Recensão: À descoberta das ilhas selvagens

O (bom) regresso do escriba-mor

por Pedro Almeida Vieira // Outubro 17, 2024


Categoria: Cultura

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Título

À descoberta das Ilhas Selvagens

Autor

JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA

Editora

Tinta da China (Junho de 2024)

Cotação

17/20

Recensão

A crónica (e a literatura) de viagem constitui um género literário que explora a narrativa de experiências reais, frequentemente sob uma perspectiva pessoal e intimista, em diálogo permanente com o (futuro) leitor. Entre as diversas formas de literatura de viagem, o diário de bordo, ou ‘logbook’, destaca-se por ser um registo minucioso de uma lenta jornada marítima, mas onde se tenta sobretudo captar, na aparente monotonia da viagem, os detalhes mais ‘épicos’.

Daí que, excepto se envolver uma pescaria (onde a ficção sobre o número e o tamanho dos peixes capturados é permitida), quem se abalança para a escrita de um diário de bordo tem de ser um observador minucioso, atento às nuances do mar, do céu, dos sons e das emoções, o que desafia o autor a buscar detalhes estimulantes tanto na oceanografia física como na meteorologia, nas variações acidentais dos humores e amores da tripulação, e tudo isto temperado, com bastante sal, em reflexões interiores, criando-se assim uma narrativa que quebre uma aparente inacção, sobretudo se em causa não estiver uma guerra, claro.

Não sendo já possível, em pleno século XXI, ‘desbravar’ agora os mistérios dos mares – como fizeram Cristóvão Colombo, James Cook ou mesmo Richard Henry Dana –, não deixa, contudo, de haver espaço para os ‘logbooks’ mais descontraídos, que já não relatam o desconhecido e o perigoso, mas sim as peripécias divertidas de quem olha para uma viagem marítima com deleite. E é também por deleite, mais que por conhecimento, os leitores devem saber ao que vão...

Sendo, assim, um relato (também) documental em ‘conversa’ com o leitor, o diário de bordo, pela sua estrutura, permite que se acompanhe, ‘em tempo real’, as sensações e as reflexões do viajante, daí que convenha muito que o cronista seja ‘dextro’ para que o relato não seja um ‘sinistro’.

Ora, um diário de bordo escrito por José Pedro Castanheira, um dos mais cotados jornalistas da sua geração, agora já ‘reform(ul)ado – mas ainda com carteira profissional devidamente actualizada (CP 204) –, será, desde logo, uma garantia de qualidade literária, tanto mais que não estamos perante um ‘novato’ neste registo: em Agosto de 2022 já ele publicara ‘Volta aos Açores em quinze dias’, sobre o qual se escreveu aqui, com os mesmo companheiros de (der)rota. Este livro recebeu, aliás, o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga, atribuído pela Associação Portuguesa de Escritores no ano passado.

Recebeu-o, é certo, e atrevo-me a dizer que imerecidamente, por uma simples razão: este ‘À descoberta das Ilhas Selvagens’ é francamente superior – e, assim sendo, ficará prejudicada a probabilidade de concederem a José Pedro Castanheira um novo prémio quase em ano consecutivo.

Seja como for, deve dizer-se que neste seu segundo diário de bordo, o escriba-mor (como é apresentado) José Pedro Castanheiro está muito melhor, mais solto, mais irónico, mais contemplativo e reflexivo, mais informativo, mais compreensivo com os azares e sortes nos fluídos terrenos dos mares, que descreve com minúcia e perícia.

Melhor, muito melhor do que o ‘Volta aos Açores em quinze dias’, onde as maravilhas da travessia pelo arquipélago perdido no meio do Atlântico acabaram substituídas pelo omnipresente temor à pandemia, de sorte que se tornou mais um 'diário de bordo covídico', passado, acho, mais em terra do que no mar, porquanto uma parte subastancial desse desse livro acabou escrito em confinamento no quarto de um hotel.

Passada essa tormenta e alcançada Trapobana, temos, portanto, um excelente regresso de José Pedro Castanheiro ao seu melhor, ao melhor do jornalismo ao serviço da arte da literatura de viagem. 

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