Há um novo ‘desporto nacional’ sustentado nas redes sociais, por vezes tão abominadas pelas cliques, mas por elas usadas para auto-promoção: a filantropia dos ‘influencers’, supostamente sérios – isto é, comentadores da imprensa –, usando o dinheiro dos outros para auto-promoção. A mais recente campanha é protagonizada por Helena Ferro de Gouveia, uma ex-jornalista, ex-administradora da Lusa por via de uma empresa (Global Notícias, que era uma das principais devedoras dessa mesma empresa pública), comentadora televisiva e assessora da presidente da autarquia de Almada.
Lançou ela, por estes dias, uma campanha de angariação de fundos para apoio ao motorista da Carris, de nome Tiago, vítima dos tumultos após a morte de Odair Moniz. E vai de vento em popa, tendo mesmo já ultrapassado o objectivo inicial de arrecadação fixado nos 33 mil euros, contando, a meio da tarde, mais de 1.600 donativos.
Nada tenho, muito pelo contrário – até porque o PÁGINA UM nasceu e mantém-se através de financiamentos voluntários –, qualquer aversão a este tipo de campanhas, mas causam-me, por um lado, estupefacção, e por outro, aversão, quando se direccionam para o apoio a vítimas.
A estupefacção advém do facto de, sendo eu defensor do Estado Social, não possa conceber para os infelizes e lamentáveis casos como os do motorista da Carris que o Estado possa faltar ou possa sequer ser ineficiente. No seu sofrimento, que jamais poderá ser compensado, acredito eu (e tenho quase a certeza, porquanto o contrário seria uma desilusão imensa) que a sustentabilidade financeira deste motorista da Carris (e a da sua família) só pode já estar mais do que assegurada pela função social e solidária do Estado, sem necessidade de peditórios públicos nem de ‘esmolas’ protagonizados por influencers ou outros entes.
Acredito – e isso é extensível a outros trabalhadores – que exista um seguro com uma indemnização suficientemente avultada para compensar de forma decente e justa o motorista da Carris por aquilo que lhe sucedeu, independentemente do apuramento de responsabilidade civis e criminais sobre os autores. E mesmo que o seguro privado não seja suficiente, deve o Estado, e genericamente as entidades públicas, garantir-lhe a compensação devida. Concebo o Estado sobretudo para esta função – e saber que ela existe e é exercida ajuda-me a compreender a justeza dos impostos e da máquina burocrática do Estado.
Por esse motivo, uma angariação de fundos desta natureza, para apoiar vítimas, protagonizada por pessoas como Helena Ferro de Gouveia (e o mesmo se aplicaria se fosse a Madre Teresa de Calcutá) causa-me estupefacção: a sua própria existência significa uma fortíssima percepção de que, para os cidadãos e contribuintes, o Estado Social não dá respostas dignas, eficazes e rápidas, e que tem de ser a iniciativa ‘privada’ a fazer aquilo que o Estado e Governo são incapazes de fazer. Não podemos sentir isso do Estado nem é admissível que os representantes do Estado – ou seja, um Governo – o permitam.
Já a minha aversão a este tipo de campanhas advém mais, neste caso, das pessoas que a protagonizam e também, em casos concretos, às pessoas que fazem donativos. Por exemplo, ver Helena Ferro de Gouveia como ‘protagonista’ isolada desta campanha causa-me ‘urticária’, porque a sua visão da vida humana – esparramada nos seus comentários televisivos e nas redes sociais nos últimos anos – não ‘casa’ com uma angariação de fundos de cariz humanitário. A intolerância e o enviesamento das suas opiniões são o azeite que não se consegue misturar na água. Por outro lado, fico abismado por ver, entre os doadores, e de entre aqueles que não quiseram manter-se no anonimato, um senhor chamado Marco Belo Galinha, nada mais nada menos do que o líder da Global Notícias, a empresa de media que no ano passado devia 10 milhões de euros ao Estado. Deu 200 euros.
Se calhar, digo eu, se os senhores Marcos Belos Galinhas desta vida quiserem mesmo ajudar o Estado a ser Estado Social, talvez o passo fundamental seja pagar os impostos que devem. Depois disso, podem ficar de consciência tranquila e com os 200 hipócritas euros no bolso.
P.S. O Chega está, cada vez mais, numa estratégia de abutre. Cada morte envolvendo um acto de violência, que possa envolver directa ou indirectamente questões étnicas, lhe serve para galgar um discurso de radicalização, que já ultrapassa os limites da contenda política. Mas também aqui, tal como sucede com as campanhas de angariação em relação ao Estado, não deve ser uma petição de milhares de pessoas a fazer com que o Ministério Público intervenha; deve ser a Procuradoria-Geral da República, com eficácia e rapidez, a determinar por motu proprio se é ou não susceptível de penalidade criminal aquele tipo de (lamentável) linguagem.
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