Miguel Sousa Tavares meteu em palavras simples aquilo que todos pensamos, mesmo que não o digamos em voz alta. Não foi por conduzir embriagado, fugir à polícia, abalroar outros carros depois de se despistar e muito menos por, alegadamente, ter tentado agredir um polícia, que Odair Moniz foi morto, baleado poir um agente da PSP. Era preto e vivia num bairro social – e foi isso que facilitou o puxar do gatilho.
Não precisamos sequer de ir ‘por opiniões’; basta olharmos para os números. Em Março de 2024, um estudo apresentado pela antropóloga Ana Rita Alves dava conta que ciganos e negros tinham uma maior probabilidade de serem mortos pela polícia: 43 e 21 vezes mais, respectivamente, para ser mais preciso.
Entre 2002 e 2013, mais de uma dezena de jovens negros (médias de idades a rondar os 19 anos) foram mortos pela polícia. A lista de agressões é muitíssimo mais extensa e não caberia aqui. Também não é preciso explicar que estas mortes, agressões e tratamento diferenciado por parte das autoridades não acontecem na Lapa, nas Avenidas Novas ou no Chiado. Ocorrem na Cova da Mora, na Quinta do Mocho, Bela Vista, Quinta da Princesa, entre outras zonas das quais nada sabemos até a polícia lá entrar.
O racismo estrutural de uma sociedade vê-se, em parte, pelas reações a crimes deste tipo. Antes sequer de sabermos o que aconteceu, já chovem críticas assumindo que o, neste caso, morto, fez por merecer o destino. É preto, vive na Cova da Moura e tem cadastro. Um tiro da polícia será, para muitos dos que me estão a ler neste momento, a coisa mais natural e expectável.
Reparem que em momento algum desta tragédia ouvimos falar em investigações para se tentar perceber, com algum bom senso, o que falhou. A polícia apressou-se a inventar desculpas para escudar a corporação e transferir responsabilidades para um morto. Primeiro era um carro roubado, depois uma faca. Nada que fosse verdade e, muito menos, que justificasse uma morte.
Até poderíamos cair no erro humano: um polícia inexperiente, uma reacção precipitada, um tiro falhado. Mas é difícil, cada vez mais difícil, acreditar nas autoridades quando estas mostram uma necessidade constante de fugir às próprias responsabilidades.
A revolução partiu dos bairros, pela morte de Odair, e tomou as ruas. A partir daí formaram-se as barricadas. Ouvi falar mais no custo de um autocarro do que nos familiares que Odair tinha deixado para trás. Tal como em Gaza e Beirute em contraponto com Telavive e Kiev, também em Portugal as vidas não têm o mesmo valor. A morte de um preto está em saldo, não dá sequer para os pneus de um autocarro da Carris.
E foi quando essa revolução partiu para se fazer notada que, definitivamente, os extremismos políticos tiveram a prancha que faltava para surfar a onda. André Ventura, antes sequer de saber o que tinha acontecido, já pedia medalhas e condecorações para o polícia que tinha morto Odair. Nas suas palavras, o polícia tinha “dado o corpo às balas”. Quais balas, André? Se ele tivesse, de facto, dado o corpo às balas, o morto não tinha sido o homem que estava desarmado. Já Pedro Pinto, o líder parlamentar sem autorização para falar pela bancada, tal o limite intelectual apresentado, disse que, “se a polícia atirasse mais a matar, talvez o país estivesse mais na ordem”.
Foi a este tipo de gente que os habitantes dos bairros sociais foi dar alimento quando, sem qualquer propósito, desataram a partir propriedade alheia. A sociedade que os coloca de lado em cada momento do dia e que não sabe sequer da sua existência, dificilmente apoia uma luta de carros destruídos e trabalhadores queimados.
O caso do Tiago, condutor da Carris, queimado e a lutar pela vida numa cama de hospital, é exactamente o contrário do que uma luta contra o racismo e repressão policial deve ser. É colocar trabalhadores contra trabalhadores, pobres contra pobres. E foi nesse momento que a revolução falhou e fracassou, permitindo que a extrema-direita tivesse o que precisa: ódio.
A forma certa de chamar a atenção para os problemas que afectam os mais desfavorecidos e marginalizados é aquela que aconteceu, há uns dias, com a descida da Avenida da Liberdade por milhares de pessoas, pacificamente a gritarem palavras de ordem, enquanto, na rua ao lado, André Ventura e umas dezenas de rapazes se humilhavam desfilando com mostras de racismo e xenofobia.
Associações, sindicatos, anónimos, partidos. Todos juntos mostrando que a sociedade se consegue mexer e unir para defender as causas justas. A morte de Odair é inaceitável e, por não ser a primeira vez que tal acontece, as forças de segurança têm que responder por isso. Já são vezes a mais em que as condições que levam a estas mortes são, no essencial, as mesmas. Se queremos que Portugal não seja, de facto, considerado um país racista, estruturalmente, então a culpa não pode continuar a morrer solteira.
A violência a que foi sujeito o Tiago, um trabalhador da Carris, são igualmente inaceitáveis e mancham, por um bando de marginais, a luta justa pela visibilidade e melhoria de vida nos bairros problemáticos do país. Espero que melhore rapidamente e possa seguir a sua vida, de alguma maneira.
Portugal continua a ser um país seguro com óbvios problemas de inserção social e demasiados bairros problemáticos. Os números existem e, por mais que a extrema-direita berre, eles não mudam.
Somos um país de diversidade étnica e de imigração. A tendência é para aumentar e, portanto, é bom que nos habituemos a isso e compreendamos que, até do ponto de vista económico, Portugal beneficia com esse fluxo de pessoas. Em vez de andarmos a discutir como fechar a porta, matar mais gente ou mandar para outro lado qualquer, devemos é perceber a razão da revolta e do esquecimento dos bairros sociais onde, já agora convém dizer, maior parte das pessoas que por lá vivem, trabalham e pagam impostos.
Não se vive num subúrbio, num bairro social ou num gueto, por opção. Vive-se porque a vida nunca mostrou outra possibilidade.
Os partidos políticos devem fazer o esforço para contribuir para a integração destas pessoas como parte do seu trabalho permanente. Por exemplo, nas políticas de trabalho. É esse o primeiro passo para que alguém pertença a uma sociedade: trabalho. A dignidade humana começa também aí.
Deixar estas pessoas por sua conta e esperar pelas desgraças para aparecer serve, essencialmente, para que o fogo que a extrema-direita precisa para existir aumente exponencialmente.
A morte do Odair poderia ter sido evitada. E o ataque ao Tiago também. O polícia que foi incompetente (estou a dar o benefício da dúvida) não voltar tão cedo às ruas será, na minha opinião, o primeiro passo para demonstrar que se percebeu alguma coisa.
Uma última nota, num texto que já vai longo, deixo um abraço ao nosso leitor Carlos Maia, um dos primeiros a seguir o PÁGINA UM, que me fez pensar um pouco na relação com quem está desse lado. Conhecemo-nos virtualmente num encontro promovido entre o jornal e os seus leitores onde, educadamente, me explicou como discordava de muito do que eu aqui escrevia. Não há nada melhor do que discordarmos uns dos outros. Sem debate não há ideias novas, progresso e evolução. Sem educação é que não há sequer hipótese de chegarmos a esse ponto. Percebi, ao ver um leitor real, que é para pessoas como o Carlos que opto por escrever. Um abraço para ele e, já agora, felicidades para o seu (nosso) Benfica que, finalmente, se livrou daquele emplastro alemão.
Tiago Franco é engenheiro de desenvolvimento na EcarX (Suécia)
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