Pena suspensa: Lisboa 1988

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Rui Araújo|31/10/2024

Hoje, na rubrica ‘Caderno dos Mundos’, uma reportagem de Rui Araújo, publicada no jornal Semanário na edição de 5 de Novembro de 1988, sobre Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade.


Foto: FRONTERAd, Madrid

LISBOA 1988

Esta história começou ontem.

Maria João, 26 anos, solteira — dois filhos — , desempregada há uma eternidade, compareceu em tribunal e não chegou a ser julgada. Não possuía qualquer documento de identificação. Ficou mais uma noite detida. Esta manhã, voltou ao banco dos réus para julgamento.

Tentou furtar num supermercado da capital duas embalagens de carne — alcatra e cachaço —, uma embalagem de lulas e sete iogurtes naturais.

 A rapariga deu um jeito no cabelo, sorriu com os lábios grossos e contou o seu calvário sem protestos ou imprecações.

— Eu estou em casa dos meus pais. Tenho duas meninas. O pai está com a mais velha. Pois teve uma zanga com os meus pais. A minha mãe chateou-se comigo e meteu-me na rua.  Eu, como não tinha comer nem para a minha filha nem para mim, fui buscar para as duas. Tive um bocadinho de pouca sorte. Fui apanhada pelo chefe e puseram-me aqui no tribunal. Fiquei cá duas noites a dormir por causa do bilhete de identidade.

— E agora? O que vai fazer?

— Tentar ir para casa. Ir ter com a minha filha.

A white stuffed animal sitting on top of a table

— Como é que é a vida lá em casa?

— Acho que é tudo bem só que eu não tenho emprego. Já tive um emprego de mulher-a-dias. Estive um ano a trabalhar. Fui cozinheira, também. Eu precisava era de arranjar um emprego. E esquecer esta asneira que eu nunca tinha feito isto. Foi só por a gente estar com fome…

— E já tiveram fome muitas vezes?

— Já. Mas aguenta-se. Há vezes em que mesmo com fome não me chateio. Só que desta vez estava enervada por a minha mãe me ter posto na rua. Eu gostava mesmo  era de arranjar um emprego. Mulher-a-dias, secretária, sei lá…

— Para não andar mais em tribunais?

— Para ter uma vida…

Conclusão

Veredicto do tribunal: houve crime de furto. Maria João condenada a 40 dias de prisão, substituídos por uma multa de 12 mil escudos. Pena suspensa por um ano.


Reportagem originalmente publicada no jornal Semanário, na edição de 5 de Novembro de 1988.


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