvestre Correia e Eurico Castro Alves.

Ora, uma pseudo-auditoria da BDO, cujos trabalhos para a Ordem dos Médicos não foram sujeitos a contrato público conhecido, até confirma o NIB (e IBAN) usado, referindo que “foi criada uma conta destinada a receber, através de depósito directo ou por transferência, os donativos angariados com o IBAN P50 0035 0646 0001 7662 9302 1”. Porém, o documento assinado por Ana Gabriela Barata de Almeida (ROC nº 1366, inscrito na CMVM sob o nº 201606976, em representação da BDO & Associados – SROC) não se debruça, nem numa linha, no aspecto essencial: essa conta não era nem da Ordem dos Médicos nem da Ordem dos Farmacêuticos nem da própria Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), que se associou à campanha.

Não se diga que essa pesquisa era complexa. Na verdade, é pública e confirmável que pertence a uma conta da Caixa Geral de Depósitos, onde surge, como primeiro beneficiário “José Miguel R Castro Guimarães”. A actual ministra é (era) co-titular desta conta particular, havendo ainda outro co-titular, Eurico Castro Alves, ex-secretário de Estado da Saúde do PSD. A conta era movimentada com duas assinaturas. A actual ministra assinou diversas ordens de pagamento para facturas que, na verdade, entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos.

Conta bancária da campanha, para onde seguiram os donativos das farmacêuticas, de outras empresas e de particulares, foi aberta no dia 2 de Abril de 2020, em nome de Miguel Guimarães (como titular principal), Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Todos os pagamentos da campanha foram efectuados através desta conta.

Sendo que a conta da campanha “Todos por quem cuida” não era institucional – mas sim de três pessoas, independentemente dos cargos ocupados –, o pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna para a angariação de fundos nunca poderia omitir o facto de que o NIB em causa não ser das entidades oficiosamente promotoras: a Ordem dos Médicos e a Ordem dos Farmacêuticas. Aliás, foram indicadas no final do pedido duas contas que nunca foram usadas na angariação, e que efectivamente pertencem a estas duas instituições. Ambas as contas (com o NIB 000334778686020 e o NIB 000000182339728) estão no Santander, sendo tituladas, respectivamente, pela Ordem dos Médicos e pela Ordem dos Farmacêuticas.

A razão para não serem usadas contas oficiais de qualquer uma das ordens nunca foi dada, mas certo é que o Ministério da Administração Interna foi iludido. Além disso, o pedido de autorização apenas foi feito em 27 de Julho de 2020, quando a angariação de donativos para a conta paralela se iniciara em 6 de Abril daquele ano, ou seja, mais de três meses antes, o que constitui mais uma ilegalidade. Com efeito, à data do pedido de autorização ao Ministério da Administração Interna já a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves tinha um saldo de 716.501,51 euros. Por lei, a angariação deve ser precedida da autorização ministerial.

Por outro lado, nessas circunstâncias jamais se poderia aplicar a Lei do Mecenato ou outro tipo de benefício, porque em termos formais se estava perante uma recolha de donativos por três pessoas, inexistindo uma justificação lógica (ou ilógica) para não se ter procedido sequer a qualquer correcção. Nessa medida, Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves deveriam ter pagado solidariamente o Imposto do Selo no valor de 10% de todos os donativos recebidos acima dos 500 euros. E houve muitos.

Ora, face aos montantes das diversas transferências, sobretudo da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma), todas individualmente acima dos 500 euros, a actual ministra da Saúde e os seus parceiros deveriam ter declarado à Autoridade Tributária e Aduaneira o recebimento de 1.2561.251 euros, o que implicaria o pagamento de 125.125,10 euros de Imposto do Selo. Na documentação consultada pelo PÁGINA UM, nomeadamente extractos bancários, não existe qualquer saída de dinheiro para esse cumprimento fiscal.

Pedido de autorização para angariação de donativos omitiu que a conta solidária não era titulada pela Ordem dos Médicos e Ordem dos Farmacêuticos. Nunca foi explicada opção por uma conta não-oficial, que permitiu uma contabilidade paralela cheia de irregularidades e ilegalidades. Não há qualquer documento que sustente ou valide a figura jurídica de “fiéis depositários” da conta aberta em nome de Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves.

Além desta grave falha fiscal – independentemente dos objectivos da campanha –, as 16 entidades do sector farmacêutico que concederam apoios também deveriam ter feito declarações no Portal da Transparência e Publicidade do Infarmed, identificando expressamente Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. Estes profissionais de saúde – dois médicos e uma farmacêutica – também nunca procuraram que o Infarmed, que vigia os patrocínios neste sector, envidasse esforços para incluir essas referências no portal. E o Infarmed, presidido por Rui Santos Ivo, nunca se incomodou em incomodar as farmacêuticas por não declararem o ‘patrocínio’ de mais de 1,3 milhões de euros a três individualidades, uma das quais Ana Paula Martins, que agora tutela o regulador do medicamento.

Além destas irregularidades e incumprimentos fiscais, o uso da conta solidária em nome de três pessoas permitiu uma estranha e ilegal contabilidade paralela de todas as operações de aquisição, designadamente de facturação e pagamentos, dos equipamentos e materiais a serem doados. Ora, isso passou ao largo da BDO, apesar de se apresentar como uma das principais auditoras a operar em Portugal.

Na consulta à documentação contabilística da campanha “Todos por Quem Cuida”, o PÁGINA UM identificou 34 facturas no valor total de 978.167,15 euros que entraram na contabilidade da Ordem dos Médicos (pela aquisição de equipamento de protecção individual, câmaras de entubamento e ventiladores), mas sem que esta entidade tenha alguma vez feito qualquer pagamento. Na verdade, quem pagou foi a conta titulada por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves. As facturas assumidas pela Ordem dos Médicos, mas que foram afinal pagas com a conta solidária (à margem da Ordem dos Médicos) podem ser consultadas AQUI.

Uma das ordem de pagamento assinadas por Ana Paula Martins foi para transferir 27.365,20 euros ao Hospital das Forças Armadas como contrapartida pela disponibilização de locais e pessoal de enfermagem para vacinar, contra as regras da Direcção-Geral da Saúde, médicos considerados não-prioritários em Fevereiro de 2021, uma iniciativa pessoal de Miguel Guimarães. Esta decisão, com a concordância do então coordenador da task force Gouveia e Melo, após diversas reuniões, continua a ser analisada (há mais de um ano) pela Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS). A factura das Forças Armadas foi, contudo, emitida para a Ordem dos Médicos. E a Ordem dos Médicos viria depois a emitir declarações (falsas) de recepção de donativos por parte de quatro farmacêuticas. Uma dessas falsas declarações de donativo, no valor de 3.725,20 foi passada em Março de 2022 à Gilead. Nesta altura, Ana Paula Martins – que terminara o mandato em Fevereiro na Ordem dos Farmacêuticos – já ocupava o cargo de directora dos negócios governamentais desta farmacêutica norte-americana.

Através da conta pessoal de que era co-titular, a actual ministra da Saúde, Ana Paula Martins, assinou, por exemplo, uma ordem de transferência bancária ao Hospital das Forças Armadas num acordo com a task force liderada por Gouveia e Melo para pagar a vacinação contra a covid-19 de médicos não-prioritários numa altura de escassez de vacinas. Mas a factura das Forças Armadas foi emitida em nome da Ordem dos Médicos.

Sendo legal que um terceiro possa proceder ao pagamento de facturas de uma determinada entidade – ou seja, era legítimo que Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves usassem a sua conta solidária para saldar as compras dos géneros a doar –, essa informação teria, porém, de constar na contabilidade da Ordem dos Médicos. Como tal não sucedeu – ou pelo menos, nunca foi apresentado ao PÁGINA UM qualquer documento comprovativo –, na prática, significa que a Ordem dos Médicos foi acumulando despesas – até chegar aos 978.167,15 euros – sem ter saído qualquer verba dos seus cofres.

Esse ‘crédito informal’ criou condições, pelo menos em teoria, para se formar um ‘saco azul’, ou mesmo um desvio de verbas até 968 mil euros. Para tal, bastaria que responsáveis da Ordem dos Médicos com acesso às contas oficiais fossem retirando os valores exactos das facturas que iam recebendo dos fornecedores dos bens comprados no âmbito da campanha “Todos por Quem Cuida”.

Ora, a alegada auditoria da BDO – pelo menos, o título do documento obtido pelo PÁGINA UM após sentença do tribunal diz “Prestação de serviços de autoria às actividades e contas do fundo solidário #TodosPorQuemCuida” – comete aqui um erro de palmatória. Na página 10 da auditoria diz-se que “procedemos à análise dos gastos/aquisições efectuadas por forma a validar a documentação de suporte correspondente”, indicando que foram realizadas verificações às notas de encomenda, facturas, evidência de entrega aos beneficiários e comprovativo do pagamento, concluindo que se confirmou “a existência destes elementos para todas as aquisições”.

Mas também aqui há uma omissão grave, que aparenta ser intencional. Com efeito, se e BDO conferiu facturas e pagamentos teria sido assim impossível não ter detectado que as facturas eram emitidas em nome da Ordem dos Médicos mas os pagamentos eram feitos por terceiros, neste caso pela conta titulada por Miguel Guimarães, Ana Paula Martins e Eurico Castro Alves. Significa isso que, sem qualquer documento justificativo – e não existia quando o PÁGINA UM consultou todos os documentos após a sentença do Tribunal Administrativo –, deram entrada documentos de despesa elevados (cerca de 978 mil euros) sem quaisquer fluxos de caixa associados às respectivas facturas, ou seja, houve indicação de que terá saído dinheiro da Ordem dos Médicos sem ter havido, efectivamente.

Se houve ou não a criação de um ‘saco azul’, não se sabe – e nem tal se vislumbra nas contas da Ordem dos Médicos, que vive desafogada com activos de quase 63 milhões de euros e depósitos registados no final do ano passado de 35 milhões de euros –, mas é estranho que haja uma completa omissão por parte da BDO neste aspecto sensível e de grande responsabilidade. No relatório e contas de 2023, na tal nota sobre a conta solidária, refere-se que foi entregue um saldo remanescente de um pouco mais de 107 mil euros para a Agência de Investigação Clínica e Inovação Biomédica, mas não se indica se essa decisão foi tomada pela Ordem dos Médicos ou pelos titulares da conta solidária.

Edifício principal da sede da Ordem dos Médicos, na Avenida Gago Coutinho, em Lisboa.

Houve, porém, mais irregularidades fiscais. Apesar de todos os donativos terem tido como destinatário a conta solidária – titulada, repita-se, por Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves –, as farmacêuticas quiseram aproveitar os benefícios fiscais da Lei do Mecenato, que um despacho do secretário de Estado dos Assuntos Fiscais alargou, em Abril de 2020, também para os hospitais públicos.

Nessa medida, os serviços operacionais da Ordem dos Médicos instruíram as largas dezenas de IPSS e outras entidades – que incluíram mesmo a PSP, a Liga dos Bombeiros, a Associação Nacional de Farmácias e até hospitais públicos e privados – a passarem declarações atestando que, afinal, receberam donativos em géneros das farmacêuticas, que lhe eram especificamente indicadas.

Deste modo, um dos trabalhos (mais meticulosos) da equipa da Ordem dos Médicos, que Miguel Guimarães colocou na gestão operacional da ‘sua campanha’, passou por preencher intrincados “puzzles” entre os donativos em dinheiro fornecidos à conta solidária e os valores dos géneros recebidos pelas instituições. Assim, em vez das declarações de recepção dos donativos pelas diversas entidades beneficiadas serem passadas à conta solidária – em termos formais, aos três titulares da conta – ou à Ordem dos Médicos, foram encaminhadas para determinadas farmacêuticas.

A emissão de centenas de declarações falsas – trata-se mesmo de centenas, que englobam muitas pequenas IPSS – configura até fraude fiscal, porque as entidades beneficiadas assumiram que os donativos em géneros vieram directamente de farmacêuticas, algo que não é verdade, nem as farmacêuticas conseguirão comprovar qualquer compra através de facturas. Certo é que, com este estratagema, as farmacêuticas conseguiram enquadrar os seus donativos no mecenato social – e, em casos específicos, no mecenato ao Estado – para levar a custos um valor correspondente a 130% ou 140% do valor entregue. Algo que não sucederia se tivesse sido tudo feito como sucedeu: os donativos foram entregues a três pessoas (Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves), foram feitas compras e entregues os géneros às IPSS, associações e unidades hospitalares.

Assim, com este esquema falso, as farmacêuticas terão conseguido declarações num montante total de cerca de 1,3 milhões de euros, e terão acabado por assumir, em termos contabilísticos, redução da matéria colectável da ordem dos 1,82 milhões de euros. Em conclusão, este expediente – a utilização abusiva de um benefício fiscal – terá lesado o Estado, segundo estimativas do PÁGINA UM, em cerca de 145 mil euros. Note-se que este esquema, profundamente à margem da lei, envolveu também hospitais públicos, conforme o PÁGINA UM revelou detalhadamente no final de 2022.

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Apesar da logística desta campanha ter sido protagonizada sobretudo pela Ordem dos Médicos, e pelo seu então bastonário Miguel Guimarães, a actual ministra teve um papel bastante activo, e não apenas como co-titular da conta. Ana Paula Martins procedeu a várias ordens de pagamento de géneros – cujas facturas foram encaminhadas para a Ordem dos Médicos – e também participou em diversas reuniões específicas da campanha. De acordo com as actas consultadas pelo PÁGINA UM, a actual ministra da Saúde participou em pelo menos oito reuniões da comissão de acompanhamento entre 11 Maio de 2020 e 5 de Maio de 2021. Mesmo depois da sua saída da liderança da Ordem dos Farmacêuticos em Fevereiro de 2022, manteve-se como titular da polémica conta solidária.

Ora, perante este intrincado esquema de falsas declarações – as farmacêuticas doaram o dinheiro para a conta de três pessoas, e não fizeram donativos directos para os beneficiários –, a BDO nada diz na sua suposta auditoria. No curto capítulo sobre a confirmação das declarações emitidas aos doadores, a auditora diz que “procedemos também à verificação das declarações emitidas aos doadores pelas entidades beneficiárias e pelo TPQC [‘Todos por quem cuida’].

Saliente-se que, de entre as centenas de declarações que o PÁGINA UM consultou, os beneficiários finais nunca tiveram contacto com os doadores iniciais; e, na verdade, a haver declarações verídicas deveriam ser de dois tipos: declarações de Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves aos doadores, entre os quais as farmacêuticas; e, depois, declarações das diversas beneficiárias às referidas pessoas que pagaram os bens doados. O facto de a auditoria da BDO referir que foi “possível confirmar a concordância dessas declarações” é, no mínimo, estranho. Mas tudo é estranho neste processo.


Nota: Pode consultar os relatórios e contas da Ordem dos Médicos no respectivo site. Em alternativa, pode aceder aqui, aqui, aqui e aqui aos relatórios e contas de 2020 a 2023, no servidor do PÁGINA UM, para memória futura.


N.D. Como é do conhecimento público, a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Farmacêuticos, a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA), Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves contrataram, em conjunto, a sociedade de advogados Morais Leitão para me processarem por difamação. As acções judiciais desta índole, conhecidas por SLAPP (Strategic Lawsuits Against Public Participation), têm um objectivo claro, ademais perante a passividade do Ministério Público em encetar uma investigação criminal sobre as revelações do PÁGINA UM. Mas, se o objectivo é silenciar um jornalista independente, essa estratégia não funcionará, sobretudo se a sociedade não aceitar este tipo de conduta por parte de quem tem recursos financeiros aparentemente ilimitados. Desconhece-se quem, entre a Ordem dos Médicos, a Ordem dos Farmacêuticos, a Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (APIFARMA), Ana Paula Martins, Miguel Guimarães e Eurico Castro Alves, está a pagar a conta da sociedade Morais Leitão.


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