A vida sem likes

Aquele centro comercial dos anos 80, edificado num período em que o futuro parecia ter futuro, só tinha cinco lojas a funcionar. As demais pareciam ser para arrumações ou estavam simplesmente fechadas a sete chaves. A covid-19 e a respectiva crise encerraram alguns espaços que depois não voltaram a abrir. Chovia no átrio, e pouca gente entrava nos estabelecimentos abertos que ainda mantinham actividade.
Um cabeleireiro, uma esteticista, um oculista e um estranho e sinistro consultório de um suposto médico homeopata mantinham o centro comercial de dois andares meio morto, ou meio vivo para quem gosta de pensar na imagem do copo, enfim, em estado quase zombie.

Mas uma galeria vocacionada para a arte era a última novidade do centro comercial e a esperança, quiçá ingénua, dos lojistas de um rejuvenescimento pulsante do lugar.
A esteticista, de quando em vez, e porque o processo de construção do novo espaço fora demorado, ia até à galeria em obras e divagava sobre arte abstracta que via em feiras de antiguidades, e fazia declarações alucinadas, por exemplo que o Citröen Xsara Picasso havia sido desenhado pelo próprio artista espanhol. Estava convencida de que Matisse estava vivo e aparecia na ¡Hola! , confundindo certamente o artista com algum socialite e mantinha que Marlon Brando morrera num acidente de automóvel com vinte e poucos anos. O alegado homeopata reforçava-lhe as crenças, garantindo-lhe que Matisse (que não era ninguém) não só era habitué da ¡Hola! como era graças a si que ele ainda podia andar e conservava aquele fantástico aspecto. Coisa de loucos mas que chegava a ser divertido.
A galeria iria abrir no mês seguinte, e, num dia em que um dos artistas estava com a porta aberta, uma senhora, na casa dos quarenta, rompeu pelo átrio adentro e dirigiu-se à porta da galeria. Explicou ao jovem artista que estava muito curiosa quanto à recente loja, ou lá o que era, que parecia ir abrir. Fez ainda referência a um grupo ao qual pertencia que gostava muito de eventos e que certamente iriam ser clientes da loja, ou do que aquilo viesse a ser. Com um timbre quase formal, acrescentou:
— Desculpe, posso entrar para resolver o mistério?
— De que mistério se trata?
— É que eu já passei várias vezes ali na rua e vi que vocês têm nas montras uns televisores… Quer dizer, às vezes, noutros dias têm uns bonecos de madeira, umas máscaras e até umas roupas dispostas de uma forma tão estranha, sempre em mutação, e isso estimulou a minha curiosidade por isso finalmente decidi entrar para saber de que loja estamos a falar. Você é o dono, certo?
— Isto é mais uma associação. Não há donos.
— Mas é uma loja vintage? De fora, parece.
— Não. Isto é uma galeria de arte que vai abrir em breve com exposições.
— Ai sim? Posso entrar para ver? Se não me levar a mal…
— Ainda não tem muita coisa. Tem só umas experiências que estamos a fazer para perceber que tipo de luz vamos instalar e para perceber melhor a disposição.

A senhora entrou sem pedir licença e deu uma breve vista de olhos ao espaço. Estava desconfiada.
— Pois. Vejo que sim. Vocês têm isto nas redes sociais? Facebook, Instagram…
— Sim. Tem aí na montra a morada.
A senhora deu um passo curioso até à montra e tirou o smartphone da mala.
— Sim. Aqui estão os links, muito bem. Estou a ver.
Olhou para o seu smartphone com um ar intrigado e ao mesmo tempo ia dando uns esgares bastante estranhos para alguns pormenores que faziam parte da galeria. Fixou o olhar numa zona onde se acumularam umas infiltrações, ao que o rapaz, tendo reparado no olhar atento da senhora, disse que já estava previsto o arranjo. E depois de forma simpática ainda rematou:
— Tem aí já alguma informação acerca do que iremos apresentar. Sobretudo no Instagram. Está para breve a inauguração.

— Sim, sim. Estou a ver. Não usam o Tik-Tok?
—Por enquanto não.
—Estou a ver. Sim senhor.
Ao fim de uns segundos, comentou com um rosto que oscilava entre a desilusão e o desdém:
— Mas vocês só têm vinte e um likes aqui.
— Por enquanto, sim.
— Só?
— Sim.
— E nem stories têm.
— Não se pode ter tudo.
Ainda gracejou o rapaz com um sorriso nervoso.
— Vinte e um! Como é que se pode ter só vinte e um likes? E só têm cinquenta seguidores! E depois querem o quê! Eu até gostei de algumas coisas e até comprava mas com vinte e um likes… Não.
O rapaz já nem respondeu.

A senhora apressou-se a sair pelas escadas que davam para a saída do primeiro andar, totalmente incrédula. Enquanto subia, ainda olhava para a porta da galeria, e o jovem continuava a ouvir a sua voz.
— Vinte e um! Tch! Vinte e um. Vinte e um likes?! Como é que é possível… Tch! Cinquenta seguidores até o meu sobrinho de oito anos tem. Não quero acreditar. Vinte e um likes… Ridículo!
O jovem artista, até então entusiasmadíssimo com a galeria, teve um clarão: valia um 0,0000001 do que valia a Cristina Ferreira e 0,0000000000000000000001 do que valia o Ronaldo. Entrou numa espiral de pensamentos negativos, com ressonâncias de versos pessoanos.
«Não sou nada, nunca serei nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo, mas quase nenhum like. Vinte e um likes? E só temos cinquenta seguidores. Cinquenta! Que sentido tem isto? Que sentido tem a minha vida? O que é uma vida sem likes?»
Ruy Otero é artista media
Ilustrações de Ruy Otero
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