Correio Mercantil foi um periódico brasileiro do século XIX (1848-1868), onde o grande Machado de Assis deu os seus primeiros passos. o PÁGINA UM solicitou o registo da marca para Portugal ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), cujo longo processo foi já concluído. No contexto da actual mercantilização da imprensa portuguesa, ‘contratar’ o protagonista do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas para umas epístolas quinzenais pareceu-nos não somente conveniente como necessário. Para comemorar a aprovação do registo, o piparote de Brás Cubas, nesta já décima edição, vai para Paulo Rangel, ministro dos Negócios Estrangeiros, e a sua triste figura no aeródromo de Figo Maduro, com a ‘bênção’ de Cícero e Erasmo.
Ah, meu caro leitor, a grandeza dos homens não se revela somente em batalhas épicas, sob os trovões da guerra ou por cima dos temporais sacudindo impérios. Não! A verdadeira magnificência da intrepidez e da sublimidade na alma humana, além do assombro do seu valor, brilham, ademais das vezes, nos momentos mais prosaicos, em horas de calmaria, no aconchego de um rooftop, quando o sol se põe, em preguiça, no horizonte, e o vento sopra em suave brisa, como quem sussurra à Terra que o dia já se foi, pelo lusco-fusco, mas que há-de vir igual pela aurora sem precisar de toque de alvorada.
Imaginai, por exemplo, um grande estadista, daqueles que surgem esculpidos em enciclopédias ou moldados em estátuas de calcário, mesmo se, depois, pichadas de grafitos e corroídas pela caca de pombo. Nem sempre vereis relatos, necessariamente, deles a brandir uma espada à Alexandre [o Grande, não o Évora], nem a bradar com a voz de trovão de um Napoleão à beira do campo de batalha. Não, donzelas e cavalheiros, a grandeza de muitos grandes homens, ou mulheres, ou dos géneros que agora dizem existir com letras do alfabeto, pode manifestar-se numa aveludada palavra, por um olhar ponderado, através de um aperto de mão no momento certo. Sem ser na fúria dos eventos, mas sim no silêncio de ponderadas escolhas. Na verdade, quase sempre – ó, paradoxos da vida! –, é no gesto mais simples, no acto mais banal, que se revela a estatura daqueles que se elevam, e levam, para a eternidade.
Pensai comigo: é fácil, e até trivial, brilhar quando o mundo exige o clamor dos heróis. Qualquer medíocre, na sorte de uma desventura, se inflado pela urgência do momento, se faz notar no caos. Mas o que dizer daquele que, num dia qualquer, num clima morno e sossegado, diante de uma situação de nada, manifesta uma sabedoria que escapa aos olhos menos atentos? É aqui, senhores, que a verdadeira grandeza se destaca. Não no fragor da tormenta, mas na paciência da brisa; não no ecoar dos canhões, mas no suspiro sereno da paz.
Mas se assim é, também poderá suceder que seja no presumível bucólico goûter, no previsível fleumático afternoon tea, na esperada serenidade do Kaffeestunde ou na expectável plácida recepção de repatriados no aeródromo de Figo Maduro que se alce um daqueles desprezíveis homúnculos sem qualidades, desprovido de méritos, mas carregado de pretensões.
Ah, Lisboa, e foi numa dessas tardes, em pleno Outono do ano da graça de dois mil e vinte e quatro depois do Cristo Redentor, que se viu o plenipotenciário Paulo Rangel, vestido e investido de ministro dos Negócios Estrangeiros da República Portuguesa, exibindo-se não como o gigante, que julga ser, apesar da estatura, mas como figura menor que a História tratará de lembrar não pelos feitos mas pelos defeitos.
Dizia Cícero, que Erasmo fez questão de perpetuar: nem todos os bípedes se revelam dignos, e há homens que, ao ascenderem, se mostram tão mesquinhos que até os quadrúpedes lhes podem ser superiores. O nosso Rangel, meus caros, encaixa-se perfeitamente nessa descrição.
Afinal, como bem sabemos, nem todos os ministros válidos têm valor, e o nosso Paulo, ajudante do primeiro-ministro não pelo mérito, mas por ser valido, mesmo se deslavado, acabou por confundir a elevação do cargo com o ser grandioso. E assim, como Icarus que ousou aproximar-se do Sol e se saiu mal, também Rangel, em pleno voo de galanterias e ofensas, derreteu as suas frágeis asas de cera no confronto com a púrpura incandescente da sua narcísica altivez, e assim o vi se despenhar, desalado, no chão da insignificância, de onde jamais deveria ter tentado sair.
Vejam só, aterrou ele no aeródromo de Figo Maduro, vindo em voo raso do Palácio das Necessidades, como quem se prepara para uma parada triunfal, e algo não lhe caiu no goto. Indignou-se, o bípede, urrando contra uns supostos quadrúpedes, burros e camelos, que o impediram de se pavonear pelo asfalto. E como Xerxes, o grande imperador persa que, numa explosão de vaidade, ordenou que o mar fosse açoitado por afundar a sua ponte, Rangel julgou estarem aquelas alimárias a cometer afronta digna de punição por crime de lesa-majestade. E assim, ofendido no seu pundonor, por meras formalidades protocolares, desatou a gritar ao chefe do Estado-Maior da Força Aérea, o general Cartaxo Alves, como se este fosse um simplório centurião defronte de um César de toga erguida. Ah, a vaidade dos pequenos homens do século XXI.
Dizem as crónicas que o general manteve a calma dos estóicos, daqueles que já viram o suficiente para saberem que há inimigos muito mais perigosos do que um ministro com ímpetos e altura de Napoleão. Consta que, com a sobriedade que só a experiência concede, limitou-se a observar o espectáculo com aquele olhar de quem compreende a situação melhor do que o próprio protagonista.
Eis aqui a tragédia do vosso Paulo de Portus Cale: tão ávido em se mostrar gigante, revelou-se mais pequeno do que os seus cinco pés e duas polegadas de altura. Como tantos que se julgam superiores aos demais, ele não perceberá jamais que o poder não reside nos gritos, mas na capacidade de manter a dignidade, mesmo até nas mais corriqueiras situações. Cartaxo Alves, tal como o mar açoitado por Xerxes, não se moveu um milímetro diante das ofensas, porque sabia que quem ofende sem razão já perdeu a batalha.
Mas a estória, meus amigos, não termina aqui. Não se contentando com uma única cena ridícula, ele precisou de mais. E assim, ao lhe ser apresentada a mão cordial do coronel Abel Oliveira, comandante do aeródromo, resolveu Paulo ‘Calígula’ Rangel, ranger dentes, e em gesto de suprema arrogância, virar-lhe as costas. Não havia ali um inimigo ou uma ameaça, apenas um gesto de cortesia, como tantos outros que sucedem em ocasiões de formalidade, mas o altivo pequeno plenipotenciário assim castigou os afrontosos.
Tal como Cícero execrou Públio Clódio Pulcro, deveríamos nós proscrever Paulo Rangel chamando-lhe, apropriadamente, bipedum nequissimus, porque se um ministro de Estado chama camelos e burros a militares, mostra não perceber não ser a posição que faz o homem, mas o homem a conferir valor à posição. Por isso, ladeando-te desse ministro, te aviso Luís Montenegro, parafraseando o falecido Marco, não o Paulo, mas o Túlio: “Tu, com este proscrito, com este conselheiro, com este serviçal, que é o pior, não só entre todos os bípedes, mas também entre os quadrúpedes, arruinarás o Estado!”
Sem este bipedum nequissimus, vaticino, Luís, que também em ruínas deixarás o poleiro; mas poderás, entretanto, escolher se os escombros do teu Governo serão como Roma, ainda glorificada, ou antes como Palmira, absolutamente devastada.
Até breve, e um piparote.
Brás Cubas
N.D. O título Correio Mercantil é uma marca nacional do PÁGINA UM registado no Instituto Nacional de Propriedade Industrial. O autor desta crónica, Brás Cubas, é obviamente um pseudónimo usado em exclusivo por Pedro Almeida Vieira, constituindo não uma homenagem ao fidalgo e explorador portuense do século XVI, que fundou a vila brasileira de Santos, mas sim a Machado de Assis e ao personagem de um dos seus mais famosos romances. Tal não deve ser interpretado como sinal de menor rigor na análise crítica que aqui se apresenta, independentemente do carácter jocoso, irónico ou, claro, sarcástico.
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