TVI: Coima milionária ‘borregou’ por erro jurídico básico do regulador
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Seria a coima mais elevada alguma vez aplicada a empresas de comunicação social. Alegadamente por o ‘homem forte’ da Media Capital, Mário Ferreira, não ter comunicado antecipadamente as negociações do controlo da TVI em 2020, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) considerou ter havido alteração não autorizada de domínio sobre os operadores de rádio e de televisão. E vai daí aplicou, no ano passado, coimas unitárias de 175 mil euros à Prisa, à sua subsidiária Vertix e à Pluris. Acabou tudo no tribunal de Santarém, com a juíza a considerar que o regulador não poderia usar testemunhos do procedimento oficioso na instrução do processo de contra-ordenação – um erro jurídico de amador. Resultado: a deliberação de 182 páginas que aplicou a coima está ferida de nulidade. E a prescrição do processo será a consequência.
É mais um caso absurdo com inexplicáveis erros jurídicos básicos por parte do Conselho Regulador da Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC). As coimas milionárias aplicadas no ano passado ao empresário Mário Ferreira e à Prisa pelo negócio do controla da Media Capital, dona da TVI e da CNN Portugal, ficaram em ‘águas de bacalhau’, porque o Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão de Santarém declarou “nula” a decisão administrativa da ERC “por erro notório na apreciação da prova”.
Em causa, como então revelou o PÁGINA UM em primeira-mão em Julho do ano passado, estão factos que remontavam a Abril de 2020, quando a Pluris Investments, detida a 90% pelo empresário Mário Ferreira, e a Vertix – que no início daquele ano esteve para ser adquirida pela Cofina (actual Medialivre) – celebraram um acordo com vista à aquisição, pela primeira, de uma participação de 30,22% no capital social da Media Capital.
Esse acordo implicava a preparação de um novo plano de negócios, um compromisso de financiamento da Media Capital pela Pluris, de até de cerca de 14 milhões de euros, a cooperação das partes no sentido de procurar novos investidores que pudessem vir a adquirir a participação da Prisa, bem como a colaboração das partes com vista à perda da qualidade de sociedade aberta pela Media Capital, a financiar
também pela Pluris. O acordo previa ainda o direito de a Pluris indicar um observador e, após a celebração do negócio, a adoção pela Prisa dos procedimentos necessários no sentido de cooptar representantes da Pluris para o conselho de administração da Media Capital, na proporção da sua participação.
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Além disso, ficou estabelecido o direito de a Pluris indicar, “imediatamente após a execução” do acordo um observador que “deve ser autorizado a estar presente em todas as reuniões do conselho de administração da Media Capital e a receber informação completa e precisa de todos os trabalhos do conselho de administração» e, após a celebração do negócio, a adoção pela Prisa dos procedimentos necessários no sentido de cooptar representantes da Pluris para o Conselho de Administração da Media Capital, na proporção da sua participação”.
Na altura, a Media Capital era detentora das empresas TVI Televisão Independente – dona da TVI e da CNN Portugal – e ainda da Rádio Comercial e diversas rádios locais – entretanto vendidas em 2022 à alemã Bauer Media Group –, envolvendo um serviço de programas de televisão e de vinte e nove serviços de programas de rádio.
Em 9 de Outubro de 2020, a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) concluiria que estes “acordos celebrados entre a Vertix/ Prisa e a Pluris/ Mário Ferreira e a conduta das partes instituída na sequência dos mesmos configura[va] o exercício concertado de influência sobre a Media Capital, manifestado, entre outros, na (re)composição do seu órgão de administração, na redefinição do plano estratégico da sociedade e na tomada de decisões relevantes na condução dos seus negócios.”
A ERC considerou então existirem “fortes indícios da ocorrência de uma alteração não autorizada de domínio sobre os operadores de rádio e de televisão a operar sob licença que compõem o universo da Media Capital”, e em 15 de Outubro de 2020 determinou a abertura de um processo de contra-ordenação, após um procedimento oficioso, alegando que houvera alteração de domínio sobre um operador (de rádio e de televisão) sem a necessária autorização prévia.
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E tomou uma decisão com ligeireza: a ERC aproveitou tanto os documentos como os depoimentos pessoais coligidos no decurso do procedimento oficioso como ‘provas’ para o processo de contra-ordenação, que, em Fevereiro do ano passado, condenaria a Prisa, a sua subsidiária Vertix e a Pluris, do empresário Mário Ferreira, ao pagamento de coimas unitárias de 175 mil euros.
O tribunal veio, porém, dizer que “o processo contra-ordenacional inicia-se com aquela participação e não com o início de algum procedimento [oficioso] que deu origem àquela participação”, salientando que “o processo contra-ordenacional não é uma longa manus do processo de averiguação para efeitos de supervisão”. E conclui que “essa extensão do processo sancionatório não está tipificada na lei, pelo que não é admissível”. Ou seja, o tribunal considerou que, na investigação e instrução do processo de contra-ordenação, seria possível ‘migrar’ documentos do procedimento, mas não testemunhos.
A ERC ainda tentou contrariar esta nulidade, cometida de uma forma incompreensível – o regulador era então presidido por Sebastião Póvoas, antigo juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça –, que repetir inquirições iria “comprometer o exercício dos seus poderes de supervisão”, mas o Tribunal de Santarém disse que o que estava em causa era exactamente o contrário. “A necessidade de repetir depoimentos ou declarações dos Arguidos não coloca, necessariamente, em causa aqueles poderes, antes os reforça, na medida em que o cumprimento das regras processuais atinentes a um processo sancionatório serve precisamente para comprovar ou não os indícios decorrentes de um processo de menores garantias para os Arguidos, como é o caso do tipo de procedimento prévio de averiguações que in casu foi adotado”.
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De facto, mostra-se notório que a ERC, na generalidade das suas deliberações, mesmo naquelas sem carácter sancionatório – como as que derivam de simples queixas sobre rigor –, demonstra ligeireza de análise e, em muitos casos, um completo desconhecimento técnico e científico nas matérias em que ‘opina’.
A consequência desta decisão da juíza Vanda Miguel, do Tribunal da Concorrência de Santarém, foi tomada em Maio deste ano, mas mantida secreta pela ERC, que está obrigada, pelos seus estatutos, a divulgar o teor das sentenças ou acórdãos a si comunicadas. Teoricamente, o regulador ainda poderia sanar a nulidade – iniciando todo o procedimento contra-ordenacional –, mas seria um acto inglório, porque condenado à partida por prescrição, uma vez que os actos eventualmente ilegais terão sido praticados no ano de 2020.
Deste modo, a coima milionária, resultante de um processo de contra-ordenação com 182 páginas, tem um destino: o lixo. Ou melhor dizendo, foi fogo-de-vistas que, no final, serviu apenas para gastar papel e recursos públicos.