Durante anos, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) – que detém, directa e indirectamente, 12 rádios locais, dois periódicos, um canal televisivo – tentou que a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) a desobrigasse de revelar os indicadores financeiros de uma actividade religiosa, assente numa mera associação privada do tipo clube, que movimentou 209 milhões de euros entre 2017 e 2022. Nunca conseguiu. Até este ano. Sem sequer qualquer deliberação conhecida, o novo Conselho Regulador da ERC decidiu que, afinal, bastava a IURD divulgar dados parcelares e não validados, passando a esconder as informações financeiras globais. Sustentação legal para esta acção do regulador dos media, presidida por Helena de Sousa, não existe. A ERC diz que a actividade de comunicação da IURD é secundária, o que se mostra bastante questionável, tanto mais que também detém uma ‘holding’ de empresas de rádio, a Global Difusion, que em 2022 tinha dívidas de 58 milhões de euros e estava em falência técnica. E não registou ainda as contas do ano de 2023.
A Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), presidida por Helena de Sousa, aceitou este ano que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) não divulgasse os seus dados financeiros reais de toda a sua actividade, permitindo-lhe, ao arrepio da lei, que inserisse na Plataforma da Transparência dos Media somente algumas informações financeiras não validadas respeitantes às actividades de comunicação social, que incluem dois periódicos e um canal televisivo por cabo (UniFé TV), que entrou em actividade em Agosto de 2022. Essa documentação não está acessível nem sequer é validável, por a IURD se tratar de uma associação privada.
Nos últimos anos, a IURD andou insistentemente a tentar obter a confidencialidade dos dados financeiros, com sucessivos requerimentos, mas o anterior Conselho Regulador, presidido pelo Sebastião Póvoas, recusou por sistema essa pretensão, conforme documentos consultados pelo PÁGINA UM após a intervenção do Tribunal Administrativo de Lisboa, confirmado por um acórdão ‘demolidor’ do Tribunal Central Administrativo de Lisboa. Recorde-se que o PÁGINA UM teve uma ‘luta’ de quase dois anos contra o regulador que se opunha a identificar as entidades que solicitavam confidencialidade na transmissão do reporte financeiro exigido pela Lei da Transparência dos Media.
Para tentar não divulgar publicamente qualquer informação, a IURD alegava, segundo os documentos consultados na ERC, “que, por se tratar de uma associação de carácter religioso sem fins lucrativos, as suas contas não se encontra[v]am sujeitas a um dever de publicação” e que desenvolvia uma actividade “que vai muitíssimo além da publicação periódica da qual é detentora, actuando neste prisma de empreender de forma meramente acessória por referência ao seu escopo principal”. E defendia que, deste modo, “a maioria dos dados financeiros inseridos na Plataforma da Transparência não está relacionada com a sua actividade de comunicação social”. Contudo, o sector da comunicação social na IURD, com uma estratégia de compra tem aumentado substancialmente nos últimos anos, detendo directa e indirectamente dois periódicos, um canal televisivo e 12 rádios locais.
De entre essas largas dezenas de entidades que pediam confidencialidade destacava-se a IURD, bem como as empresas de rádios regionais integradas na holding Global Difusion, detida a 100% por esta igreja evangélica de origem brasileira, e ainda a RecordTV. Este canal televisivo integra a holding de Edir Macedo, o fundador e líder da IURD no Brasil.
Em anos anteriores, a ERC recusara sistematicamente essa pretensão de obscuridão por parte da IURD, até porque uma autorização abriria uma caixa de Pandora. Ou seja, qualquer investidor ou fundo poderia passar a deter um ou vários órgãos de comunicação social sem divulgar publicamente a informação, bastando ‘provar’ que a actividade de media era completamente acessória. No limite, os próprios partidos políticos que detêm os seus periódicos oficiais deixariam de ser obrigados a transmitirem dados financeiros no Portal da Transparência dos Media, bem como centenas de outras entidades, entre as quais algumas de carácter religioso ligadas à Igreja Católica, sindicatos, instituições de solidariedade social e diversas empresas privadas, ou até mesmo fundos financeiros.
Até ao ano passado, mesmo se até houve um ano em que os serviços técnicos recomendaram o deferimento dos dados financeiros da IURD, o Conselho Regulador da ERC foi intransigente, indeferindo sempre os pedidos de confidencialidade dos dados financeiros, apenas permitindo a ocultação dos sócios da IURD em Portugal, que é uma associação privada do tipo clube apenas acessível aos ‘bispos’, e que vive dos chorudos donativos dos fiéis. Por esse motivo, através do Portal da Transparência dos Media era possível conhecer tanto os rendimentos, como o activo total, o capital próprio e o passivo da IURD. Consultando essa informação, fica-se a saber que a igreja evangélica conseguiu arrecadar 209 milhões de euros entre 2017 e 2022, passando o activo, que inclui edifícios de culto, para os 184,5 milhões de euros, mais 110 milhões do que em 2017.
Com as novas ‘contas’, alegadamente referentes apenas à componente associada à comunicação social, a IURD inscreveu apenas rendimentos de 1,4 milhões de euros, reportando também prejuízos de 1,38 milhões de euros e capitais próprios negativos de 2,7 milhões de euros. Mas em anos anteriores essa informação discriminada não existirá.
Confrontada com esta situação, o Conselho Regulador da ERC alega que “as entidades proprietárias de órgãos de comunicação social, mas cuja actividade principal não é a comunicação social (como é o caso da IURD) quando inserem as suas informações na Plataforma da Transparência podem optar por inserir os indicadores relativos à atividade global ou apenas os indicadores financeiros relativos à actividade de comunicação social”, acrescentando que “neste enquadramento, até 2022 inclusive, os dados inseridos pela IURD dizem respeito à actividade da igreja como um todo”, mas que, “em 2023, passaram a apresentar os indicadores financeiros para a actividade de comunicação social isoladamente”.
A ERC acrescenta ainda que a informação reportada pela IURD “está devidamente documentada”, mas defende que “a prova dos indicadores financeiros não é documentação de domínio público”. Esta é mais uma interpretação abusiva por parte do regulador, uma vez que, estando essa informação em sua posse, em formato analógico ou digital, passa a constituir imediatamente o ‘estatuto’ de documento, acessível ao abrigo da Lei do Acesso aos Documentos Administrativos. Aliás, o PÁGINA UM já requereu hoje a consulta formal desses documentos.
Mas o acesso á documentação é somente um pormenor, porque, na verdade, a liberalidade do regulador constituiu uma ilegalidade. Com efeito, a ERC até tem o poder arbitrário de conceder confidencialidade às empresas – e somente em condições muitos especiais o fez, como o PÁGINA UM teve oportunidade de conferir em mais de uma centena de processos consultados nas instalações do regulador até ao final da passada semana –, mas não pode alterar as normas da Lei da Transparência dos Media, uma vez que esta é uma incumbência exclusiva da Assembleia da República.
Ora, na lei de 2015 e no regulamento subsequente que estabelece as regras de reporte financeiro, aprovado em 2020, não existe a mínima referência à possibilidade de se indicar apenas a parte alegadamente respeitante a uma suposta componente minoritária associada à comunicação social. Nesse aspecto, os deputados que aprovaram a Lei da Transparência dos Media em 2015 foram taxativos: a lei da transparência aplicava-se às agências noticiosas, às pessoas singulares ou colectivas que editem publicações periódicas (quaisquer que fossem), aos operadores de rádio e de televisão (incluindo emissão por via eletrónica), às “pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem ao público, através de redes de comunicações eletrónicas, serviços de programas de rádio ou de televisão, na medida em que lhes caiba decidir sobre a sua seleção e agregação”, bem como às “pessoas singulares ou colectivas que disponibilizem regularmente ao público, através de redes de comunicações eletrónicas, conteúdos submetidos a tratamento editorial e organizados como um todo coerente”.
A única excepção seria para os casos em que não há, por razões de dimensão financeira, contabilidade organizada, algo que jamais se pode aplicar à IURD que movimentou mais de 200 milhões de euros desde 2017.
Certo é que desde que tomou posse no ano passado, o novo Conselho Regulador da ERC, presidido por Helena de Sousa, tem mostrado interesse em ‘escurecer’ a Lei da Transparência dos Media, justificando a intenção com o cenário de crise financeira do sector. Em Julho passado, numa polémica proposta de revisão desta legislação, sob a forma de deliberação, a ERC propôs à Assembleia da República um autêntico repositório de alterações e subtracções das obrigações das empresas de media em termos de identificação dos titulares directos e indirectos dos órgãos de comunicação social, bem como um aligeiramento das penalizações em caso de não indicação (ou lacunas e erros) de indicadores financeiros.
Por outro lado, nessa proposta, a ERC ainda manifestava o desejo de se ocultar o acesso a acordos parassociais – escondendo assim formas de controlo indirecto sem ser sob a forma de quotas ou acções – e também a possibilidade de isenção do cumprimento das normas de transparência sobre os meios de financiamento e o relatório organizacional por parte das “entidades que prossigam actividades de comunicação social a título acessório, em que a actividade de comunicação social tenha comprovadamente um peso diminuto nos rendimentos e um alcance residual ao nível das audiências”.
A ERC nunca determinou, nesta deliberação nem em outros documentos, os critérios para determinar o que é “um peso diminuto nos rendimentos” ou ainda “um alcance residual ao nível das audiências”, mas, conforme o PÁGINA UM alertava há três meses, claramente esta norma, a ser acolhida numa alteração legislativa na Assembleia da República, isentaria os partidos políticos, sindicatos, associações e diversas instituições religiosas, como a IURD, de mostrarem contas, sobretudo por não serem ‘empresas convencionais’ obrigadas a registo e depósito das demonstrações financeiras na Base de Dados das Contas Anuais, gerida pelo Instituto dos Registos e do Notariado (IRN).
Ou seja, o Conselho Regulador da ERC – a entidade que, muitas vezes, aplica coimas aos órgãos de comunicação social que cometem infracções legais – está a agir, no caso concreto da IURD, completamente à margem da lei, usando de um poder discricionário incompatível com o seu estatuto de entidade somente reguladora. O PÁGINA UM pediu, aliás, que a entidade presidida por Helena de Sousa dissesse que norma (a existir) em concreto, com indicação do artigo da Lei da Transparência dos Media, que sustenta a ‘benesse’ agora concedida à IURD para não revelar os dados financeiros principais de toda a actividade desta associação privada, como sucedeu entre 2017 e 2022. Hoje, ao final do dia, o Conselho Regulador da ERC respondeu ao PÁGINA UM, continuando sem indicar, em concreto, a norma da Lei da Transparência dos Media que poderia dar respaldo legal à benesse concedida à IURD.
O regulador diz que “31% das entidades registadas na Plataforma da Transparência não têm como atividade principal a comunicação social”, e que, desse modo, entende que “o reporte integral dos indicadores financeiros destas empresas [ou entidades] no Portal da Transparência, a par e passo com empresas cuja actividade é apenas a comunicação social, não só é desproporcional, como é comparada com informação que abrange um universo de atuação distinto – o da comunicação social exclusivamente”. E acrescenta ainda que, “ao permitir que empresas de outros sectores de actividade reportem informação financeira, quando o conseguem fazer, em exclusivo relativa à actividade de comunicação social, reforça a comparabilidade da informação e a sua relevância para a prática regulatória e para os objetivos prosseguidos pela Lei da Transparência”.
Mas esta interpretação abre também uma infinidade de problemas de transparência complexos, sobretudo porque, como sucede no caso da IURD, não há uma validação dessa contabilidade analítica. Aliás, a igreja evangélica sabe disso, razão pela qual nem sequer se mostrou interessada em colocar o canal televisivo UniFé na esfera da sua ‘holding’ Global Difusion ou criar uma empresa específica, que a obrigaria a contas mais rigorosas e transparentes.
O PÁGINA UM colocou também questões à IURD, que respondeu apenas através de Martim Menezes, advogado da sociedade Abreu Advogados, que tem vindo ‘facilitar’ diversos negócios no sector dos media associados à igreja evangélica, incluindo a aquisição de rádios locais, através da ‘holding’ Global Difusion. Aliás, a recente actividade empresarial desta sociedade anónima, detida a 100% pela IURD, é desconhecida, pois ainda não surgiu, como a lei estabelece, o registo da Informação Empresarial Simplificada (IES) relativa a 2023, que incluiu as demonstrações financeiras, na Base de Dados das Contas Públicas.
Mas a situação não era, em 2022, nada positiva. Pelo contrário, era mesmo muito negativa. Em Setembro do ano passado, numa análise às contas da Global Difusion – que detém, por sua vez, seis empresas que gerem 12 rádios locais –, o PÁGINA UM detectou dívidas de 58 milhões de euros e uma situação de falência técnica, com capitais próprios negativos de 20,8 milhões de euros. A existência de uma ‘holding’ de comunicação social detida a 100% pela IURD com dívidas de 58 milhões de euros é, além disso, uma prova de que este sector não é nada irrelevante para esta igreja evangélica.
Certo é que, efectivamente, esta estranha alteração de procedimentos foi mesmo autorizada, mesmo se de forma informal, sem qualquer sustentação por deliberação, mesmo sabendo-se que houve troca de correspondência entre a ERC e a IURD sobre esta matéria. Martim Menezes garantiu ao PÁGINA UM ser “totalmente falso que a situação [financeira] da Instituição [IURD] não seja óptima”, e que “a parte da comunicação social decorre sem problemas, mas é deficitária e cabe à Instituição suprir esse défice”. No entanto, recusou sempre enviar ao PÁGINA UM quaisquer documentos que validem contabilisticamente quer o desempenho financeiro da IURD, no seu conjunto, quer da Global Difusion.
O advogado em causa, Martim Menezes, assegura que a ERC autorizou que a IURD passasse a remeter apenas informação financeira relativa à comunicação social, e insiste que as contas de 2023 da Global Difusion “foram aprovadas e comunicadas à AT [Autoridade Tributária], embora, mais uma vez, o PÁGINA UM confirmou, mais uma vez hoje, que não foram enviadas à Base de Dados das Contas Anuais, o que é um processo extremamente expedito. O advogado da IURD coloca a hipótese de poder haver “algum problema informático dado o recente ataque à AT”. A debilidade nesta argumentação é exactamente o facto de o ataque informático ser muito recente, pois o envio da IES teria de ser feita obrigatoriamente até 31 de Julho passado, ou seja, há três meses.
Em todo o caso, a alternativa seria o envio da IES da Global Difusion ao PÁGINA UM, conforme pedido, mas Martim Menezes respondeu: “Não vejo qualquer interesse em enviar-lhe o documento. Se quer publicar algum dado especifico agradeço que o contradite antecipadamente pois a Igreja é muito vigilante quanto ao seu bom nome”.
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